O que acrescentar quando a interpretação é tão boa quanto a obra? “Quis exprimir a absoluta loucura que sinto à minha volta neste momento”, escreve Kim Gordon no texto de apresentação de The Collective. "Estamos a passar por um período em que ninguém sabe realmente o que é a verdade, em que os factos não influenciam necessariamente as pessoas, em que todos têm o seu próprio ponto de vista, criando uma sensação geral de paranóia. Para relaxar, sonhar, alienar com drogas, programas de televisão, compras, Internet, tudo é fácil, suave, conveniente, de marca. Isso deu-me vontade de romper, perseguir o desconhecido e talvez até falhar”, descreve.
A “rapariga da banda” dá-se ao trabalho. Deixa o absolutismo para os sábios e lida com a dúvida. The Collective é uma cave desarrumada. Uma muralha distorcida de aço. Nem sequer é um disco de rock desconstruído, como alguma crítica o tem tratado. É demasiado incerto e desconfiado para se circunscrever à fronteira de um território familiar. Quando muito, o rock é uma autópsia. Um corpo esquartejado com patas de trap, tripas de hip-hop ruídoso e fígado industrial. Pasta sónica de quem aceita o caos como ferramenta e canaliza a desordem de fragmentos ilógicos.
The Collective é um álbum sobre a perplexidade que lida com a incompreensão como chave de descodificação da loucura. Tem cédula de septuagenária mas a idade é apenas um número. O rock apenas uma noção. Os Sonic Youth uma escola. O passado talvez um país idealizado. O presente uma panela de pressão. Esta Kim Gordon é honestamente desconfortável e idiossincraticamente perturbadora. Convida-nos para o laboratório. Conversa, provoca e dilacera, mas ao contrário da ciência, não faz prova. Apenas expōe. Com sarcasmo e auto-crítica. Sem cinismo nem auto-exclusão.
The Collective começa com um Bye Bye - lençol de ruído em cama de trap. Adeus que me vou? A fábrica de peças de The Collective faz-se com a viagem ao centro dos subs de I Don’t Miss My Mind. A voz turva ligeiramente sobre o livro de estilo de hip-hop industrial dos Shabazz Palace, clipping. e Yves Tumor (de quem o produtor Justin Raisen é cúmplice).
Há um admirável formigueiro nos pés de Kim Gordon no transitar da juventude sónica para a cultura do algoritmo, sem receio de participar com propostas para a natureza violenta do seu tempo. Ouvem-se ecos dos Suicide em Believers. Resquícios dos Sonic Youth talvez no processo de trazer caos para a ordem. O rock enquanto ideologia, lubrificada sem limites de género. A fúria do pós-punk, a modernidade de algum hip-hop, o vanguardismo novaiorquino numa centrifugadora. A avó Kim numa vernissage? O convite continua à espera.
É um álbum de uma enorme coragem na proposição. De uma tremenda lucidez sobre a falta dela. De uma grande humildade no diagnóstico dos factos. E de ousadia no uso do desconforto como ânimo. O didactismo de The Collective está no exame e não na nota. Poucos vezes nos últimos anos se ouviu assim o real tão cru e transparente. Na tragicomédia do prato do dia, o futuro logo se vê amanhã quando acordarmos. Isto sim é radicalismo.
Ed. Matador/Popstock
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