Álbum da Semana: Porridge Radio - Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me
Há quatro anos, uma banda atacante e irremediável chamada Porridge Radio desafiava as leis da atenção em vésperas do recolher obrigatório global. Que pior momento para Every Bad ser recebido com unanimidade do que ficar em casa? O bicho andava por aí, mas cançōes como Sweet ou Circling não se podiam libertar das paredes. Apesar do fervor gerado, o [segundo] álbum ainda não era definitivo na explosão do potencial reconhecido. E se Waterslide, Diving Board, Ladder to the Sky (2022) fez crescer, Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me é a catarse plena e irrestrita.
E, no entanto, as cançōes nasceram em maré baixa quando a vocalista, líder e fundadora Dana Margolin se separou da namorada enquanto sofria de exaustão provocada por concertos e viagens constantes. A intenção passava por remover todos os bloqueios e expor fragilidades emocionais em poemas sónicos translúcidos do processo de reparação. Nesse processo, a banda gravou com Dom Monks, técnico responsável por cuidar do som dos Big Thief e de Laura Marling. A noção espacial ajuda a explicar porque as Porridge Radio nunca soaram tão amplas e imensas.
Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me é o álbum mais intenso e eufórico dos quatro até agora. Como um derrame impetuoso de sangue, expōe a ferida aberta como radiografia do desgosto e indemnização artística provocada pela catarse emocional. Em Waterslide, Diving Board, Ladder to the Sky, as Porridge Radio ganhavam uma consciência da personalidade. Dois anos, dobram o cabo da juventude sem perder a espontaneidade. Eis uma simultaneidade notável num período de desesperança em que o capitalismo convida o contrapoder para lanchar e serve veneno em sacos de chá de cidreira: tirar o elefante da sala sem pensar demasiado nas consequências. Deixar-se ir é diferente de se deixar levar. O racional não lhes sabotou o ímpeto nem corrompeu a autodeterminação.
Dana Margolin não escreve versos de aviário embrulhados em bolsas de escama de pangolim. É poesia habilitada por dissabores e angústias, escrita como quem pinta telas (Anybody, Wednesday). Cançōes a chover do peito com força de trovoada, como God of Everything Of Else, e a rebentar como ondas como a sublime In a Dream I’m Painting, irmã de outra mãe de Adrianne Lenker. E quando exclama “Sick of the blues/I’m in love with my life again” na cessante Sick of The Blues, o fogo já lavra sob controlo. Tão certas as chamas como o reacendimento.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Christopher Owens - I Wanna Run Barefoot Through Your Hair
Nem a côdea do pão que o Diabo amassou passou pelos sisos de Christopher Owens. De 2015 para cá, foi dispensado pela editora após o final do contrato, a noiva queimou-lhe o fato, o companheiro nos Girls, Chet “JR” White”, morreu, sofreu um grave acidente de mota que o deixou sem andar, foi despedido do café onde trabalhava para poder pagar as contas e ficou sem casa para viver. Da ascenção na euforia da pop indie (Owen chegou a ser modelo Yves Saint Laurent, fotografado por Hedi Slimane) com os Girls à queda sem joelheiras, Owens bateu no fundo e abriu a cabeça. O fim esteve próximo mas não pereceu. Os pontos ainda estão à vista em I Wanna Run Barefoot Through Your Hair, espantoso gesto de amparo e salvação onde se ouve tudo o que o sofrimento pode implicar. A solidão, o abismo e a renúncia, mas também uma nesga de luz que o salva da noite escura. Da caixa negra, Owens faz um punhado de clássicos barrocos sobre o medo, o desespero e a superação. Dor mortificante cercada por sangue, compressas e analgésicos sublimada sem lágrimas cínicas a escorrer clickbait. I Wanna Run Barefoot Through Your Hair chega a ser dilacerante como um doente terminal mas liberta-se da autópsia em monumentos como I Think About Heaven, digna da melhor casta de Paddy McAloon (Prefab Sprout), This Is My Guitar, da mesma pena de George Harrison e Do You Need a Friend. Se todas as reabilitaçōes fossem assim, os terapeutas eram artistas plásticos.
