O ano é 2022, o mês Setembro e o burburinho do regresso às aulas voltou. Uma perfeita desconhecida de nome Ana Lua Caiano pede licença e atira-nos seis tijolos à cara com todo o carinho. Cheguei Tarde a Ontem é presciente e provoca uma daquelas epifanias que acontecem no máximo uma vez por ano. Ouvir Yah dos Buraka Som Sistema em 2005 no MySpace, Slow J nos degraus entre Free Food Tape e Art of Slowing Down em 2017, Adoro Bolos de Conan Osiris na manhã de caixão à cova de 1 de janeiro de 2018, o Jazigo de Pedro Mafama em 2019, o EP de estreia de Silly no final de 2021 ou a primeira vez de Dilúvio d’A Garota Não há dois anos; é no primeiro grau de provocação de entusiasmo adolescente que nos encontramos.
Ana Lua Caiano só precisou de 18 minutos para conquistar o que pode levar uma vida: identidade. Integrou-se num todo mas assumiu-se de pronto como um caso à parte. A poesia conduz uma rota que passa pelo campo até chegar a cidade sem trocar o calçado. Em terra batida ou asfalto, o conforto é o mesmo - um só piso em que tradição (“ontem) e contemporaneidade (“cheguei tarde”) são a mesma cronologia. Modernizar o passado é provocar o futuro. É o EP de Olha Maria, poção de veneno doce nada subtilmente feminista.
Cheguei Tarde a Ontem é demasiado certo para não subir de escalão. A margem de erro é mínima. A selecção de esperanças curta. E a chegada do EP de companhia Se Dançar é Só Depois confirma o virtuosismo. Ana Lua Caiano não está apenas de visita, vem para ficar e somar. Distingue-se por ser auto-suficiente e segura da sua fragilidade, tal como testemunhado no palco do Musicbox há pouco mais de um ano. Uma autonomia assim, lírica, musical e performativa é impressionante mas tem os seus riscos.
Havia o perigo de se repetir, de literalmente ficar fechada neste quadrado, presa a um imaginário precoce, singular e emancipado. Mas não. Vou Ficar Neste Quadrado cumpre com tudo o que deixou prometido e soma-lhe camadas exploradas com o vagar de um álbum apenas um pouco mais longo do que os EP. O necessário para justificar o prolongamento de curta para longa-duração.
O vírus no sistema a meio do processamento de dados de O Bicho anda por Aí é um bom vislumbre dos repentes inesperados que interrompem a emissão. Interstícios excêntricos que nunca dão folga à normalidade. Quando Vou Ficar Neste Quadrado ameaça tornar-se mecânico, um pauzinho na engrenagem resolve o problema a complicar o óbvio.
Não se trata de um álbum de ruptura com um passado demasiado recente para ser abortado mas antes de uma consolidação da simetria entre lirismo, cenografia musical e, não menos importante, uma estética visual decisiva para descodificar a personagem de Ana Lua Caiano. Talvez em Vou Ficar Neste Quadrado ela tenha tanto de cientista como de ceramista. É barro produzido com técnicas avançadas e rigor cientifíco mas a espontaneidade de uma criança a brincar no parque.
O laboratório sónico da Dra. Ana está no auge das suas capacidades em cançōes como Ando em Círculos e Que Belo Dia Para Sair. Ambas são fruto do labor de horas de experimentação, da tentativa e erro para chegar a uma geometria em que a imperfeição é assumida no escapismo à regularidade das figuras representadas na linguagem etno-digital. Como a de outras notáveis guardadoras de margens: a catalã Marina Herlop e a guatemalteca Mabbe Frati estão pelo mesmo quadrante à sua maneira.
A matéria humana e maquinal, das polifonias aos sintetizadores, transita de Cheguei Tarde a Ontem e Se Dançar é Só Depois mas o surrealismo de veia Cesariny arranca Ana Lua Caiano do real como o vento rouba as varas a um chapéu de chuva. Uma canção como De cabeça colada ao chão habita no sobrenatural de Fossora de Björk, enquanto a deliciosa Deixem o Morto Morrer atira os Gaiteiros de Lisboa para dentro de uma centrifugadora com uma flauta a fazer de Kompensan do trituramento.
Vou Ficar Neste Quadrado pode ter nascido em laboratório mas não foi feito para armazéns abandonados. Ou não se tratasse de música ainda assim popular. As máquinas animam o corpo rítmíco mas o coração é senciente. Traz as melodias recolhidas na oralidade para poesia metropolitana, leitora de questōes complexas como o esgotamento mental em Cansada e dos restos do isolamento em O Bicho Anda Por Aí, mas a mão na mão é humana e tem pulso.
Breviário do dia-a-dia é um retrato do seu tempo e da sua protagonista. Ana Lua Caiano é um feliz paradoxo entre a realizadora fechada numa bolha a criar o filme e a actriz a escapar entre as arestas do quadrado. É a partir de dentro que o salto para fora tem maior impulso.
