Foto de Pedro Francisco
Em 2010, fui pela primeira vez ao Sónar em Barcelona. Houve LCD Soundsystem, prestes a encerrar o primeiro capítulo, os Hot Chip no papel de bons actores secundários da DFA, a reunião em lume brando dos Roxy Music, uns Chemical Brothers transcendentes, a retroactividade dos Sugarhill Gang, a festa da mistura dos 2 Many DJs, os Carte Blanche (Mehdi e Riton) a provar as melhores castas do electro francês, e um poço sem fundo de novas apostas, de John Talabot a Flying Lotus, Hudson Mohawke, Nosaj Thing ou Lunice, que o tempo haveria de validar. Foi um período de intenso namoro do digital com o rock, transformador no acesso a novas ferramentas, e consequente abertura da electrónica a outros quadrantes e linguagens, assim como de reconhecimento facial da sua memória, mas acima de tudo de celebração dos seus continentes como um só planisfério e não apenas das regiōes físicas.
É que além de toda a programação de concertos e clubbing, havia ainda o Sónar Day, numa outra zona da cidade, o Centre de Cultura Contemporania, junto à Universidade de Barcelona, que não só propunha uma programação diurna, com Jimi Tenor, Konono No.1 e os bascos Delorean, recebidos em êxtase como a equipa da casa, como também uma área dedicada à investigação científica, cheia de experiências robóticas indicativas de que um futuro artificialmente inteligente poderia estar próximo. Para os pensadores do futuro, talvez tenha demorado mais do que o previsto - embora não tanto como o carro voador de Blade Runner - mas quem tenha passado pelas brasas desse tempo de expansão tecnológica, com efeitos imediatos na cultura pop, recorda-se das promessas de um amanhã excitante, mais informado e progressista, em que as máquinas iam melhorar a vida dos humanos. Era tão bom, não foi?
O convite da organização não foi inocente. Havia planos para trazer o Sónar para Portugal. Movimento que seria, aliás, anunciado um ano depois mas pelo Primavera Sound num primeiro passo do festival catalão rumo à expansão global, iniciado no Parque da Cidade do Porto. Todos os factores se pareciam alinhar na época: festivais a crescer como cogumelos, marcas a acreditar na música e a viabilizar investimentos, um acesso inaudito a informação com novas ferramentas de pesquisas a alimentar a descoberta de subterrâneos até aí encriptados, fome de novidade e um buffet interminável para a saciar. A perspectiva é assumidamente romântica. Portugal, por exemplo, esteve sob o garrote da Troika a partir de abril de 2011, mas festivais como o Sonár não só dissipavam o fastio da agenda política como proporcionavam uma libertação física e espiritual que não se esgotava numa noite tórrida ou num fim de semana de evasão. Perduravam como um admirável mundo novo, de liberdade individual e congregação colectiva.
Salto no tempo até 2025 e o mundo é outro. As utopias pereceram, o algoritmo matou a descoberta, o individualismo triunfou sobre o colectivo, a música foi relegada do fim para o meio, e os modelos referenciais de transformação vulgarizaram-se. O Sónar chegou dez anos depois do Primavera Sound, com um cenário hiperpovoado de festivais multi-género e de acontecimentos só de música electrónica todas as semanas. Em quatro anos de casa em Lisboa, tem sentido dificuldades em cumprir com o dever de afirmar uma diferença e proporcionar uma experiência total - física, mental e sensorial - que se distinga da escolha múltipla disponível ao longo do ano e do território - Neopop, Lisb-On, Eléctrico, Waking Life e até o Boom -, além do totobola semanal enunciado. Para se ter a ideia da pressão habitacional neste território, no primeiro dia de Sónar a modelo pop do house Peggy Gou foi anunciada para junho no Festival Nómadas, em Braga. E dentro de pouco mais de uma semana, a duquesa do techno, Amelie Lens, estará no mesmo Pavilhão Carlos Lopes do Sónar. A santificação da Páscoa começa na quinta-feira com Ben Klock no Lux. Qualquer um dos três poderia ser um dos ases de trunfo do Sónar (Amelie Lens e Peggy Gou estiveram no Sonar lisboeta há dois anos).
Um corpo sem cabeça?