Papaya - Nove/IX
Uma dezena de anos de EPs anuais depois, o primeiro álbum dos Papaya é amparado por menos de meia-hora de urgência e repentismo. Bráulio Amado, Óscar Silva e Ricardo Martins não se desviam do sarcasmo habitual, mas os tempos nunca lhes deram tanta razão ao amor e à doença. Num passado pouco remoto, era normal bandas com esta expressão ruídosa e sentida expressarem-se em inglês. Os Papaya não, cantam como quem fala ao telemóvel. Rock com ganas de surfar (Caparica), de viver em Nova Iorque (Os Ossos dos Ofício), de ritos tribais (Um Vulcão), de olhar para as nuvens (Rapazes do Tédio), de beber cerveja em Alvalade (Fome), com o mesmo tipo sanguíneo dos Linda Martini (A Faca Que Ri) ou dos Liars (Duas Assoalhadas). Baixos anafados, guitarras laminadas e muito paleio em poucas palavras. Estão como querem.
Blvck Spvde and the Cosmos - Overjoyed Through The Noise
A cultura instrumental de beats de hip-hop é o motor mas o jazz é o volante de Overjoyed Through The Noise. Resumo em quatro andamentos de uma sessão preparativa de festivais gravada ao vivo, Blvck Spvde lidera um combo de uma dezena de músicos com ecos de Sun Ra, afro-beat e algum jazz rock não-virtuoso. Música espirituosa e pujante. Interseccional, chamam-lhe, com propósito.
Saagara - 3
Um trompetista em processo de reconhecimento como produtor electrónico e um tocador de ghatam, instrumento percussivo indiano semelhante às tablas trouxeram 3 do cosmos para o real, sem lhe subtrair a magia. Inspirado pela simbiose de jazz com instrumentos acústicos do colectivo Shakti de John McLaughlin, o terceiro capítulo da Saagara do polaco Wacław Zimpel evoluiu para um nível muito mais avançado de sofisticação com inúmeras camadas a guiar a alquimia entre material e espiritual. E quando se chega a Where Is That Blossom, o estado é de elevação superior.
Lechuga Zafiro - Desde los Oídos de un Sapo
O produtor uruguaio manipula danças de rua, do reggaeton ao kuduro, com captaçōes de sons ambiente da natureza. De matéria-prima física, Lechuga Zafiro cria uma pasta mutante e metamorfoseada. O efeito é a causa. Não tem havido muitos discos assim tão amigos do desconhecido.
Tim Reaper e Dwarde - Early Nights EP
Menos de um mês depois de In Full Effect, Tim Reaper reencontra-se com Dwarde no imparável Early Nights. Frenesim de jungle e techno hardcore, praticado com a mestria de quem frequentou festas ilegais sem contar aos pais.
Virtual Dreams II: Ambient Explorations In The House & Techno Age, Japan 1993-1999
Salto no tempo e no espaço. A captura de um momento único na produção electrónica japonesa de baixas rotaçōes é a derradeira colecção de música perdida nos confins a receber honras de resgaste dos ouvidos atentos e perspicazes de Jamie Tiller - um dos dois arqueólogos da Music From Memory, entretanto partido. E que momento foi este para o techno ambiental e o chill out, a apontar diferentes perspectivas e possibilidades inimigas do funcionalismo. Essencial.
Even the Forest Hums: Ukrainian Sonic Archives 1971-1996
Um outro país ausente das notícias. Delirante escavação da vanguarda ucraniana, pré e pós-queda do Muro, desde o primitivismo de Kobza, à library music do Shapoval Sextet e de Vodohrai, às semelhanças com os Space de Dance de Vadym Khrapachov, o synth-pop ajaponesado de Kyrylo Stetsenko, a chávena de orientalismo de Tea Ceremony de Er. Jazz, a electricidade estática tipo Pere Ubu de Uksusnik, a liquidificação de Barreras, de Iury Lech, ou a folk de Yarn. Sem surpreender ou moralizar, o trip-hop de Sick Song atrai pela fonética. Brilhante peça de arqueologia sonora com fundamentos políticos incontornáveis.
Donald Byrd - Royal Flush (reedição)
Aos 29 anos, Donald Byrd já jogava na equipa dos veteranos, com créditos em discos de Art Blakey, John Coltrane, Horace Silver e Jackie McLean, sobretudo quando ao lado estava um novel pianista chamado Herbie Hancock de apenas 21. Juntamente com a secção rítmica de Butch Warren, no contrabaixo, e Billy Higgins Byrd, na bateria, treinada com Ornette Coleman , e ainda Peppers Adams no saxofone, Byrd gravou em Royal Flush a primeira sessão para a Blue Note, onde se manteria por 15 anos. O álbum de 1961 é um arquétipo do hard bop e capta a subida infinita de um músico em estado de emergência. Seis peças fluídas de tempo, espaço e luz em que os talentos individuais de Byrd e Hancock brilham ao serviço do colectivo. Uma maravilha.
Acabo de ouvir o novo de Porridge Radio - que album! Obrigada!