Na sua definição formal ou na abreviatura de pop(ular), a pop é uma consequência. Não se alimenta a si mesma, vampiriza outros sangues e alimenta-se de fibras alheias como um animal obsessivamente faminto. Porque a pop está para a indústria como a roupa está para as estaçōes. Renova-se, reinventa-se, recicla-se mas todas as versōes desaguam na mesma conclusão: a pop é um espelho, como o manequim na montra da loja. A pop não inventa, rumina. O que fez David Bowie ao longo dos seus heterónimos se não importar periferias estéticas para o centro dos acontecimentos e com esse gesto de aproximação inverteu o rumo do trânsito?
Em fevereiro deste ano, Charli XCX reproduziu o clímax das raves clandestinas dos arredores de Londres em Bushwick no bairro bem afamado de Brooklyn com o selo do Boiler Room. Dos 25 mil inscritos apenas 400 puderam passar pelo porteiro. Entre eles, convidados como o Easyfun, o produtor do single Von Dutch, o patrono da PC Music, AG Cook, o baterista dos 1975, produtor e noivo George Daniel, a actriz Julia Fox, e a bailarina, actriz e influenciadora Addison Rae.
O vínculo com a cultura rave e as mutaçōes históricas, da ilegalidade à glamourização, é coerente com alguém que despontou num MySpace desinstitucionalizado, foi descoberta por um promotor de festas marginais e teve na electrizante I Love It, em conluio com as Icona Pop, uma passadeira. Podia ser efémera, como tantas vezes sucede em figuras pop emergentes que, receosas de perderem o comboio, colocam o efeito à frente da causa. Não foi o caso de Charli XCX - conspiradora da sombra para a luz, tão cúmplice de cientistas maradas como Sophie, ou facilitadoras como Anitta ou Carly Rae Jepsen, como confortável entre pares como Caroline Polachek e Christine & The Queens.
Nas rodas todo-o-terreno, a intenção é evidente: trazer novos ventos para o olho do furacão. Os unicórnios da electrónica encontraram na pós-rave de final dos anos 90 o par perfeito para a cultura meme de dança. Não é por acaso que se tem assistido a uma reconciliação com o thrash dos Vengaboys, nem é inocente a recuperação de alguns tecidos da época (a velha história da moda a reciclar-se de tempos a tempos) como um certo hardcore ‘92, os edits constantes de êxitos de época (I’m Blue, Push The Feeling On) ou a adulação do TikTok pela versão vespertina do drum’n’bass de Pink Pantheress. Charli XCX nem tem medo de reciclar ao lixo ao robotizar a voz tipo Teletubby como os Aqua, nem dilui a pesquisa na atracção pop. A complexidade de Brat está na acumulação de camadas sem fronteiras entre o aceite e o azeite. E isso é mais sério que infantil.
Há uma grande festa a acontecer em Brat e a folia da Partygirl era apenas o convite perfumado. O álbum vive bem entre extremos. A produção é potente, volumosa e maximalista. Repetitiva mas dinâmica. Canaliza a hyperpop sem lhe depor o excesso - AG Cook é um dos tripulantes, assim como outros exagerados natos como Gesaffelstein e Hudson Mohawke -, mas o comboio de Charli XCX é uma montanha russa de euforia e fragilidade, dominada pelas ansiedades própria de quem vê a adolescência expirar o prazo como os iogurtes, e, ainda assim, persistente no prazer e desejo sem complexos de culpa.
Brat é proprietário de um equilíbrio invulgar entre experimentação laboratorial e auto-consciência pessoal. “Yeah, I don't know if you like me/Sometimes I think you might hate me/Sometimes I think I might hate you/Maybe you just wanna be me”, questiona em Girl, So Confusing. As dúvidas de Charli XCX não partem de um existencialismo navegador de Sartre mas seguem a evolução de uma cultura de redes sociais que só pode sentir com a cabeça a andar à roda na vertical. Ao invés de projectar o intocável e inatingível, como cometa pop em êxtase, afirma-se confusa, caótica e como tal, humana e ressacada.
Brat é um passageiro da noite que saiu directamente da maternidade para o clube sem passar pela fila mas a embriaguez e o hedonismo não lhe mataram a sede de ousar, estreitar ligaçōes subculturais e resgatar a plasticidade hiperbólica do electroclash. No pós-11 de setembro como agora, por motivos parecidos como conflitos armados e apreensão colectiva, havia necessidade de encontrar saídas de emergência. Brat é uma válvula de escape mas daqui saímos todos vivos.
