Esperei, como quem espera pelo autocarro em dia de greve. Um dia, dois dias, três. Uma semana, duas e nada. Quinze dias depois de a DJ Tágide ter perdido o medo e denunciado o pianista João Pedro Coelho, a Caixa de Pandora continua a receber testemunhos de assédio e abuso a mulheres no meio artístico. O jazz foi apenas o fio da meada e o novelo já se espessou não apenas a diferentes regiōes musicais, como a outras formas de expressão como a literatura, o teatro e a dança. Público, Expresso, Sol e CNN investigaram. Os demais noticiaram. Fizeram o seu trabalho. Para o Blitz, principal difusor de notícias de música em Portugal, não é assunto. Nem uma linha, 15 dias depois de o caso ter vindo a público. Quando, a título de exemplo, o escândalo sexual de P. Diddy tem merecido actualizaçōes regulares, como é suposto. Bastava citar o colega de casa Expresso e os serviços mínimos estariam assegurados.
Tal como o MeToo não se decide apenas na justiça, o tema transcende a secção da Sociedade e abala o meio artístico, desde a causa à repercussão. O Público tratou-o na página do Ipsilon, como se espera. Podemos falar de critérios? O Blitz não teve espaço para tratar um dos casos mais importantes da música portuguesa dos últimos anos mas publicou notícias relevantíssimas como o reencontro de Hugh Grant e Nicholas Hoult 22 anos depois de Era Uma Vez um Rapaz. Também teve o cuidado de convidar oito pessoas, o-i-t-o (!!!!!!!!) ligadas à agência que representa Pedro Abrunhosa, por acaso um dos jurados da eleição de Viagens, eleito o Melhor Disco da Música Portuguesa dos últimos 40 anos.
Só estes dois factos já deviam fazer soar as campainhas da vergonha própria. Em 170 votantes, oito são parte muito interessada e um tem a legítima oportunidade de votar em si mesmo. Como justificar esta arbitrariedade? Houve tantas pessoas da Sons em Trânsito a votar como da actual equipa do Blitz, mas o defeito de fabrico está em quem faz as regras do jogo e não nos jogadores. De todos os problemas, a eleição de Viagens é o menor de todos. A escolha é natural e compreensível. Trata-se de um álbum transformador da música portuguesa, dotado de cançōes fabulosas e revigorantes, e por isso um dos mais importantes do pós-25 de abril, a par de clássicos absolutos de Fausto, Sérgio Godinho, Heróis do Mar, GNR, Buraka Som Sistema, Sam The Kid ou Slow J. Também estaria entre as minhas escolhas, se tivesse sido convidado a votar. Alguns amigos do meio questionaram-me se tinha participado e mostraram-se perplexos quando lhes respondi que não. Agradeço o elogio de não ter sido convocado. Se o relvado está cheio de buracos, se não acredito nas regras nem confio nos moderadores, não me interessa jogar.
Enquanto escrevo, recordo-me que comprei o meu primeiro Blitz em março de 1996. A capa: uma grande entrevista a Sérgio Godinho, vencedor do Prémio Carreira nos Prémios Blitz que seriam entregues no Coliseu dos Recreios nessa terça-feira à noite. Antes de fazerem música, os músicos são ouvintes. Antes de ser pessoa do meio, sou leitor e é nessa qualidade que escrevo. O Blitz é influente na difusão de notícias e na reportagem de concertos e festivais. Gera soundbytes através do Posto Emissor mas há muito abdicou de produzir massa crítica. Algumas críticas a álbuns internacionais de maior peso mediático ou relevo artístico não pagam dívidas. Em relação à música portuguesa, limita-se a agir como passador dos nomes mais mediáticos, negligenciado o papel fundamental de separar o miolo da côdea.
Na escolha do melhor álbum da vida, quem toma decisōes no Blitz explode até às últimas consequências a réstia de relação de confiança com o leitor ao tratá-lo como estúpido. Deve haver razōes para isso. Estes prémios representam a indústria a celebrar-se a mesma. São irrelevantes para o público, ou pelo menos para ouvidos treinados. Aparentemente, ninguém lê as letras pequenas da votação. São como as cláusulas dos contratos com as operadoras, a EDP ou o empréstimo do banco. Preferimos lê-las na diagonal para não irmos à farmácia esgotar o stock de Brufene. Se não verificarmos os critérios, como podemos acreditar nas escolhas? Prémios como os Grammys desgraçaram-se devido à opacidade da academia. Quando as redes sociais entregaram ao público a sua bancada e os artistas deixaram de depender dos prémios para se credibilizarem, debandaram. Contestam, ignoram, desinteressam-se. A história recente está cheia de vencedores que deixaram o microfone a falar sozinho.
O painel de jurados da escolha do Blitz levanta vários problemas, como a falta de equilíbrio geracional, e o estigmatismo em relação a uma série de novos agentes que reformularam o ecossistema musical ao longo dos últimos 15 anos, mas o maior de todos é a independência e equidade. Em votaçōes sérias, escolha-se um representante por entidade e resolve-se o assunto. Talvez seja pedir de mais a quem acolhe os Black Mamba para uma entrevista de antecipação a um álbum que chegará seis meses depois, e a um concerto no ano seguinte. É um critério editorial comparável a uma sondagem no Largo do Rato. Daqui a pouco tempo, quando forem relevados os 50 álbuns escolhidos, confirmar-se-á o peso dos anos 80 e 90, e a magreza do século digital, como se quase 25 anos de Séc. XXI nunca tivessem acontecido, nem o gosto colectivo tivesse sofrido uma metamorfose profunda.
É bonito ver alguns adultos a lembrar os álbuns da adolescência como quem brinca com Lego e defende que os brinquedos da sua geração eram mais evoluídos que Playmobil ou didácticos do que consolas, mas os critérios determinam que a escolha do Blitz se incline para o plano político. Não só a relação com o leitor é ferida de morte, como a memória do próprio jornal é destratada. É uma crítica, claro, mas é também um lamento por ver o Blitz celebrar os 40 anos em falência dos orgãos vitais. Talvez isso justifique posiçōes feministas à segunda, a defesa da identidade de género à quarta e o ignorar do caso de Liliana Cunha à sexta.
O pilar do jornalismo é a independência mas, para isso, são necessário recursos. Já sabemos que o sector atravessa uma grave crise financeira e que o Grupo Impresa, ao qual o Blitz pertence, vive asfixiado por um passivo de equipa grande. O jornalismo é instrumental para a democracia e o musical não é excepção para o esclarecimento e construção de uma memória colectiva, mas antes de mais, precisa de respeitar-se a si mesmo e a quem o considera. Além do reconhecida dificuldade em monetizar-se, o jornalismo tem um problema patológico de falta de auto-crítica. Não adiantar participar em manifestaçōes na Praça do Município quando o escrutínio não entra na redacção. Até a luta pela sobrevivência tem os seus limites.
Fotos do arquivo de Rita Carmo. Na primeira, o promissor Pedro Abrunhosa foi capa do Blitz na semana em que Kurt Cobain morreu. Coragem e visão.