Foi uma mudança natural de ciclo. No milénio, os grandes ícones do rock foram sucedidos por astros do hip-hop. A transformação desenhou-se a partir da opulência de Eminem, Jay-Z, Dr. Dre, 50 Cent e Snoop Dogg, ou da estilização da música popular operada no eixo Pharrell Williams/Neptunes, e foi mediada pela insanidade consciente de Kanye West que, recorrentemente, reivindicou para si e para os seus um estatuto tão elevado quanto o dos intocáveis. “Eu sou o novo Jim Morrison!” Eu sou o novo Kurt Cobain!”, auto-proclamou. I am a God na sua versão mais sôfrega.
A história é conhecida e a degeneração também. A obesidade perverteu os ideais do rock. Os jactos e as mansōes foram o elevador social que arrastou o hip-hop das ruas para os condomínios e dos transportes públicos para os Teslas, sugando a alma e sobretudo os motivos. A ascensão vertical de Travis Scott é sintomática. Não se trata apenas de uma generalização, há uma relação de causa e efeito entre adulteração e superficialização de uma cultura. Para isso, não ajuda o estado de negação de boa parte da comunidade, poucas vezes interessada em pôr-se em causa enquanto discute números, egos e o comprimento do falo.
E eis que Tyler The Creator, desde sempre um caso à parte, assume a crise existencial. As dores de crescimento. O desconforto da fama. Um parto não planeado com uma misteriosa mulher chamada Jane, introduzido pelo conselho maternal de Bonita Smith (Always, always wear a condom) e figurado por um diálogo entre Tyler, na qualidade de pai, e Creator, a responder como mãe. Não se trata apenas de relatar a perspectiva da progenitora, mas de lhe dar a fala para relatar apreensōes e temores. “I’m 35 and my ovaries might not reset/I don’t wanna live my whole life feeling regret/Damn, a feeling you can never understand/You just hope to god I get my period again”. Quantas vezes no rap lidámos com esta memória descritiva?
Em Chromakopia, a fronteira entre o homem e o rapper é dúbia. Sempre foi. Das piadas homofóbicas juvenis, cuspidas na irresponsabilidade com o Odd Future, ao rosa-queer do icónico Igor, ou agora ao susto da paternidade, Tyler gosta de se enfrentar. “I don’t need you to buy things, ’cause my needs don’t include your money and status… There’s too much on your palette, this is really traumatic for me. I can raise it by myself”, prossegue Hey Jane, o grande espanto de um álbum sólido, inabalável e conceptualista, como lhe é habitual.
Tyler anda a reescrever a sua narrativa desde Flower Boy. Chromakopia não surpreende mas também não decepciona. É um álbum de carreira, translúcido do momento, preparado com minúcia da contradição à activação. Ainda este ano, garantia que 2024 seria de ausência. Depois, surgiram os vídeos. O retrato a sépia, com uniforme militar. A metamorfose da personagem. E afinal, o álbum estava próximo. A uma segunda-feira, a mando das próprias regras. Consolida-se um crescimento da insolência para a sabedoria, como um ancião precoce em processo de desaprendizagem e correcção para cortar nas gorduras.
Hey Jane sobressalta. A transfusão de Nizakupanga Ngozi, da banda de Zamrock Ngozi Family para o single Noid, rompe com o livro de estilo recorrente de Tyler The Creator, moldado pelo design rítmico da equipa de Pharrell Williams/Neptures, e pelo cubismo sónico de Kanye West. Sticky é o banger para pulverizar festas académicas. Noid e Rat Tah Tah desconstroem a fama - “Can feel it in my aura/Living between cameras and recorders, I Want peace, but can't afford ya”, reflecte na primeira. Em I Killed You e Thought I Was Dead interage entre os papéis de actor e espectador para burlar expectativas.
