E é isto. Num dia, entregamos a vida ao capitalismo tecnovigilante, incapazes de o relativizar, desierarquizar ou suspender. No outro, a automação prescreveu e sonhamos emular os anciãos. Desconectados, descarregados e descongelados. Num instante, a imagem romântica da criança a descer o escorrega fica sem bateria e salta da memória visual para a gravação na retina. No outro, trocar mensagens cara a cara na esplanada ou contar os passos da corrida, quando o telemóvel já deu o berro e a aplicação de trekking adormeceu no sofá, passa a ser um acto criminalizado e o prazer infligido pela pausa obrigatória é agora considerado culpado pelos tribunais da moralidade. Passamos a rejeitar a potência digital e só não apagamos o MB Way porque os últimos traços foram gastos a tentar recolher dados móveis para confirmar se, de outro lado do rio, “também falta a luz”.
Nesta esquizofrenia emocional entre o retrocesso da evolução (?) descontrolada, e o progresso imposto por um retiro colectivo inesperado, a compra de papel higiénico até 2027 não ensinou nada. As horas seguintes confirmam-no, se é que nova descarga de realidade traz alguma nova. É preciso que tudo mude para que fique na mesma. A 28 de abril, os influenciadores entram em blackout, as televisōes desventuram-se e a rádio volta a ser a senha da resolução. São 21h00 quando desço nove andares de uma torre em Carnaxide para saber, através da Antena 1, que “a Calçada de Carriche já está iluminada” e em Évora já se servem jantares, apesar das dificuldades no fornecimento de água. Em Almeirim, o privilégio da energia eléctrica também já chegou. Admirável mundo velho que vê a luz como uma criança a madrugar pela primeira vez após um parto longo e desinformado.
“Tudo está a voltar à normalidade”, proclama o PM no dia seguinte à hora da espuma de leite. A banalização do mal tem sinal verde para voltar a avançar. A CMTV já voltou ao local. Os comentadores já reocuparam os quartéis televisivos. Os “criadores de conteúdos” exultam com o mindfullness da véspera. Elogia-se a generosidade dos paquistaneses e os bengalis das frutarias da esquina por permitirem créditos à maneira antiga. Na guerra pela atenção, alguém se lembrou de ouvir o senhor Pankaj ou a senhora Aparna de quem se falou? Talvez ajudasse a desconstruir a ideia do outro que por não ser António é visto como antónimo, para além do sentido de oportunidade do atum Ramirez, dos garrafōes de Água do Luso e do encarnadinho do tomate.
Quando não nos ouvimos, estamos a excluir-nos de ser melhores com os outros. O apagão foi uma espécie de festa silenciosa da escuta. As pessoas puderam conversar sem a gritaria das televisōes e desintoxicar-se momentaneamente da adição às redes sociais. Gritar menos por atenção e ouvir mais é fulcral não deixar morrer o pensamento na praia nem matar a beleza mas a atomização do espaço público e mediático é como querer parar um incêndio com uma golfada de ar. Em entrevista à Mesa de Mistura, Capicua reavivava a “capacidade de ver beleza, de pensar para além do óbvio, e cultivar um olhar poético”. É fulcral para contermos a bipolarização entre o ambiente constante de carreira de tiro e a empatia encenada.
Prestes a ficar sem energia e sem dados, declarei-me derrotado mas não vencido. Guardei os auscultadores na caixa, cortei as vasas ao bluetooth e libertei os tímpanos do compromisso com os Álbuns da Semana. Caminhei ao sol e ganhei a cor possível para um ariano nato. Enquanto sorvia os caracteres do recém-adquirido A Vegetariana, de Han Kang, como copos de tinto em capítulos, ouvia as conversas animadas dos chapins com os pinheiros mansos. Uma espécie de ordem natural do multitasking. Um privilégio para todos? Longe disso. Houve quebras, tensōes e perdas. Pessoas a passar mal para que outras pudessem estar bem. Até os polícias foram incluídos no clube da empatia, dias depois de terem cumprido o dever quando prenderam Mário Machado e Fonseca e Castro.
Em A Pastelaria, o fabuloso poema escrito nos anos 50, Mário Cesariny incensava o politicamente insurrecto. “Que afinal o que importa não é haver gente com fome/porque assim como assim ainda há muita gente que come”. Uma sociedade madura não condena o prazer nem castiga a felicidade. Esforça-se para que ela seja de todos, ou pelo menos de uma grande parte. As noçōes de bem e mal descendem da moral judaico-cristã, que nos é introduzida desde o berço e educada em família e na escola, até se tornar instrumental. 28 de abril deixou muito claro que não há portugueses nem imigrantes, há seres humanos capazes de ser melhores uns com os outros se pararem para se escutar e compreender. Precisamos de parar as máquinas para nos relembrarmos de ser benignos? Não aprendemos nada.
