A cantiga é uma arma? No caso de Capicua, não se trata de uma pergunta mas antes de uma afirmação agravada pelo ar pesado dos tempos. No novo álbum Um Gelado Antes do Fim do Mundo, não se limita a enviar condolências à actualidade. Assume e transmite o desejo de a modificar e transformar. “Não queria que, sendo um disco sobre o nosso tempo, fosse derrotista e catastrofista”, afirma.
IN DARK TIMES
WILL THERE ALSO BE SINGING?
YES, THERE WILL ALSO BE SINGING
ABOUT THE DARK TIMES.
BERTOLD BRECHT
Em vésperas do dia maior, uma conversa sobre tensōes políticas, tecnocracias, a canção de protesto, os gatilhos do rap, a nova masculinidade tóxica educada pelo algoritmo e a esperança que pode tirar as rodas da lama. Antes que o gelado derreta.
Quando anunciaste Um Gelado Antes do Fim do Mundo, afirmaste também que “há um ano acreditava mesmo que não faria mais discos”. Porquê?
Não sou muito boa a defender coisas definitivas, tipo nunca, mas não estava a vislumbrar a possibilidade de fazer um disco para já porque depois do Madrepérola houve uma espécie de anticlímax na minha vida. Fiz um grande esforço para terminar um disco com um bebé muito pequeno na minha vida, e no mês em que sai o disco, damos o concerto de apresentação e mete-se a pandemia. Ficámos todos dois anos fechados em casa - sinto que estive três em prisão domiciliária.
Quando voltámos à estrada com o Madrepérola, que é um disco de que gosto muito, estava num limbo em que já nem era novo, nem cabia na actualidade porque naquele hiato tinha mudado tudo. Eu tinha mudado, o mundo tinha mudado, e aquele disco era muito solar, muito optimista. Senti uma grande frustração e um desencontro com todo esse processo porque senti mesmo que aquele disco tinha ficado perdido. Demorei muito tempo a reconciliar-me com isso, e também senti nesses dois anos em que estivemos circunscritos ao trabalho chato de enviar emails, redes sociais e produção de concertos que eram adiados, com imensos obstáculos, incerteza e colegas a passar dificuldades, percebi que quando voltámos o mercado também estava muito diferente, muito mais controlado pela ditadura do algoritmo. Já havia essa tendência mas dois anos limitados ao digital…Quase que havia uma monotonia nas programaçōes, sempre as mesmas bandas a tocar, o mercado muito mais desinteressante, por isso não tinha grande vontade de fazer um disco novo.
Deixei a minha música em espera e fiz um disco de Mão Verde, fiz a curadoria do disco de homenagem ao Sérgio Godinho (SG Gigante), escrevi para teatro, fiz um livro de crónicas (Aquário), um outro livro de literatura infantil (Cor-de-Margarida) e escrevi um disco de fados para a Aldina Duarte (Metade-Metade). Quase como um casamento cansado em que arranjei outros amantes para me distrair. Quando estava a fazer o disco da Aldina, senti que me estava a reconciliar com o escrever música e pensar num trabalho com um conceito. Fazer um disco é muito diferente de fazer cançōes soltas.
Depois, quando fiz o Que Força é Essa Amiga, para o concerto no Teatro Maria Matos com o Sérgio Godinho, trabalhei com o Luís Montenegro que interessa. Ele já me acompanha nos concertos há vários anos e só podia levar um músico. Convidei-o porque ele é multifacetado e foi muito fixe, apesar da economia de meios porque era só eu e ele, e acho que isso desbloqueou o processo de composição. Fiz novas cançōes com ele muito despretensiosamente, quase resgatando um espírito amador de curtir, sem prazo nem objectivo. Foi muito experimental, muito lúdico. Sou muito organizada, muito controladora e já tinha um método muito treinado e eficaz de fazer discos, e senti mesmo que tinha baralhar as cartas e voltar a dar para mudar o processo e esperar o resultado. Como estávamos a trabalhar, quer com ferramentas de música electrónica, quer com instrumentos, e às vezes começávamos por um poema, por um beat que desmontávamos até ao osso, ou por um teclado, desbravávamos sempre caminhos novos.
Senti que tinha muito espaço para explorar coisas que ainda não tinha feito, como o rap com a voz cantada e declamada, de forma muito fluída. A coisa cresceu rapidamente e surpreendeu-me muito que em poucos meses já tivesse um disco bastante estruturado na minha cabeça. Fizemos o disco num ano. Trouxe-me entusiasmo e ímpeto que eu nem sabia que ia conseguir recuperar, depois desse tempo de paragem e desencanto.