É nesse hiato entre a representação e a observação que o reconhecemos no alívio do desconforto, a rejeitar a caricatura de si mesmo e o pedestal. O fim é um recomeço. A história de Tyler The Creator conta-se sem esclarecimentos factuais. A angústia de saber, sem certezas ou provas, continua a ser o arame farpado a separar o real da fantasia.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Laura Marling - Patterns In Repeat
Não devia ser mas o amor é antónimo em época de cólera e destruição. No magistral Song For Our Daughter, Laura Marling escrevia cançōes de embalar para uma filha ainda por fecundar. O enxoval estava pronto e em 2023, a criança nasceu. Patterns In Repeat não lhe é apenas dedicado. As cançōes ainda trazem a costura da maternidade e as olheiras de uma noite mal dormida - cristalinas, desmaquilhadas e silenciosas, para não acordar o bebé. Nem o caminho da espécie para a extinção perturba Laura Marling. A riqueza está muito para além do PIB e dos accionistas. O cânone folk inglês, de Linda Thompson, Sandy Denny e Linda Perhacs, volta a ser engrandecido.
Ruthven - Rough & Ready
Espantoso como se formou um cânone a partir de Jai Paul quando tão pouco produziu. Sean Nelson, ou seja Ruthven, chega-nos através do Paul Institute, a editora dos irmãos Jai e A.K. Paul. A identidade é familiar: soul angular, guitarras fininhas, caixas de ritmos, falsetos e a sensação de privacidade convidada. Música doméstica de consulta particular, feita com recursos básicos, sem disfarces. Sentimo-nos especiais neste quarto mágico, como se as cançōes nos estivessem a ser transmitidas pessoalmente. De Kindness a Sampha e Fabiana Palladino, este som de cristal, amestrado por Prince, D’Angelo e Frank Ocean, é revisitado com frequência com texturas renovadas. Rough & Ready notabiliza-se pela produção certeira servir a melhor versão de Ruthven ao longo da extensão de um álbum de quase uma hora.
Bardo Pond - Set and Setting (reedição) e Melt Away (compilação)
O valor dos Bardo Pond é maior do que o seu reconhecimento, mas devagar a balança equilibra-se. Em 1999, o rock era um lugar estranho de infantilização e estrangulação mas álbuns como Set and Setting apontavam a porta de saída. Pelo menos, para uns quantos. Misto de explosão stoner, com minimalismo repetitivo pilotado por uma secção rítmica metronómica, o sucessor do clássico Amanita vive do improviso como premissa e tem Isobel Sollenberger no papel de Kim Gordon do grupo.
O arrastar lisérgico e os repentes sucedem-se na colecção Melt Away de raridades e excedentes de final dos anos 90. O material de segunda estação não se distingue da primeira, no bom sentido. É uma trip marada de rock livre, no campo das hipóteses levantadas pelos Sonic Youth, ao sabor dos desejos dos Bardo Pond.
DJ Lycox - Ghetto Star
Parecem o sino de uma catedral os primeiros segundos de Yaahh, o motor de arranque de Ghetto Star. Entra um baixo sintetizado para deitar mais fogo e preparar a explosão de To Bem Loko e está aberto o baile. A prescrição é conhecida de bodas passadas. Música física, contagiante e hipnótica, com o poder de enfeitiçar bruxas. O instinto natural está nos quadris mas os prazeres de Ghetto Star estão para além do corpo - sintoma de uma linguagem da Príncipe que se expandiu sem perder o chão. É na zona cinzenta de Mortal Kombat que está a fuga para a frente.
Yakuza - 2
A liberdade é a língua materna do jazz. Por isso, códigos como “jazz de fusão” ou “jazz sem limites” são, em si, uma redundância. Algemado, o jazz não seria jazz. Ainda assim, estas definiçōes justificam-se pela diluição de fronteiras, recuperada por uma escola londrina com reflexos ainda tímidos mas crescentes no novo jazz português. No caso dos Yakuza, essa hiperligação faz-se com as electrónicas e a espacialidade como noção de infinitude. Já sabíamos que eram banda de boas mãos, em 2 garantem ter óptimas ideias. Ainda buscam uma dialéctica singular mas essa consciência diluiu-se no gozo que esta música supōe - na prática de quem a faz e exercita, sem portagens para o improviso - e de quem a vive como um recreio lúdico gerador de uma odisseia sensorial. Os metais de João Mortágua e Diogo Duque trazem calor e frescura. Caminhos a explorar.
