Tirar os Majesty Crush dos escombros
O melhor álbum de guitarras de 2024 foi gravado entre 1991 e 1994
David Stroughter escrevia com brilho sobre temas complicados: sexo, pornografia, fantasias com actrizes, adição e morte. Em No. 1 Fan, o refrão “I'd kill the president (For your love)” revisitava o caso do psicopata John Hinckley Jr. que em 1981 tentou assassinar o presidente Ronald Reagan para impressionar Jodie Foster, por quem tinha uma fixação. A canção testava os limites do êxtase (desejo, obsessão, sexo) e da finitude (morte), temas permanentes nos Majesty Crush. Conduzida por um baixo à Cure com as notas de Pictures of You invertidas, envolvia-se em ruído para resguardar a angústia de Stroughter que, no entanto, tirava “My butterflies won't go away” do peito com o romantismo de Marvin Gaye e a intensidade de Syd Barrett. Era alguém que enfrentava os fantasmas dentro das cançōes e os expulsava como uma purga.
Não eram banda de fácil arrumação nem se satisfaziam com padronizaçōes. Conotados com os movimentos shoegaze e dream pop, tinham semelhanças com os My Bloody Valentine e com os Jesus & Mary Chain mas também com a leveza física dos Mazzy Star. No entanto, foi nos incategorizáveis e algo esquecidos A.R. Kane que se inspiraram. Estiveram dentro do sonho ao abrir para bandas da mesma região sonora como My Bloody Valentine, The Verve, Chapterhouse, Curve e Julian Cope mas a queda para o precipício foi sempre maior que a extracção da lotaria.
Os Majesty Crush nasceram das cinzas dos Spahn Ranch, banda pós-punk que tinha como secção rítmica o baixista Hobey Echlin e o baterista Odell Nails III. Stroughter era amigo de escola do baterista e foi convidado, em 1988, para dar voz a uma canção que fundia punk e dança sem grandes regras. “What would you do if two lions attacked me, tearing me up with their claws?”, o centro da letra, transmitia sinais que se dilatariam no tempo. “Ele soava como o Marvin Gaye no I Want You, e elevava a nossa canção pós-punk danificada pela arte a romance e sacrifício num só verso”, contava o baixista ao Metro Times de Detroit em 2006.
Foi Stroughter quem apresentou bandas como os Xmal Deutschland e, em particular o disco 69 dos A.R. Kane, vendido pelo futuro guitarrista Michael Segal, a Echlin depois de se tornarem colegas de quarto. Quando os Spahn Ranch acabaram, Stroughter, Segal, Echlin e Nails fundaram os Majesty Crush. Segal, que nunca tinha tocado guitarra, tentou apanhar Ceremony dos New Order. “Em pouco meses de ensaios, tínhamos oito cançōes e o primeiro concerto foi uma primeira parte dos Mazzy Star”, contava.
Relacionavam-se com os moldes éticos da Factory e da 4AD mas andavam encantados com o boom sónico de Jesus And Mary Chain, My Bloody Valentine, Spacemen 3, Loop e Galaxie 500. A diferença estava na organização do caos. Como estes, os Majesty Crush também queriam ser uma experiência-limite mas escrita como um romance. “Ele era o Marvin Gaye na pele do Syd Barrett”, descrevia Echlin ao Metro Times.
As cançōes eram longas e espaçosas, dotadas de uma secção rítmica espessa, ainda com marcas do pós-punk, e de camadas rugosas de guitarras. O centro de gravidade estava, porém, no carisma, poesia e degradação do vocalista. Uma figura misteriosa, visceral e efémera, como o futuro haveria de confirmar. As nuances não os deixavam ser uma coisa só, e por essa razão estiveram esquecidos demasiado tempo - talvez mais ainda que os A.R. Kane. Até agora.
Vinham da mesma Detroit lubrificada por MC5 e The Stooges, pela Motown que então editava um catálogo fascinante de Diana Ross, The Supremes, Marvin Gaye, Stevie Wonder e The Fourtops, pelas primeiras festas de techno com Derrick May e Juan Atkins e pela emergência de cabecilhas do hip-hop como J Dilla, Royce Da 5’9” e Danny Brown, anos antes de Eminem ser o artista mayor da cidade. “Detroit nunca teve uma cultura de segregação do underground”, defendia Nails à Fader. Pontas soltas que os distinguiam dos demais mas não os deixavam ver com definição.
Para além disso, Nails e Droughter eram negros. Uma raridade na cultura branca do rock. Na singularidade racial, Majesty Crush estavam para a primeira metade da década de 90 como os TV On The Radio para o final dos anos 00, sem os privilégios de Brooklyn. E se o som informado sobre as novas correntes inglesas era típico de cidade, a mistura racial tirava-lhes a pinta de banda de subúrbio. Distinguiam-se mas aceitavam-no com naturalidade, aceitando que a música agisse como o primeiro veículo da diferença.
