Samuel Úria tem queda para o desencanto. Há quatro anos, as Cançōes do Pós-Guerra desmontavam o romantismo terapêutico e abriam fogo sobre o real para o apagar com extintor. Retrospectiva de um terror profundo, o álbum relacionava o retrocesso civilizacional das autocracias com a incerteza no devir em tom inconforme, lubrificado pela exemplo das vozes trovadorescas de protesto. A guerra partia do interior do quartel.
Desconfortável com o rumo do progresso, Úria reinstala o Windows 95 para emular o tondelense campestre. “Dormi no feno crasso da cidade/Um sono justo, sono urbanizado/Desincho/Relincho”, destrava nos primeiros versos de 2000 A.D., a canção-chassi do álbum homónimo.
O passado é um país perfeito, idealizado pela memória selectiva. 2000 era para ser o portal definitivo da metamorfose. A era em que o futuro se fazia Michael Jordan dos três pontos. Mudava o mês, o ano e o século a 1 de janeiro de 2001. E a moeda única trazia a promessa de uma união económica extensiva de valores europeistas. Só que o preço do café subiu de 50 escudos para 50 cêntimos e o preço duplicou. Lisboa sentou-se à mesa da Versalhes e viu-se francesa. O retrofuturo de Úria profetiza o cessar de utopias. “Eu declaro o presente hostil/Vou avançar para o ano 2000”, enfatiza sob aguaceiro gospel.
Como Benjamin Button, a contramão avança em marcha atroz. Predomina a decepção com o presente sobre a projecção de um futuro finado. O anacronismo de 2000 é sobretudo um recurso estilístico para exercitar a mestria poética. Estamos sempre aquém da gramática aplicada de Samuel Úria. E quando ela traz Miguel Ferreira escrito no caderno, um curioso clã experimentado de voos anteriores como o citado Marcha Atroz, as palavras são guarnecidas em papel perfumado.
Metrópolis, de Fritz Lang, ficcionava cidades verticais com arranha-céus gigantescos e carros voadores a romper a atmosfera. Em 1968, Arthur C. Clarke pressentia choque de cabeças com inteligência extraterrestre em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), fantasiado para cinema por Stanley Kubrick. Autores como George Orwell ou H.G. Wells já suspeitavam de uma fricção científica entre orgãos vitais e robótica. O progresso tecnológico, detergente de todos os males, nunca foi carta de alforria.
2000 A.D. é um almanaque para despejar o sobressalto entre as falhas na actualização de sistemas operativos, a impossibilidade de reinstalar o Winamp e o aceitar de que até um PC formatado pode guardar vírus na BIOS. Desapontado mas não derrubado pelo vento, Úria não se resigna. Enxuta o lenço e electrifica-se à corrente, imolado pelo rock’n’roll de Jack White. Na soberba Canção de Águas Mil e em Quem me Acende a Voz, o Úria tamanho Dylan de oração gospel faz-se réplica de si mesmo sem acusaçōes de plágio.
Kuchisabichii, contracenada com Margarida Campelo, abusa dos limites com cenografia à David Byrne, sintetizadores em esteróides, coração na boca e um vídeo surrealista muito The Knife de Joana Brandão. Quando por fim chega o tributo ao Xico da Ladra, gravado em telemóvel directo para o Instagram, há uma vela que nunca se apaga. Nem o futuro se fez finito nem o pretérito se aperfeiçoou.
Álbum de balanço, 2000 A.D. só podia ser datado do final do ano. Afigura-se clássico mas não balança para o saudosismo. Boas festas e melhores entradas em 2000!
Recomendaçōes não-algorítmicas
Trent Reznor e Atticus Ross - Queer
Os caducos já sonham com o regresso anunciado dos Nine Inch Nails, quando Trent Reznor e Atticus Ross continuam num ciclo imparável de bandas sonoras, iniciado com o clássico Rede Social sobre os controversos primórdios do Facebook. A música de Queer é um filme dentro do filme. Não precisa do olhar de Luca Guadagnino sobre um expatriado americano para se autonomizar como câmara indiscreta de Reznor e Ross sobre medo, pânico e superação. Começa com uma assombrosa Vaster Than Empires, com Caetano Veloso e Reznor em modo coral a contracenarem a duas vozes como bonança e tempestade, para acabar nun silêncio de poeira rastejante. Como guionistas sonoros, Reznor e Ross moldam a sua própria leitura de solidão. Uma caixa negra de identidade, desejo e loucura feita de texturas rugosas e fragmentos sonoros inóspitos. Como sempre foram os Nine Inch Nails, aliás. Podem estar sossegados no cinema.
