Da insegurança amorosa e da ansiedade económica, nasce uma necessidade de superação que tem em Suspiro um divã catártico para Maria Reis. Nos anteriores (mini-episódios), Chove na Sala, Água nos Olhos (2019), A Flor da Urtiga (2021) e Benefício da Dúvida (2022) ouvimo-la de coração nas mãos a sugar a verdade do peito mas em Suspiro essa honestidade soa bruta, onerosa, salvífica e feminina.
A criação foi, como sempre, solitária, mas a descoberta de Tomé Silva - nome a guardar na lista de contactos a partir de agora - transfigurou as cançōes. Ouve-se o isolamento e o desconforto de não ter morada, mas também a partida em liberdade e a chegada a uma zona franca. E embora lhe seja difícil ordenar a obra por capítulos, Suspiro é o mais transparente de todos eles.
Na prática, como explicas a honestidade do Suspiro?
Acho que sempre fez parte da minha prática como pessoa que faz cançōes. Não o vejo necessariamente mais honesto mas se calhar sou mais honesta comigo própria e isso traduz-se no processo. Ou pelo menos, conheço-me melhor e isso entra nas cançōes. E como também já faço isto há algum tempo, talvez vá para outros lugares que se calhar ainda não tinha explorado a fundo na minha poesia. Por necessidade de ter outros ângulos e mais conteúdo poético.
Perdeste a vergonha?
Nunca tive muita vergonha. Sou muita tímida e envergonhada na minha vida normal. As cançōes são o único lugar onde não tenho vergonha nenhuma. É onde me sinto mais confiante. Nunca tive pudor em dizer o que quer que seja nas cançōes. Na vida, fica muito por dizer. Uso a canção para me expressar, talvez até de forma inconsciente. Acumulo muita coisa e depois na canção encontro um lugar onde consigo entregar sem pudor.
A canção como terapia?
É mais uma maneira de formular o pensamento. Não necessariamente para chegar a alguma conclusão mas é um exercício de pensamento, como qualquer actividade criativa, e isso traz diversas consideraçōes. Percorrer um caminho íntimo e auto-centrado no meu caso. Esse culminar é um processo terapêutico porque perco tempo a pensar que se calhar não encontro no dia a dia. O lugar criativo é de pensamento e de expressão.
E de solidão. É um dos motivos para dizeres que te conheceres melhor?
Sim, eu descobri por sorte, acaso ou coincidência que tinha jeito para fazer cançōes por mim. Estava em casa sozinha no quarto, com 13/14 anos, ou seja é um processo que tem alguma solitude. Estarmos connosco sem nenhuma pressão externa, sem ter que agradar a ninguém, ou sem distracçōes, deixa-nos num lugar reflectido. Quando só te tens a ti, o que é que podes fazer? O meu processo criativo sempre partiu de estar sozinha. Depois, havia outras pressōes. Com a Júlia (irmã), com as Pega Monstro (banda com a irmã) ou com quem estivesse a trabalhar. Só consigo escrever cançōes estando sozinha. É muito raro escrever com alguém ao lado. Aconteceu um par de vezes na minha vida. Às vezes, até tenho pena que seja assim (sorri). Tem mais a ver comigo do que com a outra pessoa.
Achas que nas Pega Monstro havia uma pressão social, pelo meio em que se inseriram, da qual se libertaram?
Não sei. Havia uma vantagem quando aparecemos que era ter a Júlia e estarmos com a Cafetra. Tínhamos um bloco de defesa que distanciava e relativizava alguma violência - e isto é a palavra certa para certos comentários e coisas que se escreviam na altura que hoje em dia…Quer dizer, as caixas de comentários estão cheias de imbecis. Se calhar até está pior para algumas situaçōes. Lembro-me de ler coisas que, se estivesse sozinha e com aquela idade, provavelmente teria parado de fazer música. Houve um gajo que disse: “era matá-las!”. Se não tivesse a rede de segurança que tínhamos e construímos, acho que não teria aguentado. Se calhar, isso também nos protegeu e alimentou a ideia que não só [o que estávamos a fazer] era importante como era raro, para a nossa expressão ser uma ameaça. Sempre tive inseguranças a nível individual. Não as deixo de ter. Acho que sinto a pressão da mesma forma porque sou que a ponho. Sou a maior julgadora de mim mesma.
Essa violência serviu a chispa punk?
Alguma coisa de ter que provar à malta, sim, mas não necessariamente ao nível das cançōes. Era mais ao vivo. E isto não foi bem uma escolha. A minha forma de validar o meu lugar no palco foi sempre através da minha expressão musical. Senti que precisei de provar o meu lugar, também por ser mulher, e conseguir ser melhor e mais rápida. Isso tem vurtides. O meu compromisso com a música é muito forte. Quero sempre melhorar, como se fosse uma atleta, mas esta pressão deve-se ao querer validar o meu lugar.