Quando No.1 Fan foi estreada em 1992, logo a seguir a Nevermind ter deixado o mundo em negação, provocou buliço nos corredores de numa indústria esfomeada de carne indie para vender na MTV à América inerte. Apesar da atracção pelo flagelo e auto-depreciação, os Majesty Crush “não queriam ser os novos Nirvana”, afirmava o baixista em entrevista recente à Fader. O single apresentava Love 15, o primeiro e único álbum da banda, reeditado em 2023 como parte da operação de resgate do breve mas intensa existência da banda.
Os Majesty Crush deixaram apenas esse LP e alguns singles/EP como o surrealista Cicciolina (1991) e o denso Purr (1992). Em cançōes como a deslumbrante Penny for Love, escrita após Droughter ter estado detido duas noites acusado de assalto, transmitiam um sentido de urgência que soavam a grito de alerta. É um dos tesouros da abundante colecção Butterflies Don't Go Away, o resumo alargado e definitivo de uma discografia esparsa e invisível até aqui, fortalecida por versōes alternativas dos singles.
Love 15 saiu com a chancela da Dali/Chameleon, uma subsidiária da Elektra, da qual também faziam parte os pré-Queens of the Stone Age, Kyuss, e Lucinda Williams. Quando a independente foi dissolvida, o mundo de Droughter desabou. O EP Sans Muscles, onde se pode ouvir o punk-funk de If JFA Were Still Together, é uma morte lenta e dolorosa e o enterro de uma história que esteve sempre mais próxima do abismo do que da salvação.
Ainda com a banda activa, Stroughter fora diagnosticado com bipolaridade. “Ele era um querido até deixar de ser”, reconhecia Segal à Fader. “Chegávamos de um dia de trabalho e ele tinha estado o dia inteiro na sala de ensaios a magicar. Conseguia ser um cabrão ao ser tão intenso”. Nails recorda-se de Strougher reviver à flor da pele as questōes existenciais de Jim Morrison transcritas na biografia Daqui Ninguém Sai Vivo. Inspirado pelo Rei Lagarto, uma noite de concerto lembrou-se de incitar um motim. “Ele não pensava de maneira convencional”, recordava à revista.
Após o fim, em 1995, ainda assinou como P.S. I Love You, mudou-se para Los Angeles, foi apresentador da MTV e quando os bolsos ficaram vazios, vendeu carros antigos em leilōes. Era o típico sobrevivente mas a precariedade económica vedou-lhe o acesso a medicação necessária para o controlo emocional. Em 2017, foi morto pela polícia de Los Angeles devido a uma ameaça com um machado. O juiz nomeado para o caso concluíu que diversos agentes envolvidos abusaram da força. Tinha 50 anos e o obituário chegara como a encarnação de um pesadelo.
Quando o shoegaze é ressuscitado no TikTok, sem que se vislumbrem limites entre nostalgia estética e fenómeno de comunicação, bandas como os Wrisp reproduzem de forma mecânica o livro de estilo dos My Bloody Valentine, e os Majesty Crush são parte de inúmeras playlists, esta reedição devolve a verdade à ruína onde ela sempre esteve alojada, e é justa para com uma banda que pode ter passado despercebida entre os decibéis do ruído mas acaba de editar o melhor álbum de guitarras de 2024, comprimido entre 1991 e 1994.
Ed. Numero Group
Recomendaçōes não-algorítmicas
AG Cook - Britpop
Esta Britpop nada tem a ver com o desvario flácido dos anos 90, com guerras entre os Blur e os Oasis e muito menos se dilata com amplificadores Vox. O mais ousado dos produtores de hiperpop vira a página da PC Music com um álbum duplo de escolha múltipla, de cançōes de rigor formal a fantasias new age, dividido entre o neo-classicismo da excentricidade pop à vontade de inventar novas ciências. É provavelmente a experiência mais coesa de AG Cook em estúdio. Coesa na diversidade, expansiva nos horizontes, como um fim em si ou instrumental para outras vozes pop. Quando Brat de Charlie XCX chegar, já sabemos de onde vem esta água tratada.
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Não é bem um álbum novo. Atavista é a arte final do confinado 3.15.20, com novas versōes e o rodeo inédito Little Foot Big Foot com Young Nudy. Atlanta é a sede deste teatro musical, ancorado numa produção sofisticada de funk hedonista. Sabemo-lo de cor ao ouvir Algorythm ou a muito feliz Psilocybae. Já a longa travessia de Sweet Thang denuncia Prince como um dos mestres-escola. Nada de novo, aliás. Nas conversas entre Donald Glover e Childish Gambino, a teatralidade é o actor a correr atrás do artista musical.