Nos últimos anos de vida, o José Mário Branco tinha deixado de dar concertos porque defendia que as cançōes que as pessoas queriam ouvir não faziam sentido sem um movimento social a suportá-las. O estado calamitoso do nosso mundo também te provocou desencanto ou, pelo contrário, trouxe-te ímpeto?
Neste caso, acho que foi ímpeto. Quando comecei a pensar no disco, fui ler as minhas crónicas publicadas no Jornal de Notícias nos últimos anos, e percebi que havia muitos temas recorrentes, e que essa recorrência acelerava com o tempo. Se eu juntasse esses temas num papel, era quase um alinhamento temático. Fez-me muito sentido, porque precisava de falar sobre o nosso tempo e o espírito da época. Durante esse hiato criativo e de desencanto, muitas vezes perguntavam-me quando é que eu fazia música nova, mas ainda estávamos tão próximos do olho de furacão da pandemia que não senti distância suficiente sequer para perceber o que é que estava à minha volta, para que lado é que isto caminhava e quem era eu depois daquela experiência. Ao ler as minhas crónicas, percebi o que era mais urgente dizer e qual podia ser o meu contributo. Se por um lado o exercício de crónicas está muito preso à actualidade e à espuma dos dias, visto em retrospectiva é muito útil para fazer o retrato de um tempo que vai ser trabalhado no registo musical de forma poética e intemporal, mas, apesar de tudo, é como se tivesse ali um arquivo de ideias, inquietaçōes e temas, não de um ponto de vista circunstancial mas com regularidade.
O exacerbar das tensōes, o acentuar dos conflitos e da ansiedade, e esta sensação de fim do mundo, também me deu vontade de fazer um disco ancorado na realidade que respondesse como um antídoto para a angústia e para a sensação de estarmos entre o cinismo e o adormecimento, com tendência para procurarmos o escapismo e a alienação. Parece que estamos muito cínicos em relação a tudo. As redes sociais fazem com que tudo ganhe um peso relativo e com que sejamos cada vez menos empáticos. Senti uma urgência de falar sobre os desafios complexos que enfrentamos, mas também que tinha de responder a essa sensação de que as pessoas estão cada vez menos sensíveis e mobilizadas emocionalmente. A cultura, a palavra, a música podem ser uma força para o que resta de humanidade e contribuir para a mobilização emocional, longe daquelas indignaçōes performáticas alimentadas pelas redes sociais. Uma coisa mais profunda. Não queria que, sendo um disco sobre o nosso tempo, fosse derrotista e catastrofista. Quis falar de esperança, utopias e alternativas. Entre as angústias do nosso tempo e a necessidade de esperança, queria que este disco fosse um contributo.
A sacarose é a metáfora da doçura e da cor?
Sim, e de parar. Uma pausa para um momento de contemplação, como quem come um gelado num banco de jardim, na beira do passeio a olhar para a rua, ou na esplanada da praia. Usufruir do prazer de estar vivo e de ter um momento para si para recuperar esse encantamento da infância que perdemos com a idade. A capacidade de ver beleza, de pensar para além do óbvio, de cultivar um olhar poético. Coisas que fomos perdendo porque nunca paramos. Estamos sempre no meio do ruído, rodeados de estímulos, sempre a olhar para o telefone. Para mim, que sou uma grande apreciadora de gelados, é quase como aquele momento que soa a prazer e contemplação.
O prazer, a pausa, o silêncio e o amor ganharam uma dimensão política que transcende a sua naturalidade.
Sem dúvida. Nesta fase tardia do capitalismo, há uma hiperprodutividade e hiperactividade que faz com que até o ócio tenha de ser produtivo. Lembro-me de estar fechada em casa na pandemia e as pessoas tinham imensas actividades online. Almoçavam com os amigos, depois faziam yoga, a seguir começava o curso. Somos ensinados que a hiperprodutividade é um sinal de saúde e sucesso. Perdemos a capacidade de estarmos vivos só a existir. Termos momentos de tédio e profundo ócio, só a olhar para uma parede e a divagar. Isso é cada vez mais raro, e torna-se subversivo. Até na infância, um tempo por excelência em fazer-se do tédio criatividade, as crianças têm cada vez mais estímulos e actividades.
