Rafael Toral: "Poucas acções políticas me interessam mais hoje em dia do que fazer a coisa certa, no momento certo, pelas razões certas"
© Vera Marmelo
A música começa sempre por ser um acto de liberdade. Essa condição costuma ser observada da perspectiva de quem a cria mas não será também de quem a recebe? Quanto mais amplas as suas camadas de leitura, mais belas e magnas as suas interpretaçōes. Imagine-se o alvorecer da floresta habitada pela ferreirinha e pelo açor. As plantas a falar através das folhas. Os ouvidos lavados pelo som das ribeiras. Lindo, não é? Para Rafael Toral, a música a raiar de Spectral Evolution “não tem outro assunto que não ela própria, que não é sobre nada, não é descritiva nem narrativa nem temática nem ilustrativa”.
Quem melhor do que o autor para descrever o ambiente de trabalho em que opera? Importa explicar que Rafael Toral se mudou há dez anos para um vale da Serra do Açor, perto de Côja, concelho de Arganil. Porém, este pode ser um daqueles casos em que a fantasia transcende o real porque, segundo o próprio, Spectral Evolution “não foi condicionado por nada fora do estúdio”, mas não se imaginam os painéis de isolamento insensíveis ao redor. E ainda que o fossem, a música é inevitavelmente "aberta para que cada um possa projectar nela o que observa, imagina, sente e pensa”. Spectral Evolution a limpar os ouvidos dos subgraves bombásticos do concerto de Travis Scott? É possível. Spectral Evolution a caminho de umas férias na Lousã, após demasiados a trabalhar para cima de 12 horas? Aconteceu.
não será o motivo da visita a Cem Soldos (dia 11 às 14h30 no Palco Carlos Paredes) para o concerto no Bons Sons. As duas peças a apresentar ainda não foram sequer gravadas (resposta mais à frente), mas Spectral Evolution é um incentivo enorme prosseguir a investigação ao corpo idiossincrático de trabalho de Rafael Toral. Este trabalho do Filipe Costa publicado no Bandcamp explica as fundaçōes para o futuro continuar em aberto.
Por email, uma entrevista ao autor de um álbuns com a serena potência de trazer luz a 2024. Do centro de Portugal sem limites espaciais.
Comecemos pelo fim. O Spectral Evolution está a ser recebido com grande entusiasmo. Sente-se a chegar a públicos além dos circuitos habituais?
Está em muito boas mãos, a Drag City tem uma estrutura de promoção e distribuição globais que chega muito mais longe. Eu vejo os “circuitos” como uma coisa só, mas a que se pode aceder só em certa escala, maior ou menor. Neste caso a escala alargou mesmo muito, há muita gente que tomou contacto pela primeira vez com a minha música com este disco.
A música do Spectral Evolution é apresentada como uma peça única. Nasceu como um todo ou resultou da colagem de partes?
Não é uma peça única, são partes distintas, apenas estão ligadas entre si por transições que resultam num contínuo de som. Uma breve observação do alinhamento permite perceber tipos de peças e a clareza da estrutura.
Do ponto de vista instrumental, como foi criado o álbum?
Foi uma odisseia, que partiu da ideia de fazer os instrumentos electrónicos que toquei no Space Program (2004-2021), em arranjo orquestral, soarem como se nascessem de uma base harmónica (uma abstracção de harmonia de jazz dos anos 1930). São instrumentos semi-caóticos e não tocam por afinação, apenas emitem som electrónico puro. Com o tempo, consegui extrair deles material consistente com a harmonia, isso foi necessário para esses dois mundos coexistirem. Essa base harmónica foi feita com um som de guitarra que eu desenvolvi no álbum Sound Mind Sound Body e que recuperei para este efeito, enquanto o Space Program surgiu mais tarde em ruptura com aquela abordagem, logo eram abordagens incompatíveis. Missão de “reconciliação” quase impossível, mas consegui.
O disco foi trabalhado longo de três anos. Impōe-se algum horário ou método por trabalhar em casa?
Não, apenas responder todos dias ao imperativo artístico de continuar a tentar avançar.
Regressou à guitarra eléctrica por necessidade de reconexão?
Houve uma reconexão com uma forma de fazer música mais estática, e a guitarra acabou por ser o instrumento a que estive mais ligado enquanto desenvolvi essa abordagem no passado (digamos entre 1987 e 2003). Mas cedo percebi que desta vez é muito menos um regresso que um novo início, tenho estudado e aprendido sobre a guitarra matérias que no passado não me eram úteis, hoje tenho noção que para pegar no instrumento não vou contornar a sua cultura, tenho que a atravessar.
Ter encontrado alguém como o Jim O’Rourke fê-lo acreditar que o seu corpo de trabalho tem um auditório e é pertinente em qualquer do mundo?