Yaya Bey - Ten Fold
Tal como para Erykah Badu, Yaya Bey tem uma consciência livre sobre o significado de r&b. Ten Fold começou a nascer quando o pai morreu, durante a última digressão. O álbum arrisca em relação à sumptuosidade de Remember Your North Star e desprende-se das camisas formais de forças. Da dor nasce um cosmos criativo, amparado nos ombros da catarse e do posicionamento político feminista.
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Que conforto poder voltar aos Arab Strap com caixas de ritmos, cordas de aço e o sotaque cerrado de Aidan Moffat a expectorar poesia em ruínas sobre a extrema-direita, misoginia na Internet e o regresso dos extremismos. Sulfúrico como o ácido.
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O território é familiar: beats partidos, cozidos com jazz, funk, hip-hop e samba. A virtude não está na diferença mas na perícia da costura. Quiet Dawn bebe da sabedoria de J Dilla para diligenciar o analógico e o digital e exercitar-se nas fronteiras entre o corpo e a espiritualidade.
BIG DOPE P - Toto La Castagne
Odisseia dinâmica por subculturas electrónicas nem sempre aceites em todas as pistas como footwork/juke e o drill. Big Dope P não se limita a seguir as setas e define o caminho por si com uma grande consciência melódica à francesa.
Keeley Forsyth - The Hollow
Há uma sombra de exorcismo a envolver The Hollow. Um manto negro que reflecte música sacra, pós-punk, bandas sonoras e religiosidade. Keeley Forsyth sai dos mesmos escombros de Lingua Ignota (agora Reverend Kristin Michael Hayter) com secretismo, drones e palavras sopradas. Colin Steston serpenteia no saxofone.
Shane Parish - Repertoire
As técnicas de dedilhagem de John Fahey continuam a fazer boa escola, sobretudo se cruzadas com outros saberes. No caso de Repertoire de Shane Parish com as orquestras em miniatura de Andres Segovia e o melodismo de Thelonious Monk. Música primitiva praticada com mestria que dilui o virtuosismo na transmissão de um conhecimento fundamentado na técnica.
Myriam Gendron - Mayday
Como se Lætitia Sadier se despisse de voltagem e se entregasse à folk por necessidade de viver na floresta, Mayday só precisa de voz e palavras para projectar a verdade da escritora de cançōes e livreira Myriam Gendron. Inspirado pela poética de Dorothy Parker, não é mais nem menos do que parece. E isso pode ser uma necessidade e tanto.
Mulatu Astatke - Mulatu Of Ethiopia (reedição)
Reedição de um marco fundamental do jazz etíope. Gravado em Nova Iorque depois de Mulatu Astatke se ter mudado do Reino Unido para Boston, onde iria frequentar a Berklee, funde as ferramentas técnicas do jazz com os fundamentos de liberdade que o fizeram aventurar-se por ritmos diversificados, do funk aos afro-cubanos, preenchidos com sopros, flauta, teclado e a marca inconfundível do vibrafone. Mulatu no pico da fecundidade.
Ghana Special 2: Electronic Highlife & Afro Sounds In The Diaspora, 1980-93
Os anos 80 permitiram "uma alquimia muito particular entre novas tecnologias musicais e profundas transformaçōes culturais, sociais e políticas no Gana", introduz o texto de apresentação da nova colecção da Soundway. Caixas de ritmos e sinterizadores reformularam o highlife e a circulação da diáspora começou a absorver disco, boogie, r&b, new wave e zouk. Está tudo documentado em cançōes de Pat Thomas e Gyedu Blay Ambolley.
Delta 5 - Singles & Sessions 1979-1981 (reedição)
Singles & Sessions 1979-1981 começa com a pujante e libertária Mind Your Own Business. É a canção central dos Delta 5, banda de Leeds do mesmo fluxo dos Gang of Four - o single foi captado enquanto estes gravavam Entertainment. A colecção sintetiza a urgência, poder de fogo e sarcasmo dos Delta 5. Apenas dois anos, chegaram para deixar uma marca de agitação, ousadia e personalidade. É provável que história não tenha sido justa para com eles. Ainda está a tempo.
Ocaso Épico - Acasos Épicos
Acasos Épicos é um dossier de radiografias à psique insana de Farinha Master em diferentes momentos com diferentes companhias, desde o registo do Rock Rendez-Vous em 1984 a ensaios no final dos anos 80, já depois de Muito Obrigado ter agitado águas. A teoria de que o álbum não faz plena justiça à anarquia dos Ocaso Épico é confirmada por delírios como Ponte Kevai, Sonic Yuppie, Calhambeque e Pátria, as duas últimas ainda com a futura Mler Ife Dada Anabela Duarte. Acasos Épicos devolve Carlos Cordeiro e os seus OMNIS à matriz performativa e experimental, próxima do caos dos Einstürzende Neubauten. Dança com o morto mas ainda não o devolve à vida.