Quando se olha para um ano como o anterior, o balanço diz-nos que houve medo de romper: em 2024, já há pelo menos um álbum a assumir a ruptura e a ousar reinventar e reinventar-se: é Cowboy Carter de Beyoncé. Se lhe juntarmos a luminosidade de Adrianne Lenker, a idiossincrasia experimental de Kim Gordon, a graciosidade maturada dos Vampire Weekend, a liquidez de Shabaka, o tubo de ensaio de Little Simz ou a sincronia com a Amazónia de Amaro Freitas, já temos um bom punhado de álbuns de 2024. Venham mais!
Adrianne Lenker - Bright Future
Em Bright Future, um pequeno milagre acontece: a transmissão de esperança no futuro. Involuntariamente, a candura de Adrianne Lenker fala por uma necessidade colectiva. É um disco de claridade no fundo do túnel, de uma beleza suspensiva do tempo, como num conto infantil. Talvez o verso “no surprises, you have the stars in your eyes” de Fool fale por um todo de coisas simples contadas a partir de perspectivas improváveis. Crítica
Beyoncé - Cowboy Carter
Em Cowboy Carter a relação entre cultura negra e white america, inteligentemente questionada a partir de uma perplexidade pessoal, é pelo menos tão importante quanto o exercício de renascença particular. E tal como nos antecessores, o valor é o de um marco cultural que extravasa largamente a subjectividade das leituras. Crítica
Kim Gordon - The Collective
The Collective é um álbum sobre a perplexidade que lida com a incompreensão como chave de descodificação da loucura. Tem cédula de septuagenária mas a idade é apenas um número. O rock apenas uma noção. Os Sonic Youth uma escola. O passado talvez um país idealizado. O presente uma panela de pressão. Esta Kim Gordon é honestamente desconfortável e idiossincraticamente perturbadora. Crítica
Vampire Weekend - Only God Was Above Us
Only God Was Above Us tem tanto de regresso às primeiras madrugadas como de projecção de um horizonte luminoso. Como sempre, como dantes, a canção de geometria clássica é a matriz mas o álbum não se priva da fantasia nem se esconde da catástrofe. Crítica
Shabaka - Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace
A música é transparente e livre mas também complexa ao transcender as barreiras físicas. Um longo poema sónico sublimado pelas propriedades dos convidados. Perceive Its Beauty, Acknowledge Its Grace é um disco associativo e transformador, de um ângulo pessoal. Crítica
Little Simz - Drop 7
Se, como nos EP anteriores, este servir de laboratório de experiências, o campo grande de Little Simz vai continuar a crescer em largura e riqueza cultural. Precisamos de referências sem medo de guiar as plateias para o desconhecido. Sentir a novidade, como se de uma primeira vez se tratasse, é uma luz de esperança no futuro perante o apagão geral de utopias. Crítica
The Smile - Wall of Eyes
Wall of Eyes tem mais parecenças faciais com os Radiohead, em exercícios de estilo como Teleharmonic e Under Our Pillow do que A Light For Attracting Attention, em que havia uma The Smoke a dançar na corda bamba de Fela Kuti, mas ambos afirmam uma relação de interdependência em que a autonomia dos The Smile pode ser o anti-depressivo que os Radiohead precisam depois do mortiço A Moon Shaped Pool. Crítica
Sheherazaad - Qasr
O nomadismo de Sheherazaad devolve-a a uma ancestralidade que enaltece as fundaçōes para expor diversidade e imagina, com assombro e fantasia, uma geografia sem quartéis nem barricadas. Qasr é um manifesto identitário de dimensão metafísica, que usa a tensão interna como reactor emocional às narrativas instituídas e resposta ao conflito de personalidade. Crítica
Amaro Freitas - YY
Y Y é o notável disco de Amaro Freitas que parte de um olhar profundamente crítico sobre as políticas de Jair Bolsonaro de destruição da Amazónia para chegar a um lugar musical de ancestralidade e reconstrução do humanismo. Entrevista
Grace Cummings - Ramona
Grace Cummings viajou de Melbourne e à espera tinha a grandiloquência da produção e arranjos de Jonathan Wilson. As grandes cançōes de Ramona vêm embrulhadas numa voz poderosa e numa cenografia majestosa. Podia ser um encontro entre Angel Olsen e Nina Simone.
Mizu - Forest Scenes
Mais um belíssimo disco a interrogar as noçōes de território e a coexistência entre o humano e o natural. Forest Scenes fá-lo dentro da moldura criativa, como um quadro, uma escultura ou uma instalação. Moderno e pastoral, é uma viagem ao centro do som orgânico no vale encantando da floresta.
Four Tet - Three
É sempre o mesmo embora um pouco diferente Kieran Hebden. Há uma idiossincrasia em cada gesto de Four Tet que o torna único. Em Three, talvez seja o resumo condensado das múltiplas ferramentas usadas até aqui, do jazz ao house não-convencional.
Kali Malone - All Life Long
Ariel Kalma, Jeremiah Chiu & Marta Sofia Honer - The Closest Thing To Silence
Majesty Crush - Butterfiels Don’t Go Away (reedição)
Como puderam os Majesty Crush ficar esquecidos? Butterflies Don’t Go Away sintetiza a vida breve de uma banda que queria matar presidentes e não se escondia atrás das múltiplas camadas de guitarras. O teste definitivo do algodão é a resistência ao tempo destas cançōes, motivadas por uma escrita apurada e um gosto ruídoso. Não devem ao melhor que se fez no eixo shoegaze/pop sonhadora.