Claire Rousay escreveu sentiment em hotéis, casas abandonadas, quartos “e outros locais privados”, como uma motoqueira on the road em busca de filiação para a clandestinidade. Haverá lugar mais íntimo e silencioso do que a casa de banho? Talvez tenha preferido não o declarar mas não espantaria se tivesse sido uma das residências artísticas.
Ao captar a reverberação desses lugares, Claire Rousay povoa o exílio e sentiment floresce como um exercício de partilha física e imaterial, e coexistente de caligrafia folk, tempo lisérgico, recolha de sons-ambiente e litros de Auto Tune. A solidão é a primeira guardiã destas cançōes de devolução do debate interno sobre pertença, culpa, sexualidade e sentiment. O isolamento é uma constante e necessário à partida de uma região interior para a podermos ouvir sem intermissōes ou máscaras. Não há pureza boa ou má, há transparência.
Ouvimos uma voz robotizada guiar a folk pastoral. A escrita é clássica mas o terreno é exploratório. Interlúdios, vozes faladas e micro-sons são parte da narrativa. O Auto-Tune já não surpreende ou choca mas a maneira delicada como Rousay o manipula é singular e decisiva para sentiment transcender formataçōes e formar o retrato digital-social da meta-trovadora. Serão os afectos a comandar a máquina ou a máquina a lamentar a incompreensão dos humanos? sentiment canaliza a consciência da dúvida como um gesto transitivo sem abdicar de a manipular ao seu jeito. Essa reflexão sobre a intersecção entre afecto e racionalidade é terreno fértil para vincar uma personalidade e afirmar uma transformação em relação ao conceptualismo do anterior A Softer Focus.
As cançōes granuladas de sentiment são como um rascunho a ganhar vida. Recebem, duvidam, apagam e refazem, embora nunca deixem de soar a um final aberto. O primado de vulnerabilidade folk dos grandes cantautores americanos dos últimos trinta anos - Bill Callahan, Will Oldham, Elliot Smith - é metamorfoseado por Claire Rousay, mas o que sublima sentiment é a alma enorme com que se entrega à inovação, como se não houvesse limites entre corpo e tecnologia. E isso é um gesto de profunda vulnerabilidade.
Edição Thrill Jockey
Recomendaçōes não-algorítmicas
Oren Ambarchi - Ghosted II
Segunda ronda da comunicação iniciada por Oren Ambarchi, Johan Berthling e Andreas Werliin em 2022. A liberdade de circulação é plena entre o jazz e as máquinas. A propulsão rítmica herda do funk tribalizado dos Can mas a tensão é suspensiva e hipnótica. É uma continuidade face ao anterior mas esta música é tão rara que a manutenção é um elogio.
Thom Yorke - Confidenza
Os motivos não são claros mas o melhor Thom Yorke dos últimos anos reside fora dos Radiohead, nos The Smile, a solo em Anima (2019), e nas bandas sonoras de Suspiria (2018) e agora Confidenza, do realizador italiano Daniele Luchetti, a partir do romance de Domenico Starnone. Tom Skinner, baterista dos The Smile, mantém-se na equipa mas esta música foi feita para filme e é preenchida por fragmentos de caos (jazz, kraut, sintetizadores modulares), permeados por cançōes esporádicas como Knife Edge e Four Ways In Time.
Six Organs of Admittance - Time Is Glass
Como um rio, Time is Glass corre ao seu ritmo para o mar. O tempo está do lado de Ben Chasny. Não deve haver muitas formas maiores de liberdade do que desligar o despertador e suspender a pressa. Time Is Glass é rural e citadino, sereno e assombrado, terreno e astral. Único.
Corridor - Mimi
No ressurgimento do pós-punk, há mais repetição e simulação do que reconstrução. Os Corridor distinguem-se pelo francês clínico e pelo tricot meticuloso de guitarras. Mimi, primeiro álbum dos canadianos em cinco anos, conserva a espontaneidade mas soma-lhe camadas de existencialismo, escrutínio e maturação colectiva.