Shabaka - Possession EP
Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace explorou outras possibilidades do vale encantando de Shabaka, ligadas ao exercício da espiritualidade e à flutuação do corpo. Música para o quarto mundo como a de Jon Hassell. Sempre que o músculo do coração esticava a convidados como Moses Sumney, Floating Points ou Laaraji, o universo aumentava. Mais curto, Possession começa onde o longa-duração nos deixou. Sequela de End Of Innocence, a espantosa Timepieces é o elo de ligação com o primeiro acto. Billy Woods assassina sem sujar as mãos. E o círculo volta alargar. Há Elucid, também emprestado pelos Armand Hammer, o repetente André 3000, Esperanza Spalding, Nduduzo Makhathini, Brandee Younger, Carlos Niño e Jason Moran. Todos deixam a sua marca pessoal na pegada indelével de Shabaka em 2024.
Niagara - De Motu
O áudio disponível no Bandcamp sintetiza De Motu em duas peças de material original, condensadas numa mixtape. A primeira de fermentação lenta e a segunda mais veloz, antes de terminar em desaleração. As transiçōes são suaves mas notadas. De Motu não acaba como começa. O crescendo contínuo vai propondo novas camadas que a dupla traduz por fases. A intensidade aumenta à medida que o corpo se move por zonas cinzentas sem necessidade de catalogação. Não é bem um álbum mas não deixa de o ser. E será que importa padronizá-lo segundo os modelos tradicionais quando se trata de um mapa sensorial guiado por uma visão espectral das possibilidades infinitas de criar música física sem desligar o cérebro?
Actress - Дарен Дж. Каннінгем
Uma mixtape sem formas dançáveis já deixou de chocar há muito, certo? Andamos todos à procura de paz mas a solução universal pode não passar por retiros-chique pagos a preço de trufa. Grande parte da música ambiental caiu numa funcionalidade de playlist que serve para cozinhar, trabalhar ou adormecer. Nada contra mas o sono existe para regenerar as células. Em maio, Actress aproveitou o convite do Resident Advisor para desvendar material inédito. Música lenta, profunda e encriptada mas não passiva porque as paisagens ambientais não têm de ser todos estáticos. As camadas límpidas e granuladas abafam uma tensão muito própria de Actress, próxima da nebulosidade de Burial, mas talvez mais aderente ao piso. Terrena, penetrável mas ainda assim imprevisível e resistente às correntes de ar.
Seefeel - Everything Squared
Em Agosto, o notável Everything Squared interrompeu um hiato de 13 anos sem obra nova dos Seefeel, sem romper com o silêncio. 26 minutos ímpares no real actual de fascínio pela queda livre. Música imaterial e etérea, desprendida de formalismos e apartada de agendas. Das mesmas sessões do mini-álbum, Squared Roots repete o sussurro. Os Seefeel nunca desapareceram e estão para ficar. OIhar para as nuvens é um dos desportos mais saudáveis para sobreviver no pântano.
Fennesz - Mosaic
Imagina-se Fennesz sempre a trabalhar, incansável no ideal de se questionar e desafiar a cristalização da música ambiental. Mosaic nasceu sem um conceito pré-estabelecido mas com um processo muito claro. Fennesz levantava-se cedo, trabalhava até meio da tarde, depois fazia uma pausa e voltava a estúdio até à noite. Como um ciclo diário, Mosaic absorve a rotina para lhe dar forma oficinal. A capa ajuda a explicar o ambiente electroacústico. O mosaico tridimensional divide-se entre terreno, horizonte e águas profundas. É um álbum meticuloso no detalhe, de matéria intangível mas activo na busca por melodias cristalinas e espaços de tensão para além do reconhecimento cognitivo. Música para nos esquecermos do tempo e perdermo-nos na geografia.
