Esta semana, ficou a saber-se que o Super Bock Super Rock se divorciou da Música no Coração e que o Sudoeste está em risco por falta de patrocinador. Costumava ser o fim de semana de ligar o detector de talentos no Super Bock em Stock/Vodafone Mexefest mas também o festival da Avenida de Liberdade se emudeceu quinze anos depois. Há dias, foi anunciado o 15º Sumol Summer Fest, um dos últimos redutos da MnC juntamente com o Caixa Alfama, para julho do próximo ano. As datas estão confirmadas, mas nomes nem um. É ousado querer vender passes antecipados para o Natal sem um isco. A queda anunciada da promotora fundada por Luís Montez e Álvaro Covōes em meados dos anos 90 não surpreende ninguém, dentro e fora da indústria, e se é verdade que são os cartazes o íman, o crédito dos festivais ao longo das temporadas é decisivo para os cimentar ou desgastar.
Quando a falta de exigência do público é sobejamente questionada, esta uma boa prova de que se atingiu alguma maturidade e na hora de optar não pesam apenas as letras grandes. É verdade que o Super Bock Super Rock perdeu a capacidade de rivalizar com a concorrência mais directa - NOS Alive, Paredes de Coura, Primavera Sound - nos últimos dez anos, por erros estratégicos, mudanças constantes de casa, e provavelmente desinvestimento da própria marca. E também com algum azar à mistura como a severidade das temperaturas no verão 2022 que agravaram o risco de incêndio. Em tempo recorde, o festival foi relocado para o MEO Arena e provavelmente até beneficiou em afluência. Ainda assim, estes factores agravaram o descrédito dentro do próprio meio e espelharam-se no público. A quebra de confiança desaguou na não-renovação do contrato. E agora SBSR? Se avançar com a Ritmos & Blues, voltará ao MEO Arena com o alto patrocínio da Live Nation? Em que formato?
Como a memória não é curta, importa recordar noites históricas na última década de SBSR como as de Kendrick Lamar, De La Soul, Orelha Negra e Slow J em 2016 e de C. Tangana em 2022; e concertos inesquecíveis de Disclosure, Massive Attack, Jamie xx e Iggy Pop, em 2016, The xx, Anderson.Paak, Travis Scott e Slow J de novo em 2018 ou Christine & The Queens, Janelle Monáe e o triplete Dino, Branko e Conan Osiris em 2019. O problema nunca foi a diluição do termo rock em culturas como a do hip hop mas em monumentais erros de casting como as escolhas dos The Voidz, a equipa B de Julian Casablancas, e de Steve Bad Habit Lacy para cabeças de cartaz, a somar a todos os factores mencionados e outros como o problema crónico nos acessos ao Meco ou a falta de iluminação no parque de campismo.
O caso do Sudoeste é distinto. Dificilmente se podiam pedir nomes mais indicados para os TikTokers do que Pedro Sampaio, Timmy Trumpet, Morad, Deejay Telio, Ivandro, Calema (2022), Niall Horan, Giulia Be, Bizarrap, Farruko, Karetus, Slow J, Metro Boomin’, L7nnon e Steve Aoki (2023), Alok, Mizzy Miles, Martin Garrix, Matuê, Richie Campbell, Bárbara Bandeira, Don Toliver, Charlotte De Witte, Van Zee ou Chico da Tina (2024) - verificar os tops em caso de dúvida. E no entanto, o festival emagrecia de ano para ano - os testemunhos de “nunca vi o Sudoeste tão vazio” confirmavam o que algumas reportagens escritas e visuais transpareciam com algum pudor em afirmar. Em 2024, só os Da Weasel mereceram uma enchente para os (re)ver. Nem uma estrela global como Anitta teve o poderio de envolver a planície.
