Primeiro foram os Sons of Kemet a desligar a ficha. Após uma década a electrizar o afro-beat com álbuns soberbos como Your Queen Is a Reptile, e a escalar a montanha de pequenos clubes até concertos incendiários nos maiores festivais do mundo, retiraram-se por cima em 2022. O baterista Tom Skinner já estava dedicado aos The Smile, a nova morada de Thom Yorke e Jonny Greenwood dos Radiohead, enquanto o saxofone de Shabaka Hutchings, um dos principais embaixadores da revolução jazz londrina, serpenteava na galáxia hiperdimensional dos Comet is Coming. Tal como os Sons of Kemet, o trio arrumou às boxes no ano passado não sem antes deixar um rasto de êxtase em Portugal, primeiro no LAV em março e depois debaixo de tempestade no Primavera Sound em junho.
Era um final de ciclo instrumental na vida do gigante. Após anos a devolver o jazz às suas fundaçōes libertárias, a sincronizá-lo com o hip-hop e com os sistemas digitais, e a assumir o papel de embaixador de um movimento revitalizante, perdera o entusiasmo pelo saxofone (e pelo clarinete), fruto de anos asfixiantes de estrada apenas interrompidos pela pandemia. A 7 de dezembro de 2023, Shabaka deu o último concerto como saxofonista na reinterpretação do clássico A Love Supreme de John Coltrane, no Instituto das Artes Contemporâneas de Londres. O reino estava desfeito.
A Black Meditation já vinha de trás. No mini-episódio de 2022 Afrikan Culture, apenas assinado como Shabaka, a estrela cadente do jazz deixava para trás a tensão entre raiva e euforia, praticada em ambos os colectivos, e a revisitação da diáspora de Shabaka and the Ancestors, para se dedicar à shakuhachi, uma flauta longitudinal japonesa feita de bambu. Sem surpresa, o apocalipse foi devolvido ao cosmos e a reflexão ocupou o centro gravitacional. Afrikan Culture estava mais perto de um ensaio new age do que da pulsão jazzística.
Entre esses 28 exploratórios minutos e Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace há uma conexão mas Shabaka não impōe uma cerca sanitária ao passado recente. Além da shakuhachi e de outras flautas, respira através do clarinete e resgata o saxofone na literal Breathing. A música é transparente e livre mas também complexa ao transcender as barreiras físicas. Um longo poema sónico sublimado pelas propriedades dos convidados: os pianistas Nduduzo Makhathini e Jason Moran; o teclista Surya Botofasina; os harpistas Charles Overton e Brandee Younger; Tom Herbert e Esperanza Spalding no baixo; Marcus Gilmore na bateria; Carlos Niño na percussão; as cordas de Miguel Atwood-Ferguson e as vozes de Moses Sumney, Saul Williams, Elucid, Eska Mtungwazi e Lianne La Havas em diferentes discursos, papéis e posturas. Shabaka perdeu o apelido mas ganhou muitos amigos - o disco também lhes pertence.
O pai Orville Hutchings, conhecido por ser o poeta dub Anum Iyapo (e autor de capas de King Tubby) sela Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace com a sua saliva em Song of the Motherland. Floating Points e Laraaji são eles mesmos, inomináveis e tripulantes do incógnito, na desbloqueadora I’ll Do Whatever You Want. A mesma em que André 3000 é uma presença nada inocente. A expedição ajuda a resolver o diagrama de intençōes de Shabaka. O álbum encena uma atmosfera de suspensão para fantasiar uma sessão inspirada por bíblias como Journey in Satchidananda de Alice Coltrane (de quem Surya Botofasina foi aprendiz) ou Afro-Harping de Dorothy Ashby, e de poesia afrocêntrica, dos históricos Last Poets aos contemporâneos Irreversible Entanglements.
A reinvenção não é tão radical como a de André 3000 porque nem Shabaka teve os seus Outkast nem o jazz tem o impacto cultural do hip-hop. No final do ano passado, New Blue Sun matava as esperanças de um regresso ao xadrez do rap e dava a conhecer André 3000, renascido como flautista. Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace tem parecenças com essa inesperada reinvenção, e não apenas no ar solto pela flauta. Arruma parte do corpo de trabalho de Shabaka num só volume mas não se limita à auto-citação. Introduz um novo ciclo, resistente ao medo e aliado do risco. Recusa o conforto proporcionado pelo desassossego e salta na atmosfera com o pára-quedas de anos de nota máxima na disciplina de filosofia. A idiossincrasia é aumentada com o murmúrio de Moses Sumney, o verbo de Saul Williams e Elucid, e a doçura de Lianne La Havas.
Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace é um disco associativo e transformador, de um ângulo pessoal, que a par de New Blue Sun devolve o jazz a uma das suas residências espirituais. Talvez esteja a querer dizer ao canal auditivo que precisamos de parar, respirar e reinventar o mundo novo. Como Huxley, como André, como Shabaka.
Ed. Impulse Records
Recomendaçōes não-algorítmicas
Emmy Curl - Pastoral
Emmy Curl não exprime apenas uma relação antiga com a tradição. Confessa-a a partir de uma região: Trás-os-Montes de onde é natural. É um disco soberbo, de intensa e apaixonada exploração da cultura pagã, transmitida através da oralidade, a partir da sincronia com os sintetizadores e alguns instrumentos analógicos. Emmy Curl faz de Pastoral a efabulação de um imaginário inocente e autenticado, como uma criança a correr descalça pelos verdes campos. Dez anos depois de ter prometido vir a ser um dos próximos futuros da música portuguesa, este álbum é o fruto maturado a cair da árvore. No corpo em movimento da tradição, só por lonjura não terá direito a louvores. Pelo menos um pedaço próprio de terra já lhe pertence.