Nicolás Jaar - Piedras 1 e 2
Idiossincrasia, política e humanidade. Em 2020, Nicolas Jaar compôs Piedras para um concerto no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago do Chile, em memória das vítimas da ditadura de Pinochet. Entre 2022 e 2023, Piedras foi uma emissão de rádio num canal de Telegram. E já este ano, transformou-se numa instalação de 24 canais no Museu da Universidade da Cidade do México. Duas faces distintas com um guião comum. Dois amigos e a perda do músico e escritor Salinas Hasbú - a soma dos apelidos das avós de Jaar. Embora vivam rodeados de tecnologia de ponta, os cúmplices voltam aos métodos das rádios-pirata após um apagão geral da Internet. Piedras é isso. Um tubo de ensaio de tecnologia mutante com sujidade DIY. Mais incisivo e físico o primeiro andamento, mais atmosférico e abstracto o segundo até à erupção final de SS1 até SS4. Jaar está onde mais gosta, em terra de ninguém no papel de realizador e narrador, a desconstruir formas e desmanchar objectos para propor novas hipóteses sonoras e texturais. A investigação sensorial continua.
Underworld - Strawberry Hotel
Os Underworld nem sempre foram a banda de Dubnobasswithmyheadman e Second Toughest in the Infants mas trinta anos depois de ambos os clássicos, é a face techno dramática que continuam a dar. Strawberry Hotel sintetiza pretéritos sem se entregar a um piloto automático. Como um ciclo nocturno, é um álbum alegre, eufórico e medidativo para fechar os olhos de madrugada e abri-los quando o sol nasce.
Félicia Atkinson - Space As An Instrument
Como sair do corpo e entrar em órbita? O espaço é infinito em Space As An Instrument, ensaio cósmico de Félicia Atkinson em que a transcendência física não tem limites para o desencarceramento mental. Pianos, sintetizadores, electrónicas e recolhas de sons ambientes, captadas em telemóvel, fundem-se num licor de consciência e desconhecido. E o olhar alcança o cosmos.
Molero - Destellos El Éxtasis
Faltam palavras para descrever Destellos Del Éxtasis. O anterior Ficciones Del Trópico inspirava-se nos mistérios da Amazónia. Surpresa! Deu baile ao algoritmo e ainda teve duas edições físicas esgotadas, masoO segredo continua lá. À cortina de fumo, só a música pode responder. Nebulosa, impermanente, metamorfoseada. Música indizível mas não impenetrável, bem pelo contrário. Quanto melhor conhecemos a floresta, mais férteis as cores, as texturas e os cheiros.
Ece Canlı - S A C R O S U N
Tal como no caso de Molero, não é fácil definir um objecto não-linear como S A C R O S U N. Há quatro anos, a investigadora sonora aceitava as limitaçōes terrestre em VOX FLORA. Agora, o horizonte expande-se no cosmos como um infinito particular em a ascenção movido pelas infinitas possibilidades da interseccionalidade entre música, imagem e filosofia. Imaginário e prática autodeterminados pelas ligaçōes entre espaço e matéria.
Sadistik - At Night The Silence Eats Me
O GPS de referências ajuda a diferenciar At Night The Silence Eats Me. Imagine-se um rapper de rima veloz como Kendrick Lamar, auto-consciente como Nas com o passo taciturno de Thom Yorke. Sadistik estudou pelos manuais mas não soa a um MC fechado nas bíblias do rap. A cabeça baixa transmuta a rima para um lugar emocional de observação céptica e intimidade frágil, com dotes elevados de escrita e virtuosismo imediato na verbalização.