Porquê dissociar os melhores álbuns portugueses de 2024 dos internacionais? Porque o país é pequeno e nunca se produziu tanta música no mundo como agora. É apenas uma questão de escala, e não de complexo de inferioridade. Nada contra as tabelas sem fronteiras, antes pelo contrário, mas de outra forma música preciosa, excitante e sintomática do tempo e geografia mais próximos não teria o relevo merecido.
Sobretudo quando já são tão raras as curadorias editoriais a resistir à algoritmificação. As ideias não têm preço mas a potência da veiculação é cada vez mais ditada pelo capacidade de investimento em comunicação e de influenciar as regras do jogo. A música que escutamos nunca foi tão influenciada pela forma como maneira como ouvimos.
Por falar em complexos, Spectral Evolution de Rafael Toral não precisa de reconhecimento da Pitchfork ou da Wire para ser O álbum português de 2024. Basta-lhe ser o que é. Um raio de luz apartado da barbárie diária que nos devolve à grande beleza das pequenas coisas. Uma obra superior enobrecida por se mover em terrenos menos pisados.
2024 foi o ano das mulheres em Portugal. Não se trata de incitar uma guerra revanchista dos sexos. A desigualdade é sistémica. O meio é cancerígena, como está exposto no “caso Tágide”. Basta ver o medo gerado pelo caso para concluir que a mudança é mais lenta do que o esperado e desejado.
Elas movem-se, no entanto. Com autonomia e voz própria. Entre os dez álbuns cimeiros da Mesa de Mistura, seis representam feminilidade, independência e superação de contrariedades. E continua por esse rio abaixo .
Foi um ano terrível para a esperança na humanidade mas bom para a música portuguesa. Não é contraciclo, é salvação.
Álbum Português do Ano
Rafael Toral - Spectral Evolution
Poema sónico miraculoso, suspende o tempo e expande o espaço segundo uma ordem natural do movimento. Peça paciente de 47 minutos, dividida em 12 andamentos, sabota tranquilamente o real apressado e a voragem dos acontecimentos para nos devolver a um fascínio quase adolescente pelo desconhecido. Da liberdade de pensamento e prática atribuída pelo jazz, Rafael Toral ergueu um horizonte próprio de claridade, limpidez e comoção que não se racionaliza. Sente-se. Como um espectro solar.
2-10 (sem ordem)
Ana Lua Caiano - Vou Ficar Neste Quadrado
No álbum de estreia, Ana Lua Caiano é tanto como julgávamos e mais do que pensávamos. Na trilogia entre a poética do real, cenografia musical e estética visual, a ciência avança mas a mão na mão é humana. Vou Ficar Neste Quadrado é um feliz paradoxo entre a realizadora fechada numa bolha a criar o filme e a actriz a escapar entre as arestas do quadrado. Crítica completa e entrevista
Bia Maria - Qualquer Um Pode Cantar
Bia Maria despeja a inquietação com voz mareada no notável álbum de estreia Qualquer um Pode Cantar. O processo é autodeterminado mas são os coros e as polifonias que lhe dão um músculo colectivo que traz da vida e devolve à terra.
Cara de Espelho - Cara de Espelho
"Pessoal na casa dos quarenta e muitos" que se juntou para ir "contra o ciclo que nós sentimos", explica o autor das cançōes Pedro da Silva Martins. "Isso é ir contra a corrente (...) E é também uma resposta a esse necessidade de intervir. De estarmos artisticamente activos com coisas para dizer e sentir necessidade de as dizer agora." Entrevista
emmy curl - Pastoral
Emmy Curl não exprime apenas uma relação antiga com a tradição. Confessa-a a partir de uma região: Trás-os-Montes de onde é natural. É um disco soberbo, de intensa e apaixonada exploração da cultura pagã, transmitida através da oralidade, a partir da sincronia com os sintetizadores e alguns instrumentos analógicos. Emmy Curl faz de Pastoral a efabulação de um imaginário inocente e autenticado. Entrevista
Evaya - Abaixo das Raízes Deste Jardim
Identidade pop transgressiva, domínio da maquinaria, alma humana, causas bem defendidas e uma identidade maior que a soma de virtudes. “É que hoje acontece uma grande festa dentro de mim”. Entrevista
Jonas - Maçã d'Adão
Fado laminado, ancorado no classicismo embora sem receio de profanar a tradição e de a vincular a outras rodas como o cante alentejano em Gula ou à família gitana em Severa Y La Virgen. Entrevista
Maria Reis - Suspiro
Da insegurança amorosa e da ansiedade económica, nasce uma necessidade de superação que tem em Suspiro um divã catártico para Maria Reis. Ouve-se o isolamento e o desconforto de não ter morada, mas também a partida em liberdade e a chegada a uma zona franca. Entrevista
Samuel Úria - 2000 A.D.
Como Benjamin Button, a contramão avança em marcha atroz. Predomina a decepção com o presente sobre a projecção de um futuro finado. Álbum de balanço, 2000 A.D. só podia ser datado do final do ano. Afigura-se clássico mas não balança para o saudosismo. Crítica completa
Silly - Miguela
As cançōes florescem como plantas de interior, serenas e harmoniosas. Involuntariamente e sem conflito, Miguela perde a exclusividade autobiográfica e transforma-se em contraditório da actualidade no seu ritmo contemplativo. Um eco imenso dos Açores onde nasceu, e do Alentejo onde cresceu. Entrevista
11-20 (sem ordem)
Aldina Duarte - Metade Metade
Camané - Ao Vivo No CCB - Homenagem a José Mário Branco
Club Makumba - Sulitânea Beat
David Bruno - Paradise Village
DJ Nigga Fox - Chá Preto
Mazarin - Pendular
Micro Audio Waves - Glimmer
Mura e Stereossauro - Adamas
Nídia e Valentina - Estradas
Tiago Sousa - Organic Music Tapes Vol. 3