Enquanto Cowboy Carter de Beyoncé usa o country para confrontar e interrogar as tradiçōes americanas, Brat é uma coligação verde que tem na pista o centro de gravidade de um conjunto de sensibilidades unidas por uma visão comum da arte-pop como transmissor de generosidade. Um jorro criativo de uma figura que atingiu o zénite de madrugada. O acontecimento pop do primeiro semestre do ano.
Recomendaçōes não algorítmicas
Kaytranada - Timeless
O que seria da Renaissance sem Kaytranada? É irónico não encontrarmos o seu nome na ficha técnica quando o luxuoso álbum de Beyoncé tem todo ele a sua arquitectura mas talvez seja intencional não o creditar para não roubar protagonismo à abelha-rainha. A marca de Kaytranada na era digital da pop tem cauda longa mas ao contrário dos seus pares, fez-se da electrónica clássica (deep house) para o eixo hip-hop/r&b e não a partir dos grandes centros. Timeless é confortável e elegante. Um grande boutique hotel lotado por famosos da cultura negra, de Childish Gambino a Tinashe, Anderson.Paak ou Thundercat, mas o diálogo nem sempre é democrático e falta-lhe o efeito-surpresa que projectou Kaytranada como um futurista crédulo. A intenção até pode passar por projectar uma relação mais fluída com o tempo, de assinatura própria e menos de tendência, mas Timeless soa a beco sem saída, previsível e enredeado, apesar dos bons momentos com Gambino, Tinashe, Paak, Channel Tres e Durand Bernarr.
Bar Italia - The Twats (EP)
Curioso o caso dos Bar Italia. Não se distinguem pela invenção mas têm um viço adolescente que os distingue dos demais pela consciência da espontaneidade. Depois de quatro álbuns que prometem mas não explodem, The Twats é o mais conciso de todos os seus objectos. Talvez o caminho passe mesmo por continuar sem largar bombas.
Actress - Statik
Uma remistura para Carmen Villain aproximou Actress da Smalltown Supersound e deu nova vida ao reino do intangível. Continua a ser ingrato pôr por palavras a ordem sensorial de Darren Cunningham. É solitária mas tem vida. É nocturna mas tem luz. É científica mas não se rege for fórmulas. Liberdade talvez seja a melhor definição para a sublevação por atmosferas e planetas.
Miaux - Never Coming Back
Em 1962, O Circo das Almas, de Herk Harvey, foi crucial para o cinema perturbado de David Lynch e George Romero. Miaux interpreta a banda sonora à sua maneira, fazendo dos sintetizadores modulares o olhar de uma banda sonora que evolui de concreta a pictórica. Tal como o filme, que segue uma personagem em trânsito para uma nova cidade após um acidente, há uma transformação assombrada por fantasmas e apariçōes sem convite.
Aphex Twin - Digeridoo (reedição)
A intenção de Aphex Twin era criar bombas para enviar toda a gente para casa mas quando se tem um Isoprophlex ou um Phloam na mala, as sirenes só podem disparar. Em 1992, Richard D. James não se contentava com a chuva ácida e queria trazer outras estaçōes para a intempérie. Conseguiu mas não é Digeridoo que a festa é interrompida. Incrível reedição com registos das raves de Cornwall onde esta música era despejada.
Polido - Hearing Smoke
Música improvável e indescritível, signatária de um futuro pós-futurista, desalgemado de novas repressōes algorítmicas. O som enquanto matéria plástica e evolutiva, como corpo celeste no espaço sideral. Será a próxima revolução em estado líquido?
Serpente e CZN - Oferendas
Uma vontade antiga por fim consumada. A potência tribal do ritmo traduzida em tambores e na dinâmica das texturas. Oferendas tem o melhor dos mundos de Serpente e de CZN (João Pais Filipe, Valentina Magaletti, Leon Marks).
Remi Kabaka - Roots Funkadelia (reedição)
Ouro nigeriano polido nos estúdios da Motown, em Los Angeles. Nota-se porquê. A pulsão é afro-beat mas o luxo dos metais é prata da casa de Berry Gordy Jr. O melhor de dois mundos atirado para um caldeirão explosivo. Primeira reedição desde 1980 de um disco pelo qual se andava a pagar cerca de 500 euros.