TV Girl & George Clanton - Fauxllennium
Fauxllenium começa com pastiche descarado de Movin' On Up dos Primal Scream. Tudo no mini-álbum conjunto da banda e do maquinista de vaporwave é um assalto à mão desarmada à guarda da Rainha, de Madchester, ao acid-house, trip-hop, house de Ibiza e big beat. Ácidos, Absolutely Fabulous, Casanova e o Palácio de Buckingham na mesma pasta. Se não for levado muito a sério, cai em graça.
cLOUDDEAD - cLOUDDEAD (2024 Remastered)
Seis EP em vinil de 10'' sintetizados num só álbum impuseram cLOUDDEAD como alternativa fundamental às linhas mestras do hip-hop do séc. XXI. Apanhar esta nuvem de volta é reconhecer-lhes a presciência projectada em Danny Brown, a linhagem cloud rap de Clams Casino e a ficção científica de Shabazz Palaces ou de Clipping. Da mesma família de MF Doom, Aesop Rock ou Atmosphere, Doseone, Why? e Odd Nosdam espalham surrealismo em vinhetas sonoras de lo-fi e hauntologia. Hip-hop de texturas granuladas e formas cambaleantes a passo de caracol. A imprevisibilidade é persistente e desafiante, mas há um manto enigmático como fio cenográfico a condutor a defender a constelação da veracidade do exterior. Fun-da-mental.
Matthew Dear - Black City (reedição)
Black City entre a claridade do indie e a névoa das pistas. Narra o cinismo da cidade e a corrupção, como uma Gotham City em miniatura, mas encontra escapes no hedonismo. Ao terceiro álbum, Matthew Dear canalizava todas as fantasias e obsessōes, sexuais, políticas e científicas, para uma geometria descritiva desenhada a partir da cultura de estúdio e da hiperligação com a Nova Iorque fora de horas. Os nove minutos de Little People (Black City) sintetizam bem as metamorfoses convulsionais do produtor. E agora que nos relembrámos de Matthew Dear, onde raio se meteu o tipo?
DJ Manny - Party All Night EP
Maneiras de cozinhar footwork a altas temperaturas. Com revolta (They Can't), carinho (I Feel Music), energia (Only U), gozo (Party All Night) e prazer (Ratchet Shit).
Batu & Nick León - Yiu
Da admiração mútua entre Batu e Nick León nasceu um EP detonado por quatro sub-bombas silenciosas. A cultura de graves choca com o deep house fino e Yiu é a declaração amigável de acidente. Com adrenalina de Jersey, felizmente sem excessos de BPM.
Peter Broderick - Mimi
Peter Broderick compôs uma peça linda para o funeral da avó Mimi e, por infeliz coincidência, Mimi Parker dos Low partiu na mesma altura. "Em memória das Mimis deste mundo", o single junta a composição familiar e uma plácida versão de Laser Beam dos Low, vocalizada pela irmã Heather Woods Broderick. Em paz, como a morte pede.
KRM & KMRU - Otherness EP
KRM, ou seja Kevin Richard Martin (The Bug) e KMRU, remetem-nos para memórias fotográficas de tensão e ilegalidade. A acção passa-se num beco escuro com frio de cortar a garganta. O guião é dilacerante. KMRU introduz-se sussurando : "vozes negras e corpos negros foram silenciados". Apesar de nestas três peças predominarem as camadas de dub etéreo e ruído pútrido, é como se essa carregassem o peso dessa declaração através das sombras. E no sinistro se desfazem...
Earth Trax - Amnesia EP
Há uma claustrofobia vertiginosa a empurrar Earth Trax para o excesso. Uma tensão física e mental enzimada pela paranóia e transcendência. Como se todo o EP pretendesse derrubar sensoriais pré-estabelecidas. E, no entanto, estamos sempre a voltar aos primórdios do techno e do electro, e à mestria de Drexcya. Nunca é tarde para relembrar que tudo começou em liberdade, agora que o techno e o electro estão arregimentados a ditaduras de funcionalidade.
Extrawelt - Grindmaster
Duas décadas depois, os Extrawelt ainda se inquietam e expōe o incómodo. Angry Elecktro chamam-lhe e repetem em Angry Halibut. Todo o EP disponibilizado para a última Bandcamp Friday tem um fio condutor de desconforto e revolta aplicada sobre as máquinas. Um desvario pronto a chocar contra a parede de um clube ou armazém abandonado - locais onde a energia pode ser descarregada em vez de um saco de boxe num ginásio.