Podemos voltar à música? Depois de ter adiado as comemoraçōes do 25 de abril em São Bento com a justificação pouco credível do luto papal, uma comunicação trapalhona e um simbolismo inaceitável de desprezo pela liberdade - o Página Um acrescenta mais uns milhares de contos à história - , Luís Montenegro recebeu Tony Carreira nos seus aposentos para um dueto improvável no pueril Sonhos de Menino. Felizmente, quase não se ouviu o karaoke do PM mas o assunto é outro: a relação disfuncional entre poder e cultura.
Nas redes sociais, lembravam-se as vozes que ocuparam esse papel nos últimos anos, de Ana Moura a Nenny, Dino D’Santiago e Sérgio Godinho. A música pode ser muito diferente para pior do patriarca do clã Carreira mas a premissa do vínculo é a mesma. O poder explora a visibilidade dos artistas quando precisa, e esquece-se deles durante o resto do ano. No caso de Tony Carreira, esse nexo explica-se com a representação da velha família portuguesa, patriarcal, conservadora e apoucada. Lamento defendê-lo mas as cançōes ligeiras de Carreira ou a cosmovisão do Mundo Nobu de Dino D’Santiago são, para efeitos de exploração da imagem dos artistas, a mesmíssima coisa. E se no caso de SG, ainda há a atenuante dos 50 anos de carreira e da relação umbilical com o 25 de abril, não deixemos que o apagão se apodere a memória.
O mesmo governo de António Costa que convidou Dino D’Santiago para cear em São Bento foi o mesmo que, com a sua ausência de regulação do problema da habitação, permitiu uma pressão insuportável sobre os preços das casas e desalojou de Lisboa e arredores a mesma criolidade empoderada pelas cançōes de Dino. Sintomático, não é? É o poder a ser poder e a sociedade paralisada pelo fogo de artifício mediático a discutir o sujeito, de acordo com a sua preferência estética, enquanto a soberania desvia o olhar do mais importante: o objecto político.
O problema não está em Dino D’Santiago, um importante conciliador e figura generosa, como deixa de novo evidente no álbum De Dentro Para Fora, em que trabalhou e estimulou as capacidades criativas de reclusos da Prisão do Linhó. Porém, nem Dino é inimputável, nem está imune a deslizes, nem tampouco caso único. Vhils tem sido usado para representar um suposto interesse superior pela arte urbana e pela sua representatividade das periferias, e Joana Vasconcelos ainda é manobrada para projectar a ideia de um Portugal pós-modernista e grandioso, pelos mesmos ministérios que desconhecem o que é um gabinete de exportação e cuja visão para a cultura é também ela um apagão.
A relação entre poder e arte é um cadafalso mas os artistas também pagam a conta da electricidade e a factura não tem desconto para a militância contra-cultural. Ainda assim, há que saber escolher os pares com quem se dança só que para isso é necessário uma consciência crítica que se exceda para além das côdeas de um Abril que honra a sua memória mas se abstém do futuro, ou seja do coração revolucionário. E quando o jornalismo tem medo das represálias do escrutínio, não podemos esperar mais que o cochicho de corredor.
A compilação Entrevistas para a Imprensa (1970-2019), de José Mário Branco, em que se inclui a minha conversa de 2018, tem sido a leitura das últimas semanas. Mais do que isso, um farol ético. Se no pré-25 de abril encontrávamos um lutador estóico pela liberdade, divorciado de Portugal e impedido de voltar ao seu país, que no pós-revolução assumia o papel de unir as tropas para cumprir a luta e semear a satisfação colectiva no GAC (Grupo de Acção Cultural), no início dos anos 80 - o período de FMI e Ser Solidário - encontrávamos um JMB descrente e abatido, embora nunca resignado. Já nessa altura, olhava para o 25 de abril como uma oportunidade perdida de materializar utopias e para a apropriação das vozes na luta pelo capitalismo. Na véspera do 1 de maio, Lena D’Água aproveitou o encore do 25 de abril em Almada para terminar o clássico Demagogia, de 1982, com um “não mudou muito”. Enquanto escrevo, ouço na televisão que a sociedade está estruturada em função do poder e não do bem comum. Como discordar? Não aprendemos nada, nem com os erros nem com as conquistas.
Concordo com o que dizes sobre a possível instrumentalização dos artistas, mas acho que o que se passou este ano teve vários elementos diferenciadores e preocupantes. O acesso limitado, a ausência de referências à revolução, a encenação para as televisões, o contexto de pré-campanha e o abismo que existe, em popularidade, entre o Tony Carreira e o grupo de Pauliteiros e o de Cante Alentejano, que faz com que passe a ideia de que estavam lá para dar uma ideia de portugalidade datada e obsoleta. Entretenimento é uma coisa substancialmente diferente de cultura.
A conversa que tivemos umas poucas vezes… não se aprendeu muito.