Foi um daqueles discos de fermentação lenta. Não por gerar resistências ou divisōes mas apenas porque o nome de Nala Sinephro era menos sonante no meio jazzístico de onde provinha. Ao longo dos últimos três anos, Space 1.8 encantou quem com ele se cruzou. O selo da Warp indicava um campo grande de hipóteses entre a electrónica e o jazz. Explorador e encantatório.
Nala Sinephro compunha ao piano para depois gravar com harpa de pedal e sintetizador modular. Até para a natureza livre do jazz, tratava-se de um objecto particular fascinante. Nubya Garcia foi uma das convidadas a abrilhantar as sessōes mas no comando das operaçōes sempre esteve a belga de origens caribenhas, radicada em Londres. Filha de professora de piano e de pai saxofonista, descobriu a harpa na conceituada escola de Berklee, em Boston. Já no pós-Brexit, mudou-se para Inglaterra onde fez parte do colectivo volante Steam Down e privou com alguns dos nomes cimeiros do movimento local.
Endlessness renova propriedades e amplia horizontes, sem requisitar agendas. Música que pretende ser apenas o que é em que o único lugar de pertença é o da liberdade. Reminiscente do jazz espiritual e da espacialidade. Operática sem ser pomposa ou hiperbólica. Cinematográfica sem ficcionar as cenas. Em rota caleidoscópica pelos ciclos de vida como um acto contínuo de regeneração. Plácida, tranquila e harmoniosa. Transmissora de paz sem cair nos lugares comuns da alienação terapêutica.
Música desinteressada da espuma dos dias, imune à anestesia colectiva e aos micro-plásticos infiltrados na dieta diária que celebra a existência como uma oportunidade única. Por vezes, Endlessness lembra a Cinematic Orchestra sem a gravidade vocal de Fontella Bass. E os ritos espirituais de Alice Coltrane. Nubya Garcia reincide nos créditos, enriquecidos por James Mollison (Ezra Collective), Sheila Maurice-Grey (Kokoroko) e Morgan Simpson (baterista dos Black Midi).
Sinephro é parte de uma família virtuosa mas já reservou um espaço singular. Endlessness é um exercício de minimalismo e simplicidade, como uma ondulação permanente que apesar das relaçōes com disciplinas como a meditação, transcende esse estado. Ainda que possa ser subconsciente, há uma intenção instrumental em Sinephro que reflecte uma necessidade colectiva de pacificação de contrastes e conciliação de disparidades.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Fat Dog - Whoof
À boa maneira inglesa, os Fat Dog são apresentados como "a revelação mais excitante dos últimos anos". A novidade está na reintrodução do rock de motivos electro que se dança como festa punk de house, reiterada esta semana com What's Wrong With New York? de The Dare, na apropriação a roçar a desonestidade intelectual dos LCD Soundsystem, The Rapture e todo o eixo. Se há vinte anos, nada disto era novo mas ainda soava fresco como banho de mar, imagine-se agora. A quem se contenta com tão pouco, aconselha-se You're a Woman, I'm a Machine dos DFA 1979 (2004) e The Looks dos MSTRKFT (2006), como manuais de consulta deste século. Os Fat Dog são frenéticos e desvairados mas aqueles sintetizadores exorbitantes do trance nem sempre são o par certo para o viço da secção rítmica e o carisma de Joe Love. Devem resultar ao vivo mas sobre extase de novidade estamos conversados quando ao estado de falta de memória e de vazio de futuro.
The The - Ensoulment
This is the day...não, isso foi há 40 anos. Primeiro álbum dos The The desde 2000, na senda americana de blues cosmopolitas de Dusk, prolongada nas versōes de Hank Williams em Hanky Panky e finalizada em Naked Self, ainda belíssimo mas já em fim de ciclo de existência na cultura pop. Para quem não sabe, Matt Johnson podia ter sido tão importante como Robert Smith e estar hoje pregar o sacerdócio de Nick Cave - este perfil publicado no Guardian ajuda a explicar a via sacra - mas preferiu divorciar-se da indústria como tantos outros igualmente brilhantes como Julian Cope ou Paddy Mcaloon. Álbuns como Soul Mining e Infected são caleidoscópicos de uma certa paranóia e transcendência do pós-punk que teve em Johnson um dos grandes cultores. E Ensoulment? A notícia é o regresso de Matt Johnson após quase ter perdido a vida na pandemia. A morte sempre o acompanhou mas de uma forma imaterial, quase como um teste aos limites. As perdas do irmão e do pai em momentos decisivos, o internamento em risco de vida e o avançar da idade dirigiram-lhe a morte para o chão - o single Linoleum Smooth To The Stockinged Foot faz da infecção quase letal na garganta um relatório sobre os dias do fim. Ensoulment lida com a finitude mas também com a pós-verdade e a nostalgia em Some Days I Drink My Coffee By The Grave Of William Blake. E quarenta anos depois, continuamos a discutir os mesmos assuntos, lamentava ao Brooklyn Vegan. Só pela lucidez, já valeu o sopro de vida mas Ensoulment, apesar de não ser arrebatador como o coração da discografia de Matt Johnson, é um objecto sólido, coerente e sem rugas maquilhadas. A velhice pode ser bonita, esta é no mínimo digna.