O problema não reside apenas no congestionamento. Está na incapacidade de os circuitos relacionados com a electrónica saírem dos eixos e estimularem todos os sentidos, além do corpo. E só dessa forma a diversidade pode saltar da semiótica para a prática. De resto, o glossário da cultura está cheio de vocábulos pouco adesivos. A “experiência”, a “transformação” e o “submundo” pertencem a uma longa tradição que o presente esquece e divide gosto de conhecimento. Em 2022, o primeiro Sónar recebeu uma instalação de Alessandro Cortini, em 2023 a Estufa Fria acolheu o Sónar+D, dedicada ao cruzamentos entre arte, ciência, música e tecnologia, sob o tema Realidades Naturais Ampliadas, e no ano passado o colectivo Zabra apresentou Limbic Landmarks, “uma ponderação sobre a coexistência entre o humano, o digital e o natural”.
A intenção conta mas o efeito é residual e fica a sensação de que masterclasses como a dos artistas digitais Boldtron sobre Inteligência Artificial resulta apenas uma peça decorativa. Festivais como o Sónar estão agora reféns do modelo funcional de conforto achado pela cultura electrónica. Amanhã é longe demais quando se pode ter o bastante agora, sem puxar pela cabeça. Pode a experiência física ser dissociada do preconceito algoritmo diário? Tem um festival renomado a capacidade de desconstruir profecias auto-realizadas e estimular a descoberta?
Dir-se-ia que no domingo, o último dia de Sónar 2025, as rotas musicais de Hagan, Pedro da Linha e Mu540 questionaram, pelo menos, os instintos geográficos primários. O inglês com centro de gravidade no pan-africanismo de sotaque bass londrino, o damaiense com a selecção de remisturas e produçōes próprias que solidificam a batida de Lisboa desde a explosão revolucionária dos Buraka Som Sistema, e o paulista com uma proposta duplamente provocadora de espatifar o baile funk e desmanchar êxitos de mainstreaming como Galopa de Pedro Sampaio, e dessa forma provocar quer o universalismo rave, quer a generosa comunidade brasileira que fez do Sónar Village a sua malhação (nada) particular.
Mu540 por Catarina Almeida
Enquanto uma minoria vociferava contra a heresia de aceitar a escavação de favela-pop como peça da cultura electrónica global, a aeróbica quebrava barreiras socioculturais e preconceitos endémicos, enquanto o ar circulava entre a quinta mão da escola francesa dos The Blaze - em DJ set, nem os visuais escapam à vulgaridade - e o techno barraqueiro de Clementaum. Hábil, Mu540 soube ir às paragens certas para chamar o público. Misturou clássicos como Girls Just Wanna Have Fun e I Follow Rivers, invocou os Kraftwerk (para quem não sabe, os bailes funk tiveram origem no electro das 808), e o falso coro de MPTS de Branko (que assistia) e Pedro da Linha. Se a ideia era exponenciar o Brasil como a próxima grande potência musical, capaz de questionar a hegemonia anglo-saxónica do centro às franjas, a programação do Sónar acertou em cheio. Se o objectivo era desfazer os dogmas do dia-a-dia também resultou. E ainda assim, foi possível coexistir com a imersão audiovisual cintilante de Max Cooper, truncada na tradição europeia.
Porque um festival que construiu a sua personalidade à base de prediçōes e apostas não se pode contentar com cinco mil pessoas a esbracejar pelos Underworld, pela décima quinta vez nos últimos vinte anos, enquanto enxugam memórias ressacadas em copos reutilizáveis de Heineken. Ano após ano, os grandes catalisadores repetem-se. E as residências locais também - sinal de que depois da Enchufada e da Príncipe há poucas famílias musicais com ADN próprio e e
Um festival não é uma IPSS mas é importante recordar que a história tem um princípio assente em meios antes de vindicar os fins aos novos ases de trunfo do techno ou ao panteão histórico (Jeff Mills, Plastikman). A idade é apenas um número mas a sensação de cansaço e reincidência do cartaz não. Contrariar hábitos culturais em que o clubbing é como encher o depósito de gasolina ao domingo, e comprar tabaco na bomba da Repsol, é um quebra-cabeças, mas é aí que o emergir de mundos subterrâneo pode ajudar a vencer o medo do desconhecido.
Sem ter o arrojo de nadar fora de pé, nem o acolhimento ideal do Pavilhão Carlos Lopes, apesar do trunfo da centralidade, o Sónar reconhece as dores de uma cultura alienada e aburguesada, e oferece alimento orgânico (DJ Firmeza, Lycox, Nick Léon ou Molero, além de Hagan, Pedro da Linha e Mu540) para o combate à gordura. A proteína para o fortalecimento muscular está na recusa dos padrōes de relaxamento hedonista. A cultura electrónica tem um problema de identidade agravado pelas dores existenciais do modelo de festivais mas o Sónar ainda tem alguns antídotos para lidar com a crise.
Reportagem baseada no último dia de Sónar, com notas da edição de 2024 e da história do festival desde Barcelona