É um traço do nosso tempo e ficou muito claro na pandemia. Mesmo quando estamos fechados em casa, há sempre uma sensação de performar uma hiperactividade, e isso é extenuante. Já tinha falado disso no Gaudí, do Madrepérola, mas depois da pandemia ainda fiquei a achar que essa saturação e esse ruído se agravaram. E contra mim falo, porque eu também sou aquela pessoa que tem uma agenda e tem de ser rigorosa na auto-disciplina mas acho que precisamos cada vez mais de nos reconectar com pequenos prazeres e o tédio. Quer por uma questão de saúde, quer por ser de onde nascem as melhores ideias.
Criaste uma conta no Substack, que é uma plataforma onde se comunica de forma menos imediata. Onde comunicamos e como comunicamos também passou a ser uma escolha política?
Claro. Eu tinha um x, e não gostava nada. Só ia ler coisas alheias, e fechei-o. O Substack foi uma escolha de comunicar com um público mais fiel e interessado, mas também num registo menos telegráfico, em que posso escrever textos maiores, falar mais aprofundadamente sobre o meu trabalho, e acumular informação. E eventualmente depois desta fase do disco, poder partilhar reflexōes e crónicas. Acho que isso é contra-corrente no sentido em que as pessoas têm tempos de atenção cada vez mais curtos, os conteúdos tendem a ser mais imediatos, o TikTok até já divide o ecrã a meio porque as pessoas não têm paciência para ver só um de cada vez e acho que as newsletters são uma forma mais slow food de consumir conteúdos de pessoas cujo trabalho nos interessa.
Agora, é uma estratégia de adaptação a um mal necessário que é ter de depender das redes sociais num contexto em que há muito poucos meios de comunicação de cultura, e estão cada vez mais em vias de extinção. Isso preocupa porque há muito poucas pessoas nesta área que se podem dar ao luxo de não ter redes sociais, e, mesmo para mim, que tenho um público muito diverso, e nem todo está nas redes sociais, sinto um grande desgaste quando tenho de comunicar um espectáculo ou um disco, porque tenho de ir a mil plataformas. Supostamente, é uma via directa para o público mas cada vez mais o algoritmo vai fechando os grupos e as câmaras de eco, entrincheirando públicos.
Para quem tem ouvintes de várias idades e tribos, como eu, é muito difícil correr todas as capelinhas e contrariar a lógica do algoritmo e a falta de tempo de atenção das pessoas. Nas redes sociais, a promoção de um disco concorre com mil coisas aleatórias que geram mais atenção porque jogam o jogo do algoritmo. Como acredito que não tenho que expor a minha privada para as pessoas ouvirem a música, não estou permanentemente a alimentar a besta e depois pago o preço. Às vezes, o algoritmo favorece-me, às vezes boicota-me. É como calha.
Consegues definir o teu público? Diz-se que és mais ouvida e compreendida fora do rap.
Sim, mas tenho consciência disso desde o primeiro disco (Capicua de 2012). Se alguns rappers mais velhos, com o seu síndrome de Peter Pan, conseguem manter o mesmo estilo de vida com 40 anos e comunicar com esse público, no caso de uma mulher que faz rap mais político e lírico, isso é muito mais difícil. Não estou tão perto do estereótipo da forma de estar, falar, movimentar e vestir do rapper clássico. Era inevitável e não me interessava ficar agarrada a esse público, que provavelmente também não teria interesse em seguir-me durante muitos mais anos. Já era uma mulher de quase trinta anos. Queria comunicar com todo o tipo de pessoas e sinto que o consegui fazer desde o primeiro disco, em que cheguei a muitos tribos diferentes, e saí fora do hip hop mais underground.
Com o Sereia Louca cheguei a pessoas de todas as idades, desde crianças a pessoas mais velhas, também porque o Vayorken passou nas rádios de maior audiência. E depois pelas minhas crónicas, por escrever letras para fado, fui chegando a pessoas mais velhas. Hoje, num concerto meu, podes ter uma criança de seis anos e um casal de setenta e cinco, e tudo no meio: universitários, mulheres de trinta, de quarenta, todo o tipo de pessoas. É um motivo de orgulho porque muitas pessoas começaram a ir a concertos de rap para me ouvir, e sei que depois até se interessaram por outros rappers, mas de facto transbordei para outro circuito. Fiz festivais com outro tipo de programação, que não o público mais teen, que é a maioria no rap, o que é muito positivo.