Metz - Up On Gravity Hill
Boa semana na segunda liga do rock. Os Metz tiveram razão antes de tempo, quando resgataram o rock furioso de Seattle aos Jesus Lizard, mais até do que os Nirvana, antes de os Idles recolocarem o primitivismo punk no mapa através do neoactivismo (o baterista Jon Beavis costumava tocar com uma T-shirt dos Metz). Up On Gravity Hill não perde qualidades e talvez tenha algumas das cançōes mais completas na sincronia entre ruído e melodia como Entwined (Street Light Buzz) e Superior Mirage. O violino de Owen Pallett ajuda.
Still House Plants - If I don’t make it, I love u
A liberdade espiritual do jazz, a adrenalina do punk, a pulsão do rock garageiro e os travōes do slowcore. Os Still House Plants são tudo isso que os Black Country New Road ou os Black Midi exemplificaram nos últimos anos, sem estar presos a nenhuma das facetas ou soar a decalque. If I don’t make it, I love u é a conclusão da universidade, após anos de estudos em pisos subterrâneos. É provável que o palco enalteca a sua maior virtude: a imprevisibilidade teatral da vocalista Jessica Hickie-Kallenbach.
Bodega - Our Brand Could Be Your Life
"Qual a diferença entre um artista e um publicitário", interroga a Siri narradora de Our Brand Could Be Your Life. A pergunta faz lembrar os 7 Television Comercials dos Radiohead - colecção de vídeos (ou melhor, anúncios televisivos) da banda por alturas de OK Computer. A resposta é um disco rasgado, nervoso e provocador de um sarcasmo inteligente com letras sobre Noam Chomsky e o consumismo, que tornam o discurso tão valioso quanto a cama de rock arty, herdeira dos Devo e dos LCD Soundsytem.
Dog Unit - At Home
Se um promotor decidisse organizar uma noite com os Bodega e os Still House Plants, os Dog Unit seriam bons candidatos a abrir as hostes. At Home, o álbum de estreia, é integralmente instrumental mas nem por isso diz pouco. Rock matemático, ansioso por acordar os vizinhos, herdeiro dos genes kraut dos Stereolab, da idiossincrasia dos Tortoise, e do instinto melódico dos Strokes. Não arrebatam pela surpresa mas a fusão de matérias-primas distingue-os.
James Elkington and Nathan Salsburg - All Gist
A ordem é para desacelerar. All Gist é o espelho da serena reciprocidade entre os guitarristas James Elkington e Nathan Salsburg. Um álbum de duetos sem voz, fundado na relação entre espaço e tempo, e em todo o vocabulário transmitido pelas seis cordas.
June Carriers - Equanimity
Francisco Silva diz adeus à lida musical com um pseudónimo. Suspenso Old Jerusalem, o último aceno pertence a June Carriers. Muda a identificação, mantém-se o modo precário de operar. Equanimity resgata os princípios da folk, sem precisar de palavras para transmitir o universalismo necessário da serenidade e a presença urgente do silêncio.
Future e Metro Boomin - We Still Don't Trust You
Em nome próprio ou em sociedade, há vários anos que o álbum anual de Future é de uma inconsequência atroz. We Don't Trust You, o tal da boca de Kendrick Lamar a Drake e J. Cole, que tantos amargos trouxe ao segundo na resposta patética da já retirada 7 Minute Drill, não alterava nada neste diagnóstico. Os prognósticos para a segunda parte do jogo da parelha do Sul não podiam ser piores mas We Still Don't Trust You surpreende ao renegar o trap formatado para estender a toalha na piscina e servir um cocktail de r&b dengoso e vulnerável, salpicado pela pop electrónica de The Weekend. A produção é deliciosa com samples dos Boyz II Men e Isley Brothers, a Future fica-lhe bem o fato de crooner.
9T Antiope - Horror Vacui
Transmissão da casa dos horrores da dupla de expatriados iranianos Nima Aghiani e Sara Bigdeli Shamloo. Horror Vacui parte de um cenário de destruição para conceptualizar uma ideia vivida de resistência e superação como se de uma banda sonora se tratasse. Involuntariamente, convoca os fantasmas de Diamanda Galás e dos Recoil de Alan Wilder.
Nico - The Marble Index (reedição)
Nico estava num estado miserável quando deu à luz The Marble Index. Não há nada de luminoso no miserabilismo do segundo álbum a solo. Determinada em tomar as rédeas de processo, trabalhou com John Cale como produtor e músico mas esta é a caverna de Nico, presciente de uma vanguarda cinzenta e inspiradora do movimento gótico.
Abba Gargando - Abba Gargando (reedição)
Lo-fi tuaregue? Abba Gargando, álbum homónimo do músico do Tombuctu, resulta da gravação com o telemóvel de originais e clássicos do folclore, de casamentos eufóricos a gravações tranquilas à lareira nos campos de refugiados.
O.B.F. x Iration Steppas - Revelation Time
Este é o dub digital dos trovōes. O álbum colaborativo de Mark Iration, Dennis Rootical e Rico O.B.F é uma viagem ao centro do eco com uma secção rítmica pujante e graves cavernosos. A classe jamaicana dos 90 na era digital.
Creation Rebel - High Above Harlesden 1978 - 2023
Reedição da obra essencial dos Creation Rebel, a banda residente original da editora On-U-Sound de Adrian Sherwood.
Low End Activist - Airdrop
Os últimos anos têm sido pródigo na reanimação da cultura rave e de algumas das suas subespécies como o jungle e o breakbeat. Airdrop é uma criatura mutante e disforme habitada por fantasmas de armazéns abandonados e descidas ao centro do grave.