Neil Young & Crazy Horse - F##in' Up
Neil Young quer deixar as gavetas vazias. Gravado ao vivo em 2023, F##in' Up recupera quase integralmente o álbum Ragged Glory, gravado na madrugada do grunge. A máquina de rock’n’roll não mostra sinais de desgaste. Continua a ser uma banda sem máscaras, explosiva, jovial e tempestuosa, com robustez para suportar os 15 minutos catárticos de Chance On Love (Love And Only Love).
Adult Jazz - So Sorry So Slow
Como sempre aconteceu na história, embora nem sempre lembrado ou reconhecido, a arte nåo se limita a aceitar os factos. Reage e reformula os acontecimentos. So Sorry So Slow. Dez anos depois de Gist Is e oito de Earrings Off!, os Adult Jazz continuam a mover-se nas fronteiras entre a beleza e o desconforto. O jazz serve como idiossincrasia libertária, mais do que limite estético, e teatralidade do vocalista Harry Burgess reitera romantismo, incerteza e ambiguidade. Podia ser uma obra literária, é uma peça; é um álbum de impulso multidisciplinar.
Gangrene (Alchemist e Oh No) - Heads I Win, Tails You Lose
Que grandessíssimo álbum de rap. Sujo, franco, cinematográfico. Há dez anos que Alchemist e Oh No (irmão de Madlib) não reactivavam a entidade Gangrene e em boa hora o fizeram. Heads I Win, Tails You Lose move-se na linha estreita entre a transparência dos versos e a cenografia dos instrumentais, habitados por fantasmas do rock psicadélico - uma das gavetas favoritas de produtores como Alchemist. E quando se um pedal de fuzz chamado Dinosaur Jr., (“Lay him out flat like a top scam / Marshall amplifiers on the stage, I’m in a rock band") o melhor é ligar o amplificador. Façam barulhoooooo.
Cadence Weapon - Rollercoaster
Bots, pós-verdade, insanidade colectiva. Em 2021, Cadence Weapon venceu o prémio Polaris, de melhor álbum canadiano, com Parallel World. Rollercoaster, o sucessor, é um esgoto a céu aberto da cultura de internet. Veloz, como uma transferência de dados, fragmentado, como um ecrã, e directo, como um Whatsapp. Um penso rápido que actua ainda mais depressa, eficaz a captar a atenção.
R.J.F. - Strange Going
R.J.F. são as iniciais de Ross J. Farrar, vocalista dos punks californianos Ceremony. Strange Going é um filme diferente, contudo. Minimalista, ácido, assente numa secção rítmica própria do pós-punk, conduzida pelo baixo, uma voz grave e um clima geral de incerteza.
BigIBrave - A Chaos of Flowers
O poder de A Chaos of Flowers está na fragilidade. A massa sónica é potente e vulcânica mas o jardim está na voz de Robin Wattie. E é esse magma belo e violento que alimenta a catarse contida de um álbum de equilíbrios entre silêncio e ruído, paz e tensão, terra e ar.
Harvestman - Triptych: Part One
Steve Von Till entrega-se a uma dieta de folk psicadélica e música ambiental que deixa Triptych: Part One mais próximo dos The Orb do que dos seus Neurosis - a influência de Adrian Sherwood é confessada. É o álbum mais aventureiro alguma vez assinado pelo guitarrista, partindo da desconstrução dos mosaicos erguidos até aqui.
João Paulo Esteves da Silva - Farnel
15 tradicionais portugueses irreconhecíveis nas mãos de João Paulo Esteves da Silva. Uma metamorfose operada com naturalidade, humanidade e profundidade, como é hábito no pianista.
Audrey Powne - From The Fire
Sublime álbum de estreia da multi-instrumentista Audrey Powne na BBE. A australiana cantou, escreveu, tocou trompete e orgão, e ainda produziu. From The Fire tem a nobreza espiritual de Dorothy Ashby, a alma de Roy Ayers e a perfeição formal de Herbie Hancock. From The Fire nasce das cinzas e deita labaredas.
