2024 foi verde ou negro? De confronto ou pacificação? De fervor pop ou cansaço de formulaçōes? De namoro do pós-punk com saxofones? De devolução da vitalidade do hip-hop? De transcendência do jazz para outra dimensão? De música das esferas? De diluição de géneros? Na ressonância possível entre a parte e o todo 2024 teve um pouco disto tudo. E também de fome de romper com o instituído e sensação de inescapibilidade às normas. Talvez por isso, tenha sido um ano de ensaios de rupturas, sem respostas definitivas entre rascunhos de mudança e regressos à casa de partida. Estamos conscientes do que não queremos, mas também sabemos que ainda não o temos. O tempo foi curto para prestar atenção a toda a música catalisadora e o balanço final confirma-o. Predominam os infinitos particulares, faltam os mantras universais. Provavelmente, é cultural.
(sem ordem)
Adrianne Lenker - Bright Future
Em Bright Future, um pequeno milagre acontece: a transmissão de esperança no futuro. Involuntariamente, a candura de Adrianne Lenker fala por uma necessidade colectiva. É um disco de claridade no fundo do túnel, de uma beleza suspensiva do tempo, como num conto infantil. A escrita é profunda mas as cançōes são simples, directas e espontâneas, repletas de marcas do country. O magnetismo das sessōes, notado através do espaço entre instrumentos, transfigura as memórias em música.
Amaro Freitas - Y'Y
Notável ensaio de Amaro Freitas a partir de um olhar profundamente crítico sobre as políticas de destruição da Amazónia para chegar a um lugar musical de ancestralidade e reconstrução do humanismo.
Arooj Aftab - Night Rein
A noite é um lugar de desejo, cura e humor, mas também de imaginação incalculável, possibilidade e mistério. É provável que aprecie jogos de sombras e silhuetas para nos incitar ou confundir. É nesses interstícios sem respostas concretas, fronteiras desenhadas ou limites estéticos que Arooj Aftab se abriga.
Beth Gibbons - Lives Outgrown
Retrato confessional de uma mulher sem medo de enfrentar uma crise existencial entre a separação do passado e a chegada do fim, destranca as portas domiciliárias como nunca até aqui e convida a auscultar-lhe a ansiedade com um punhado de grandes cançōes de desconforto e salvação como Tell Me Who You Are Today, Floating On a Moment, Rewind, Beyond The Sun e Whispering Love, passíveis da mesma devoção de Out of Season e Third. Notável.
Beyoncé - Cowboy Carter
Cowboy Carter consegue ser divertido, insurgente, preocupado, altruísta e artisticamente singular. Beyoncé calça as botas de vaqueira, o violino entra e whoooo whooooo, o baile vai começar em Texas Hold 'Em. A balada Just for Fun comove até um coração de pedra e Sweet Honey Buckin é o touro mecânico de Cowboy Carter, um objecto fundamental para a cultura pós-género.
Cassandra Jenkins - My Light, My Destroyer
My Light, My Destroyer move-se entre a sombra e a luz para representar o caos e a beleza. Não só An Overview on Phenomenal Nature não foi um aguaceiro como, três anos depois, expōe o cosmos de Cassandra Jenkins em dilatação. Cançōes com marca de água pessoal reconhecidas ao espelho na angústia e desespero de quem não apagou o amor dos contactos.
Charli XCX - Brat
Brat é uma coligação verde que tem na pista o centro de gravidade de um conjunto de sensibilidades unidas por uma visão comum da arte-pop como transmissor de generosidade. Um jorro criativo de uma figura que atingiu o zénite de madrugada. O acontecimento pop do ano é uma válvula de escape.
Christopher Owens - I Wanna Run Barefoot Through Your Hair
Da ascenção na euforia da pop indie (Owen chegou a ser modelo Yves Saint Laurent, fotografado por Hedi Slimane) com os Girls à queda sem joelheiras, Owens bateu no fundo e abriu a cabeça. O fim esteve próximo mas não pereceu. Os pontos ainda estão à vista em I Wanna Run Barefoot Through Your Hair, espantoso gesto de amparo e salvação onde se ouve tudo o que o sofrimento pode implicar. A solidão, o abismo e a renúncia, mas também uma nesga de luz que o salva da noite escura. Da caixa negra, Owens faz um punhado de clássicos barrocos sobre o medo, o desespero e a superação.
claire rousay - sentiment
Ouvimos uma voz robotizada guiar a folk pastoral. A escrita é clássica mas o terreno é exploratório. Serão os afectos a comandar a máquina ou a máquina a lamentar a incompreensão dos humanos? sentiment canaliza a consciência da dúvida como um gesto transitivo sem abdicar de a manipular ao seu jeito. Essa reflexão sobre a intersecção entre afecto e racionalidade é terreno fértil para vincar uma personalidade.
The Cure - Songs of a Lost World
Numa época que adora matar a beleza, os Cure voltam a ser espelho de quarto da agonia colectiva. Não prometem terapia barata mas salvam do naufrágio enquanto Songs Of a Lost World se afunda na resignação. Perto de uma hora da sua música mais vital e pertinente desde o clássico Desintegration. E fecha-se um ciclo sem retorno da mortalidade.
