Os ponteiros marcam 09h30 e do outro lado do telemóvel, Beatriz Bronze responde apaixonadamente sobre o álbum de estreia Abaixo Das Raízes Deste Jardim enquanto o coro de andorinhas é a estrela da manhã.
Talvez seja o universo a alinhar-se. No jardim de casa dos pais, o horto interior rende-se ao sol e nasce uma grande festa de pop desnaturada. Em vésperas da apresentação em Lisboa, no B.Leza, Evaya faz a fotossíntese do processo de auto-reconhecimento transmitido por um disco reivindicativo de liberdade e prazer. Por alturas da celebração dos 50 anos do 25 de abril, que melhor momento para Abaixo Das Raízes Deste Jardim florescer?
O Abaixo Das Raízes Deste Jardim é todo escrito e cantado em português quando no EP Intenção te expressavas sobretudo em inglês. A mudança deve-se a uma questão de identidade e discurso?
O português permite-me ser mais clara com as minhas emoçōes e com o que quero transmitir. Sinto que me ajuda a ter mais identidade. As palavras não são tão musicais mas nessa falta de musicalidade, existe um desafio de as trazer para cançōes pop. Sabia que tinha de ser por aí e por mais difícil que parecesse, foi bastante estimulante escrever em português.
O mito de ser mais fácil escrever em inglês caiu?
No início, acho que tive essa sensação porque as palavras são mais rigídas em português e é mais difícil comunicar. Mas, por outro lado, é muito mais imediato. Foi difícil pôr em canção mas tinha esse lugar muito mais acessível para mim, enquanto em inglês tinha de pensar muito mais.
Essa transformação moldou as cançōes?
Sim, mas como eu estava e ainda estou a conhecer-me enquanto produtora e artista, a forma como tenho vindo a moldar-me sou eu própria a descobrir o meu caminho. É um desafio necessário. As palavras mostram-me para onde a canção tem de ir.
De onde partem as cançōes?
Varia de canção. Algumas partem da palavra ou de versos que me ficam na cabeça. Por exemplo, a A Florir lembro-me de ter feito na minha drum machine só com um kick (bombo) e um hi-hat. O ritmo ficou-me na cabeça ainda sem ser música nenhuma. Sinto que construí toda a canção dentro da minha cabeça, só por causa do padrão rítmico, e só muito mais tarde, no último novembro, é que disse ao [produtor] Polivalente: “esta canção vai ter que entrar no disco. Vou-te cantar”. Às vezes, é isso. Um padrão rítmico e as palavras vão chegando. Às vezes é uma melodia. Ou um som da rua. Estou sempre a gravar sons da natureza. As coisas fluem naturalmente. É um diálogo.
O Abaixo Das Raízes Deste Jardim dá um salto na produção ao ser mais complexo. Trabalhaste com o Polivalente. Como foi o processo?
Foi muito importante ter produzido o EP sozinha para criar um universo da Evaya, apesar de prematuro e imaturo. Quando convidei o Polivalente para produtor, jâ havia uma identidade. Foi muito importante a sensibilidade dele para não desvirtuar este universo. Ele ia-me dizendo coisas como “devias melhorar a letra”, e quando o meu ego acalmava, realmente ele tinha razão. Cheguei mais longe com as ideias. Enquanto arranjador, trouxe outra dimensão porque eu não sou propriamente instrumentista e ele toca muito bem qualquer instrumento. É fácil chegar ao pé dele com uma melodia que, se fosse eu na minha cabeça, ia ser muito minimalista. Ia soar a um drone que é o que acontece no EP. Eu gosto de trabalhar as texturas e os ritmos, mas com ele não vai ser um drone, apesar de termos sido muito minimalistas em algumas cançōes como a Morro Nasço e Nunca é Tarde e mesmo a A Florir. A parte instrumentista do Polivalente trouxe maior riqueza de acordes e melodias.
A relação entre o familiar e o experimental levou o disco para uma desconstrução pop?
Sim, porque muitas vezes escrevo cançōes que vão parar a lugares progressivos, sem verso e refrão. Algumas têm um modelo mais tradicional porque eu mesma me forcei a fazer isso porque senão não tinha cançōes com estruturas normais. Era importante em algum lugar ser acessível. Sinto que tenho essa facilidade em não ir pela estrutura normal.
Em entrevista ao Playback contavas ter feito o Abaixo Das Raízes Deste Jardim enquanto trabalhavas numa loja. Quão duro foi o outro lado da história?