Não. Que disparate. Desde os primeiros tempos sempre foi claro para mim que para que valha a pena fazer esta música, ela deve ter valor para o mundo inteiro. Deve absolutamente transcender a circunstância em que é criada, deve ser universal e não local. Conheci o Jim em 1995, ainda ele só tinha um disco. Fiquei muito entusiasmado porque era um disco de guitarra com som contínuo e era a primeira vez que encontrava alguém a trabalhar num registo semelhante ao meu. Desde aí que somos amigos e colegas, e um ser de Chicago e outro de Lisboa pouco importa, excepto que a vida lhe deu mais oportunidades que a mim (basta comparar Chicago com Lisboa). Talvez possa virar essa pergunta ao contrário, se observarmos que o Jim fechou a sua editora Moikai há quase vinte anos e quando ouviu este disco gostou tanto que decidiu reabrir a editora para o publicar.
Mudar-se para o campo há dez anos foi uma decisão de vida com implicaçōes artísticas ou um gesto premeditadamente artístico?
Foi uma decisão de vida.
Sair da cidade transformou-lhe a relação com o som?
Absolutamente nada.
Num contexto de alteraçōes climáticas drásticas e de destruição de habitats naturais, trazer a floresta para dentro de um disco é também um gesto político?
Eu sempre quis fazer música pura. Música que não tem outro assunto que não ela própria, que não é sobre nada, não é descritiva nem narrativa nem temática nem ilustrativa. Essa visão da floresta é uma interpretação que não posso justificar, não é minha. É só um disco de música, não quer ser outra coisa. E em abstracto creio que a música sobrevive melhor ao tempo assim. As causas pelas quais possamos lutar têm campos próprios para isso.
Eu sempre quis fazer música pura. Música que não tem outro assunto que não ela própria, que não é sobre nada, não é descritiva nem narrativa nem temática nem ilustrativa.
É música que convida à interrupção, desaceleração e observação. Há alguma premeditação em induzir estes estados?
É música que exige atenção, sem dúvida. Não foi concebida para induzir nenhum estado, como o resto da minha música. Toda ela é aberta para que cada um possa projectar nela o que observa, imagina, sente e pensa. E isso varia de uma pessoa para outra.
O algoritmo alterou bastante a relação entre a música e o público. Nesse sentido, e insistindo na questão, uma música tão livre e destituída de veículos promocionais ou manobras da indústria, tem uma carga política acrescida mesmo que não seja intencional?
Não é tão livre assim, teve que se sujeitar a inúmeras condições para existir. E creio que o disco tem sido excepcionalmente bem promovido dentro do circuito da indústria, foi de longe o menos destituído de veículos promocionais de todos os que fiz. Poucas acções políticas me interessam mais hoje em dia do que fazer a coisa certa, no momento certo, pelas razões certas. E manter o discernimento para perceber o que é isso.
Seria um álbum impossível em cidade?
Não, de todo. Deve ser o pássaro na capa, que faz tanta gente acreditar que é um disco sobre a Natureza. E se tivesse um parafuso na capa? É um disco de música, muito ligado à minha história e património musicais. Tê-lo-ia feito igualzinho em qualquer parte do mundo, porque não foi condicionado por nada fora do estúdio.
Do ponto de vista da sobrevivência, como é ser um músico a operar desde Portugal num circuito tão marginal?
Desde cedo decidi que tinha que fazer música financeiramente independente. Nunca vivi da música, sempre trabalhei para subsistir. Nunca quis ter pressão para fazer dinheiro com música, faço sempre o que entendo e tenho que ser livre para isso.
Fez parte dos Pop Dell’Arte e ainda há poucos anos o vi com os Mão Morta num programa da RTP. Mantém algum tipo de interesse nas linguagens pop/rock e nos formatos de canção tradicional? Lembra-se de se ter entusiasmado recentemente com algo que tenha ouvido?
Mantenho essa ligação na abordagem ao som e a nível “celular”, faz parte de mim, mas interessam-me estruturas mais ligadas ao jazz, tenho interesse nas canções clássicas, “standards”, que têm construções harmónicas com 100 anos mas são mais ricas e complexas que quase todo o rock, e certamente todo o pop.
É possível manter tudo em aberto quando já muito foi inventado?
Não só é possível, é necessário.
O concerto no Bons Sons vai ser a apresentação integral do Spectral Evolution?
Não, vou tocar duas peças, uma chamada Milky Ways, um fluxo contínuo de som em todo o espectro, con muitas modulações internas, loops etc. Em contraste, a outra peça é Long Ways e tenho concentrado nela muita energia recentemente. É mais que uma peça, um ambiente performativo, em que faço um percurso sem destino por fragmentos de cultura da guitarra. Toco a guitarra sem tratamento, mesmo só guitarra. É uma música sobre o som da música, ou seja, a música está atrás do seu próprio som, não está no que é tocado. É um paradoxo difícil de explicar, mas é o trabalho mais avançado que tenho agora.
A música apresentada ao vivo é fiel à gravada ou guarda uma margem para o improviso?
Nenhuma destas peças foi gravada ainda. De qualquer modo, a não ser que se trate de música clássica ou de pop, tocar música ao vivo e gravar são coisas diferentes e tendem a produzir resultados diferentes.