Jane Paknia - Orchid Underneath
Jazz mas não é bem jazz. Rock mas não é bem rock. Seis ensaios desobrigados de compromissos pulso jazzístico, saxofones galácticos, e micro-sons de ficção científica, organizados como se de uma produção da Brainfeeder se tratasse. Caroline Polachek é a voz da canção homónima, Hagop Tchaparian é o co-piloto de Alice In Orchidverse.
Yosa Peit - Gut Buster
Os bons exemplos de desconstrução não destroem apenas pelo prazer de deitar abaixo. Fazem-no como reflexo de disformidade e necessidade de reedificar os blocos. Gut Buster é brilhante nesse exercício, reivindicando a ética anti-capitalista de Laurie Anderson, a sensabilidade de Arthur Russell e a ciência de Björk. O álbum de Yosa Peit é imprevisível mas o efeito-surpresa é unificado por um sentido de liberdade primoroso a chocar os neurónios.
Maruja - Connla’s Well
O novo jazz inglês já tem anos suficientes para deixar de ser novo, mas ainda tem as suas armas secretas como os proféticos Maruja. A pulsão furiosa de Connla’s Well é rock, o discurso provém do rap mas o corpo sonoro é jazzístico. Catártico.
Tomé Silva - Quando Voltar ao Chão
No quarto desarrumado de Tomé Silva (que tem trabalhado com Maria Reis), há música ambiental suspensiva, jazz livre, folk disforme e dub. A cola talvez seja a liberdade com que estes extractos de caos são unificados num mesmo tabuleiro.
H.R. Giger's Studiolo Vol.1 & Vol.2
Revisitação editada de uma cassete de 2014, H.R. Giger's Studiolo Vol.1 & Vol.2 é uma expedição caleidoscópica pelo fascinante imaginário de Spencer Clark, feito de vozes alienígenas, barroquismos inexplicáveis e efeitos sonoros. Do espaço sideral ao centro da terra sem tirar o cinto.
FUJI||||||||||TA - MMM
Submersão de Yosuke Fujita conceptual e formal, a partir da reconfiguração do Orgão de Tubos, que lhe permitiu ativar novas potencialidades sonoras e de composição do instrumento, enquanto expandia as possibilidades da sua própria voz.
Fernando - I Got, She's Got
Há quanto tempo um disco da DFA não soava tão bem envelhecido com a secção rítmica dos Liquid Liquid e um vocal irresistível, evangelizado pelas bíblias do house. I Got, She's Got começa pela remistura mas o original desacelerado ainda é melhor. O cume está em She's Playing With Fire.
Navalha - Denso
O rapper Navalha já tinha impressionado com o translúcido Vai de Negro, de 2022, e volta a ser fera em Denso. Nota-se que gosta de futebol - fala de Rui Patrício, Bellingham, Mason Mount - mas o interesse sobre o jogo é um olhar sobre a vida, com analogias certeiras e passes em profundidade para as costas dos defesas à procura de punchline com mira de Gyökeres.
Ícaro SDR - Electrocena
Ícaro SDR acelera, trava, mas nunca perde a calma. Como o título sugere, Electrocena relaciona-se com as brisas digitais de Kaytranada ou da Soulection poucas vezes exploradas no rap português, sem perder a palavra. O acordo é total.
Parker & si!va - Exibição d’Arte
Boom-bap do bom, de caneta aguçada e produção de quilate, sem excessos ideológicos da velha escola nem capacete na hora de saltar de cabeça na atmosfera autobiográfica. Parker é poesia vulnerável e si!va é arquitectura impressionista. Juntos, são como a espada e a capa.
Record Store Day
Punk 45: Kill the Hippies! Kill Yourself! The American Nation Destroys Its Young
Timeless Jazz Classics (Compiled by Gilles Peterson)
300% Dynamite – Ska, Soul, Rocksteady, Funk and Dub in Jamaica
Orbital - The Green Album
Mic Geronimo - The Natural