Faz sentido dizer-se que Pega Monstro é adolescência e Maria Reis é vida adulta?
Sim, Pega Monstro começou nos meus 17. Nunca acabou mas o último disco é de 2018. Quantos anos tinha? 28, 27, 26, 25? Também não sei quando começa a idade adulta. Acho que me sinto adulta no modo de vida mas sempre fui adulta e sempre fui criança. Sempre me disseram que era madura para a idade que tenho mas há uma altura em que deixa de ser madura. Sempre me senti velha e nova. Não consigo distinguir aquilo que era e daquilo que eu sou em Maria Reis. O fluxo energético é impressionante. Nunca pára.
Fizeste 30 anos em 2023. No rock, e não só, ainda se romantiza a adolescência embora esteja a mudar lentamente. Sentes-te a usufruir da passagem do tempo?
Sim, não sei se é muito consciente mas sempre esteve presente em mim uma ideia de continuidade. O estar em constante procura é uma forma de envelhecer com estilo. Não há nada mais desconfortável que uma pessoa que não gosta de envelhecer mas está envelhecida. Está em negação. Não está em contacto consigo própria. É triste. Não gosto de estar presa no sentido criativo. Tive sorte por ter encontrado a minha voz e a forma de expressar desde cedo mas ando sempre à procura de novas baladas. É um caminhar constante e isso vai acompanhando os anos a passar.
Como é que aparece o [produtor] Tomé Silva? Ele tem um papel muito importante.
Sim. Em setembro, já tinha quase todas as cançōes e não sabia bem o que fazer com elas. Sabia que queria gravar mas não sabia bem como. Se queria gravar sozinha…Estava toda a gente muito ocupadas nas suas vidas e o meu primo mandou-me um vídeo do YouTube do Tomé a tocar a Odeio-te na bateria. Gostei da maneira dele tocar, percebi que tínhamos amigos em comum, que ele também produzia e estava a tirar o curso de Produção na ESMAE, no Porto. Conheci-o e propus-lhe. Não só porque sabia que ele gostava da minha música mas porque sentia uma energia que me fez achar que poderia ser boa ideia. É um disco que tem muitas qualidades a nível de produção e isso é obra dele, assim como a mistura. Todos os elogios que vêm são sempre também para ele.
Este deve ser o teu primeiro disco em que o cunho lo-fi não está relacionado.
(Ri-se) Apesar de ser a coisa mais caseira que já fiz. Foi tudo gravado no quarto do Tomé em Almada. É trabalho dele. Acho que era importante para nós, como pessoas inseridas no meio cultural português, haver mais exemplos de como fazer um disco assim. Técnicas de produção. O Tomé tem essas capacidades que eu não tenho. Sei o que me soa bem mas falta-me o conhecimento técnico.
Recentemente, saiu o mini-álbum de Tomé Silva Quando Voltar ao Chão que atravessa uma série de estilos e tira partido das ferramentas, em vez de pôr limites. Isso também é comum ao Suspiro.
É. Aprecio pessoas que conseguem navegar em diferentes propostas mas continuam a soar a elas mesmas. É algo que tento fazer na minha prático e procuro. É a assinatura da pessoa. O compromisso é apenas contigo e não com o estilo em que se insere.
Quando as Pega Monstro e editoras como a Cafetra surgiram, havia um sonho indie de viver da música. Onde é que pára esse sonho?
Não sei, também pode ser injusto avaliar em retrospectiva, mas o que pode ter acontecido ali por volta de 2011/12 foi a possibilidade de criar um circuito independente em Portugal, de casas independentes e não só centradas na capital. Houve mesmo uma hipótese de criar uma estrutura autossuficiente assente numa economia circular. Aquilo em que acredito em absoluto e que a Cafetra nunca deixou de ser: uma editora absolutamente independente. Se calhar, não só as estruturas como a economia e o capitalismo fizeram com que não fosse possível. Agora, também não sei se se celebrou esse momento e a possibilidade de haver uma economia circular. Acabou por se capitalizar a ideia do indie. Não é dramático porque dá para salvar, mas é fixe haver pessoal com sentido crítico e, se estivermos num lugar de privilégio, poder dizer que não. Fazer perguntas: que marca é esta? Para que é que isto serve? Qual é o interesse para a comunidade?
Pode ter sido um momento “é preciso que tudo mude para ficar na mesma”.
Pois, é isso que temos vindo a aprender. E depois vêm os nazis outra vez.