Kendrick Lamar - GNX
Kendrick corre apenas por si. Talvez os códigos e hierarquias o atraiam e ser o número 1 do mundo do hip-hop o fortaleça mas as grandes batalhas são travadas contra os inimigos invisíveis próprios. E é em ritmo de atleta olímpico concorrente ao Ouro que Lamar volta a elevar a fasquia, sem mimetizar o balanço irresistível de Good Kid, M.A.A.D City, a metamorfose de To Pimp a Butterfly ou a revolta americana de Damn.
Kim Gordon - The Collective
The Collective é um álbum sobre a perplexidade que lida com a incompreensão como chave de descodificação da loucura. Tem cédula de septuagenária mas a idade é apenas um número. O rock apenas uma noção. Os Sonic Youth uma escola. O passado talvez um país idealizado. O presente uma panela de pressão. Esta Kim Gordon é honestamente desconfortável e idiossincraticamente perturbadora. Convida-nos para o laboratório. Conversa, provoca e dilacera, mas ao contrário da ciência, não faz prova. Apenas expōe. Com sarcasmo e auto-crítica. Sem cinismo nem auto-exclusão.
Mabe Fratti - Sentir Que No Sabes
Quanto maior é o saber acumulado, maior a consciência da ignorância. O conhecimento parte do apetite de conhecer. Mabe Fratti parte desse saudável pressuposto de que quanto menos sabemos, mais livres somos. A música de Mabe Fratti é uma equação de múltiplas incógnitas. Não se teoriza, sente-se. Salta do peito sem fogo de artifício nem filtros de racionalidade. É desordenada, anárquica, e profundamente emocional, apesar do treino clássico. Talvez seja essa a melhor explicação para a sua beleza coral.
Majesty Crush - Butterflies Don’t Go Away
Eram loucos como Julian Cope, sonhadores como os Mazzy Star, ruídosos como os Jesus & Mary Chain e românticos como o Marvin Gaye, mas foi pelos A.R. Kane que modelaram a desorganização. Estiveram dentro do sonho mas acabaram no abismo. Queriam assassinar políticos mas foi o enigmático vocalista David Stroughter quem acabou morto pela polícia. A grande mina do shoegaze não está no TikTok, vem dos escombros e chama-se Majesty Crush. Butterflies Don’t Go Away é a grande reedição do ano e o melhor álbum de guitarras de 2024, comprimido entre 1991 e 1994.
Nala Sinephro - Endlessness
Música desinteressada da espuma dos dias, imune à anestesia colectiva e aos micro-plásticos infiltrados na dieta diária que celebra a existência como uma oportunidade única. Por vezes, Endlessness lembra a Cinematic Orchestra sem a gravidade vocal de Fontella Bass. E os ritos espirituais de Alice Coltrane. Sinephro é parte de uma família virtuosa mas já reservou um espaço singular. Endlessness é um exercício de minimalismo e simplicidade, como uma ondulação permanente que apesar das relaçōes com disciplinas como a meditação, transcende esse estado.
Nubya Garcia - Odyssey
Nova odisseia espacial por chão tumultoso. Quase uma década depois de “o novo jazz londrino” entrar em modo de voo, como contra-resposta ao fechamento do Brexit, Odyssey transporta-nos para outro nível de grandiosidade. Já não é apenas o jazz como recreio mas como declaração e comoção. Uma magna carta de grande profundidade e elevação.
Porridge Radio - Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me
Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me é o álbum mais intenso e eufórico dos quatro até agora. Como um derrame impetuoso de sangue, expōe a ferida aberta como radiografia do desgosto e indemnização artística provocada pela catarse emocional. Eis uma simultaneidade notável num período de desesperança em que o capitalismo convida o contrapoder para lanchar e serve veneno em sacos de chá de cidreira: tirar o elefante da sala sem pensar demasiado nas consequências. Deixar-se ir é diferente de se deixar levar. O racional não lhes sabotou o ímpeto nem corrompeu a autodeterminação.
Shabaka - Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace
A música é transparente e livre mas também complexa ao transcender as barreiras físicas. Um longo poema sónico sublimado pelas propriedades dos convidados. Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace é um disco associativo e transformador embora pessoal.
The Smile - Wall of Eyes
Primeiro acto dos The Smile em 2024, Wall of Eyes tem mais parecenças faciais com os Radiohead, em exercícios de estilo como Teleharmonic e Under Our Pillow do que A Light For Attracting Attention, em que havia uma The Smoke a dançar na corda bamba de Fela Kuti, mas ambos afirmam uma relação de interdependência em que a autonomia pode ser o anti-depressivo que os Radiohead precisam depois do mortiço A Moon Shaped Pool.
Tyler The Creator - CHROMAKOPIA
É nesse hiato entre a representação e a observação que o reconhecemos no alívio do desconforto, a rejeitar a caricatura de si mesmo e o pedestal. O fim é um recomeço. A história de Tyler The Creator conta-se sem esclarecimentos factuais. A angústia de saber, sem certezas ou provas, continua a ser o arame farpado a separar o real da fantasia.
Vampire Weekend - Only God Was Above Us
Only God Was Above Us tem tanto de regresso às primeiras madrugadas como de projecção de um horizonte luminoso. Como sempre, como dantes, a canção de geometria clássica é a matriz mas o álbum não se priva da fantasia nem se esconde da catástrofe.
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