É importante falar das experiências reais que não são de acordo com as nossas expectativas. Acabei o curso da ETIC, fui fazer um estágio em produção musical em Berlim mas as coisas no estúdio não fluíam. Fazia tudo menos o que estava relacionado com o curso que tirei. Entretanto, veio a pandemia e voltei para casa. Foquei-me no trabalho autoral e também não procurei mais oportunidades em estúdios ou algo do género. Quando as coisas começaram a acalmar, arranjei trabalhos noutras áreas. Foi importante não ter um trabalho que me tirasse a atenção de fazer música. Entretanto, comecei a trabalhar numa loja a tempo inteiro - estive lá durante ano e meio - e senti a urgência de lançar um disco porque já tinham passado quase quatro anos desde o EP. Na altura, foi muito bom porque surgiram algumas oportunidades que, com o passar do tempo, podiam perder-se. Quando trabalhava na loja, o resto do tempo era só para ensaiar. A loja não tinha muitos clientes mas a gerência era um bocado firme e só podíamos estar dedicadas às vendas. Como sou um bocado rebelde, nessas oito horas de pé ao balcão, escrevi candidaturas e cançōes. Li livros. Com dores nas pernas (ri-se)! Escrevi uma candidatura ao fundo cultural da SPA e ganhei. Foi aí que decidi que tinha que arranjar tempo para fazer este disco porque tinha um apoio e era a sério. Tive que me despedir porque começaram a surgir conflitos. Até aí, tinham sido flexíveis com o poder marcar concertos. Comecei a escrever em tudo o que era lugar. No momento em que me despeço, recebo a notícia de ter ganho uma bolsa de estudo da Arda (estúdio no Porto). Foi muito fixe. Evoluí muito. Tinha ficado com algumas inseguranças do curso porque nem tudo foi de encontro com as minhas expectativas mas hoje olho para trás e nem sequer estava preparada para tirar um curso porque o meu foco era escrever cançōes. Agora, estou numa fase da vida em que conto centavos mas estou muito mais feliz. Espero, em breve, poder trabalhar com outros projectos como produtora, gravar e misturar. Percebi que consigo ser boa.
As cançōes reflectem esses tropeçōes?
As cançōes vêm de um lugar verdadeiro, de experiências honestas. De me sentir presa, querer muito sair dali e ser mais feliz. De me sentir livre. Duas cançōes partiram de ideias do Polivalente: a Contemplação e a Dança da Mudança.
Há mais mulheres a produzir, uma função que até há poucos anos era sobretudo de homens. Vês uma mudança ou ainda sentes estigmas?
Acho que está a mudar e há uma diferença gigante. Agora, há muito mais mulheres produtoras. É um fenómeno, estão cada vez a aparecer mais. Inclusivé em Portugal mas quando comecei lembro-me de passar por uma experiência quando ainda estava na ETIC. Fui a um open mic com um amigo. Estava a tocar guitarra e fui cantar as minhas cançōes. No final, acharam que as cançōes eram dele e foram falar com ele. E tive outra, já como Evaya. Quando saiu o vídeo na Porta 253, recebi mensagens no Instagram a falar dos meus produtores. Não! Ainda por cima, aquelas cançōes tinham sido produzidas por mim. O facto de aparecer a cantar em algumas delas pode ter levado a pensar que não tive esse papel, mas tive. Assim se vê como essa ideia da mulher-intérprete ainda está enraizada mas está a mudar. Oportunidades como esta da Arda Recorders em que a bolsa era atribuída a uma mulher também ajudam. Agora, ainda é um bocadinho overwhelming chegar a um estúdio e a maioria serem homens. O meio ainda é muito masculinizado. Na Arda, há homens mas também há a Bárbara (Santos), que tirou este curso, e a Clara (Araújo), que são altamente!
Na Ofereço ao Sol, dizes que há uma grande festa dentro de ti. É uma sincronia entre interior e natureza, transversal ao álbum?
Sim, existe esse jardim interior que eu projecto para o exterior. Estou aqui em casa dos meus pais, rodeada deste jardim gigante. Sempre tive uma grande ligação com a natureza, mesmo esteticamente através de captaçōes e processamento de texturas a partir de elementos naturais, mas a história da Ofereço ao Sol passa-se cá dentro. Acho que estas cançōes mostram o percurso de alguém que quer ser livre. Emocionalmente e nas circunstâncias exteriores. Na Ofereço ao Sol, é muito claro que há um caminho que estou a percorrer. Sou eu a entregar o coração ao sol e a render-me. Estou aqui, a dar tudo o que posso, e vou só deixar de me preocupar. E nesse momento em que libertamos o controlo, ou deixamos de querer controlar tudo, parece que criamos o espaço para deixar entrar uma magia qualquer. Que às vezes só dura uns minutos. Essa coisa mágica é a grande festa dentro de nós.
A relação com a natureza pode considerar-se metafísica ao transcender barreiras materiais?
Para mim, sim. É um portal. Sentia-me presa num lugar e queria ir para um outro, das ideias e da imaginação. Algumas pessoas dizem-me que se sentem transportadas mas só posso falar pela minha experiência.
A reivindicação pela liberdade surge junto ao 25 de abril, ainda para mais no ano em que se comemoram 50 primaveras desde 1974. No disco, há uma canção chamada Dança da Mudança. Acreditas que é possível inverter um ciclo político de retrocesso, com guerras, extremismos e preconceitos?
Era bom que sim. Acho que transmito uma certa esperança, ainda para mais sendo uma mulher, porque há alguns anos não teria sido possível fazer este álbum. Mas é um esforço muito grande. Não sei o que se está a passar mas parece que o mundo está a regredir. É assustador. E apesar de trabalhar sobre temas como a liberdade, e no dia a dia ser alguém que não se prende a ideias que inibem a liberdade dos outros, estou rodeada de pessoas que vivem cheias de preconceitos. Não sei o que vai acontecer mas espero que, por outro lado, a bolha onde me insiro socialmente, com pessoas que pensam como eu, tenha força suficiente, com outras bolhas, para evitarmos que isto se torne num sítio inabitável.
Abaixo Das Raízes Deste Jardim acaba de sair pela Saliva Diva e é apresentado esta quinta-feira, dia 18, no B.Leza