Toxicodependência de dados móveis? Falta de interesse dos adolescentes e pré-adultos em ligaçōes físicas? Nada disso. A primeira geração digital desde o berço quer viver experiências para as poder gravar e partilhar. Uma semana antes, três datas de Travis Scott na MEO Arena faziam fila a partir da manhã no Parque das Naçōes. Houve quem acampasse à porta. O desejo de sensaçōes-limite não se diluiu e provavelmente até aumentou. O que a geração para quem o Sudoeste e Travis Scott falam ao ouvido não quer é estar sujeita ao desconforto de montar a tenda, cozinhar e tomar banho em chuveiros públicos. A experiência das “primeiras férias sem os pais”, vendida com êxito durante anos, perdeu o sentido. Até porque muitos desses pais passam muito tempo fora de casa. Logo, as primeiras experiências acontecem na sala e no quarto. Não é preciso ir até à Zambujeira do Mar passar cinco dias a comer latas de atum em Panrico [lido diariamente com pessoas de 20 anos e passo muito tempo a ouvi-las com gosto].
Em conferência anterior ao Sudoeste 2024, o primeiro sem patrocinador em 25 anos, Luís Montez mostrava-se optimista por perder o peso de um parceiro e afirmava ter outros espaços comerciais para vender como bancadas. Sem surpresa, o plano não resultou porque o festival deixou de ser apelativo. Os pais já tinham esquecido a paixão platónica pela Elsa há muito, os filhos preferem dormir em casa e fazer outro tipo de programas estivais em férias. Pode o Sudoeste ser repensado como um Coachella? Um Glastonbury balnear? A costa é magnífica e o festival ajudou a solucionar o problema crónico do lixo em Odemira, o maior concelho do país com a impressionante extensão de 1 720,60 km². Todos os outros factores parecem adversos, a começar pela hipersaturação do sector dos festivais já analisada na Mesa de Mistura.
No Reino Unido, o número de festivais cancelados duplicou para 72 em 2024. Muitos deixaram de ser viáveis do ponto de vista económico e outros sofreram com estados climáticos severos como chuvas torrenciais ou fogos. “Devastador”, descreveu John Rostron da Associação de Festivais Independentes. “O sector dos festivais gera, todos os anos, receitas significativas para as economias locais e relacionadas, bem como impostos”, lembrou. Os motivos estão identificados: o excesso de oferta, a subida do custo de vida, a repetição constante de cartazes, as tensōes políticas no mundo e os efeitos da catástrofe climática. O fenómeno é global, de resto. Este ano, o Primavera Sound de São Paulo não saiu do papel - no Brasil, o tema tem levantado amplo debate. Em 2025, o festival da Pitchfork em Chicago não se irá realizar pela primeira vez em 19 anos. “Uma decisão difícil”, dizem sem justificar prometendo continuar com outros acontecimentos ao vivo. As “decisōes difíceis” ou “circunstâncias imprevistas” estão para os cancelamentos como o “não és tu, sou eu” para o fim das relaçōes.
Haverá alguma relação entre o decréscimo do sector e a queda da Música no Coração? Aparentemente não, já que a mudança de mãos do SBSR se deve sobretudo a erros próprios enquanto a mais que provável baixa do Sudoeste em 2025 se justifica por factores exógenos de mudança de rumo na marcha da juventude, mas talvez a incapacidade em encontrar um patrocinador para o festival da Herdade da Casa Branca queira dizer algo mais do que apenas a falta de poder negocial da MnC. Em Portugal, o fenómeno parece ainda estar a passar o largo, apesar de ser consensual o excesso de oferta para a dimensão do território. Segundo a APORFEST, realizaram-se 328 festivais em 2022. O número mais alto da década projectou Portugal como o 13º país europeu com mais receitas geradas por estes eventos.
A oferta não só se exponenciou ao longo da última década como se segmentou. Multiplicam-se os festivais de electrónica, metal, hip-hop e música brasileira. E de música portuguesa, tirando partido e amplificando hábitos de consumo cada vez mais virados para dentro (há virtudes e defeitos nesse comportamento), que permitem baixar custos de cachet, viagens, estadia e alimentação. Mas todos os motivos referidos para o princípio da crise no sector afectam Portugal. E os custos galopantes de andar na estrada estão a deixar em casa muitos nomes pequenos e médios. A engenharia financeira de um festival é complexa. Poucos sobrevivem só da bilheteira. É inevitável que este anticiclone traga vento e chuva mas será que precisamos de tantos? Ou de mais silêncio para limpar a cabeça?