Vou Ficar Neste Quadrado tem edição pela alemã Glitterbeat, casa de, por exemplo, Khruangbin
Recomendaçōes não-algorítmicas:
Four Tet - Three
É sempre o mesmo mas um pouco diferente Kieran Hebden. Há uma idiossincrasia em cada gesto de Four Tet que o torna único. Em Three, talvez seja o resumo condensado das múltiplas ferramentas usadas até aqui, do jazz ao house não-convencional.
DJ Nigga Fox - Chá Preto
A Princípe como a conhecíamos está lentamente a reformular-se, através da mutação rítmica dos seus actores. Chá Preto pode muito bem ser a bebida suave depois de dez anos a 140 BPM de Nigga Fox. Previne o envelhecimento e faz crescer o dia para além da madrugada. O suor do clube é a memória de uma camisola transpirada no cesto da roupa, mas o rescaldo ainda tem o corpo ligado a um beat de juke.
Branko - Soma
A música electrónica não tem de ser exclusiva de clubes. A sua maturidade é a hipótese de poder existir noutras assoalhadas, pisos e horários. Essa ideia prevalece em Soma, álbum mais nervoso que o morno CTG, mas ainda algo mecânico nos padrōes fixados desde Nosso. A questão não é ser um bom álbum, é se Branko não estará demasiado confortável no seu idioma.
Capitão Fausto - Subida Infinita
O tempo dos Capitão Fausto é uma cassete rebobinada. Subida Infinita fala como sempre sobre o ciclo de vida. Repousa a vertigem em cançōes que podiam sair das fitas da The Band com muito Brasil setentista a forrar a ascenção e a queda no real. Um álbum feito por adultos na sala.
The Messthetics & James Brandon Lewis - The Messthetics and James Brandon Lewis
Os pós-Fugazi, Brendan Canty e Joe Lall, unem forças com o saxofonista James Brandon Lewis para um disco exploratório, apátrida e despreocupado do destino, com elementos de rock desacelerado e funk venenoso para deixar algumas pistas.
The Sorcerers - I Too Am a Stranger
O trio formado pelo baixista Neil Innes, o baterista Joost Hendrickx (Gott Street Park, Eddie Chacon) e o multi-instrumentista Richard Ormrod recebe os sopros da trompetista Olivia Cuthill e as peles do percussionista Danny Templeman para fazer jazz da melhor escola etíope com mestria.
Thundercat - Apocalypse (Ten Year Anniversary Edition)
Há dez anos, Stephen Lee Bruner já era Thundercat e apesar de Apocalypse não ser tão formalmente perfeito como o sucessor Drunk, tem colheres de mestria em cançōes como Oh Sheit It's X num caldo indefinível de soul, jazz e electrónica.
Mo Kolours - Chapter Two
Sequela do episódio revelado em novembro do ano passado pelo espírito tranquilamente irrequieto de Joseph Deenmamode. O tribalismo de piquenique de Chapter Two não é novo em Mo Kolous mas nunca deixa ficar mal.
Kyle Tierce - The Five Fingers of a Dog
Banda sonora de The Five Fingers of a Dog com tudo o que um filme gótico de terror pode pedir: library music, psicadelismo e música concreta. Sem imagens, dá para estar no cinema.
Cousin Kula - Vitamin D
Um bom álbum para começar a tirar a roupa e mostrar os dentes. Disco despretensioso mas bem educado com trombones, trompetes e bateria, além do sintetizador. Chama-se Vitamin D e andamos a precisar dela.
Heavee - Unleash
Darryl Bunch Jnr tem um passado no footwork e Unleash não o corrige. Apenas lhe dá estudos mais avançados no desenho metalizado do som e na desformação de estruturas rítmicas já por si desestruturadas.
Soichi Terada - Apes In The Net
Em tempos, Soichi Terada assinou a banda sonora de breaks e jungle do jogo para Playstation Ape Scape. Parte dela é agora recuperada em no EP Apes In The Net com a impressão digital própria do japonês.
Sparkle Division - Jupiter Lounge
Depois do álbum do ano passado, o trio de William Basinski, Preston Wendel e Gary Thomas Wright volta a fazer-se ao jazz, ao funk e ao deep house sem se comprometer demasiado neste EP.
Suchi - Ghungroo EP
Mais um EP nómada da londrina com origens em Oslo, viajante do techno para o house e breakbeat, com uma remistura bem profunda de Sam Goku a fechar a pista.
Kirk Degiorgio presents As One - Reflections
Há trinta anos, Kirk Degiorgio defendia uma tese de mestrado house no precário e reinventivo Reflections. O álbum foi criado quando vivia num pequeno apartamento em Waterloo e espelha, quer as contrariedades, quer a urgência em reivindicar o mundo novo.
Dubkasm & Footsie - Soundman Ting
Dub do bom, fundo como uma caverna, graves sobrenaturais e o selo da francesa OBF Dubquake.
Coil - Moon's Milk (In Four Phases)
Quatro EP dos Coil, gravados em 1998, e editados originalmente em CD em 2002, agora disponíveis num triplo vinil. Improviso, liberdade artística e engenharia sonora.
Deepspace - The Black Orchid Galaxies
A lancha Deepspace descola à velocidade da luz em direcção ao espaço intergaláctico em busca de sinais de vida. Não traz resultados conclusivos mas o rasto sonoro é fascinante.