Party Dozen - Crime in Australia
Da Austrália com fervor. Cabe tudo nos Party Dozen. Rock feroz, improvisação jazzística, técnicas avançadas de estúdio e um sentido de humor muito particular. A saxofonista Kirsty Tickle e o percussionista Jonathan Boulet partem do improviso e nunca querem menos do que o inesperado. O efeito-surpresa espalha-se como um vírus.
Laila! - Gap Year!
Há um mês, Laila confessava ser filha de Yasiin Bey (Mos Def). A revelação surgia depois de se ter projectado no TikTok com o single Like That! e com a remistura de Not My Problem de Cash Cobain. Gap Year! deixa-nos a garantia de dispor de outros argumentos, além de singles de TikTok e bons genes. Depois da pujante mixtape de Doechii, o álbum de estreia da rapper de 18 anos é bomba de água para a secura de ideias no rap, e nem precisa de se apresentar no feminino para ser assunto. Laila! escreve com a destreza dos predestinados e faz do quarto um tanque de experiências instrumentais, com uma artesanalidade que só veste bem a inocência natural de Gap Year!. Massa fresca a querer ser mais que uma refeição preparada. Um caso para seguir com atenção de detective.
Masayoshi Fujita - Migratory
Depois de 13 anos em Berlim, Masayoshi Fujita voltou para o Japão para viver no campo com a família. Migratory nasceu nas montanhas mas a elevação do vibrafonista já estava na descompressão. Migratory soa um regresso mas não esquece a partida na exploração de marimbas e sintetizadores. O toque de mestre de Masayoshi Fujita vê-se na precisåo de relojoeiro e rigor matemático. Cada som é justificado, sem sinais de ruído. Moor Mother traz política a Our Mother’s Lights e Hatis Noit fantasia a Higurashi.
Max Richter - In a Landscape
Max Richter assume o desejo de reconciliar polaridades em In a Landscape, sequela de The Blue Books de há vinte anos. Neste caso, representado pela intersecção entre os mundos da clássica e da electrónica. As marcas sonoras são as habituais: carga dramática, gravidade e a sensação de se estar a ouvir uma banda sonora que incita o ouvinte a sentar-se na cadeira do realizador.
Farida Amadou - When It Rains It Pours
A prática de Farida Amadou renega o virtuosismo e a mera reprodução de um som familiar ao ouvido humano. O baixo não se parece com um baixo, é um catalisador de ideias transmissor de uma parede sonora espessa e rugosa como um tijolo de noise e free jazz. A identidade musical vive da divergência entre castelos de drones e uma certa ciência de escola que não a abandona.
Matthew Halsall - When The World Was One (reedição)
O lugar onde tudo começou para Matthew Halsall e a Gondwana Orchestra. Discípulo do jazz meditativo dos anos 60, fiel aos princípios de John e Alice Coltrane, When The World Was One é separado por dez anos dos dias de hoje mas o perfil clássico e espiritual não lhe retiraram brilho. Bem pelo contrário, a paz interior que o habita é tão elementar quanto necessário, quando os piores fantasmas da guerras acordam da hibernação. O som é quente, de banda completa, com tiradas de hard-bop e ressonâncias de McCoy Tyner.
Film School - Field (Deluxe Edition)
Não guardei na memória Field, o álbum de há um ano dos Film School, agora reeditado com as maquetas e três boas remisturas por ocasião da sexta-feira de setembro do Bandcamp. Está bastante acima da média normalizada de rock sonhador e ruídoso, na veia dos Slowdive e Love & Rockets. Começar pelo fim, como se liam os jornais, desde a caótica releitura dos A Place To Bury Strangers, muito Cramps, passando pela longa versão de Up Spacecraft, é uma boa maneira de nos reintroduzirmos aos palmos de terra dos californianos.