Agora, do que não gosto é da ideia que algum pessoal do hip hop tem de não contar comigo para a contabilidade da firma só porque, por ter outro público, não faço parte da tribo. O que faço é hip hop clássico e não me lembro de ter assinado a carta de rescisão.
Não relacionas essa reacção com o desarmar da palavra no rap?
Houve um grande boom de público e o hip hop pulverizou-se para várias frentes. Já não vive só da tribo, todas as pessoas têm uma música de hip hop na sua playlist e o hip hop também se tornou mainstream, no sentido em que passou a fazer parte das programaçōes de festivais e Queimas. Tornou-se muito mais comercial. Claro que continua a haver hip hop underground e os guardiōes do templo continuam lá, e houve pessoas como eu que continuaram a fazer um rap mais político-social e poético, mas há mil subgéneros.
Não foi só o público que se pulverizou, foram também os rappers. Agora, aquilo que é mais mainstream não é o rap que eu faço, mais engajado com os temas sociais e políticos. É o rap mais marcado pelo trap ou pela influência do pop, e que agora é o mainstream. E se não é isso, é o reggaeton e o baile funk - a música urbana em geral. Eu continuei a fazer rap alternativo. Continuei a fazer mais ou menos o mesmo, o rap é que cresceu, pulverizou-se e fundiu-se com o mainstream. E tudo bem, esse processo era inevitável porque o hip hop tem uma força de penetração no público mais jovem que mais cedo ou mais tarde teria de ser dominante. Estranho era se não acontecesse.
Quando começaste, a música de combate estava adormecida, e não apenas no rap. Sentes-te menos sozinha nesse barco do protesto?
Sim. Não é que me sentisse sozinha, pelo menos nunca pensei nesses termos, mas hoje é menos estranho, aliás há imensas estrelas pop, e em Portugal também, a fazer música abertamente feminista. A canção de protesto também se celebrizou, no sentido em que tens músicos de cada vez mais estilos, de várias origens demográficas, e com maior diversidade do que na geração de Abril, a fazer música sobre habitação, racismo, feminismo, e questōes LGBT. Uma panóplia de pessoas a fazer música sobre temas político-sociais dentro de uma diversidade de subgéneros. É um sinal dos tempos porque os problemas se agudizaram mas também porque há mais pessoas à mesa com acesso aos microfones. É interessante porque a geração de Abril teve o contexto mas hoje há mais diversidade.
Como é que observas o paradoxo entre a visibilidade desses problemas e politicamente isso não se reflectir nas escolhas políticas do eleitorado?
Os movimentos culturais nem sempre têm um espelho nas dinâmicas políticas. Muitas pessoas que analisam o seu descontentamento procuram referências e representação cultural por desencanto com as instituiçōes políticas. Eu própria exerço muito mais a minha cidadania e participação cívica a partir do meu trabalho do que em movimentos sociais ou partidos políticos. E também acho que aquilo que passa culturalmente é uma amostra que não é representativa da grande massa. Aquilo que é popular em termos culturais não é engajado politicamente. A grande massa que se manifesta nas urnas não é a que se identifica com os artistas mais alternativos e progressistas. Quando estamos na bolha da cultura, achamos que é muito mais hegemónico aquilo que é na realidade, e depois ficamos muito surpreendidos quando o Chega elege cinquenta deputados. No nosso condomínio fechado do algoritmo, andamos a pregar para os convertidos quando a grande maioria das pessoas está a ouvir música mais comercial e nem sequer se identifica com os valores mais progressistas e intelectualizados (para usar um termo questionável).
No Um Gelado Antes do Fim do Mundo abordas diversas causas, desde o feminismo à habitação, à catástrofe climática e aos preconceitos identitários. Não as fragmentas.
Sim, e eu falo muito sobre isso no final da Brava. Estou a fazer esse exercício da música panfletária, porque parece que não se pode fazer música panfletária, e essa canção, que começa por ser muito feminista, no final fala sobre a emocionalidade das lutas. O próprio disco também cruza esses temas que estão todos interligados. A luta contra as alteraçōes climáticas está muito associada à luta anti-capitalista. Por isso, é tão boicotada. E a falta de empatia cultivada não só nas redes sociais mas nesta tecnocracia vigente de cinismo vigente. Isso atomiza as pessoas, ao ponto de a humanidade mais empática estar a desaparecer. Deixa-nos mais sós e entrincheirados, e menos solidários e protegidos.
Os temas estão todos ligados: a interseccionalidade das lutas e os grandes problemas do capitalismo, que neste momento engloba um grande guarda-chuva de temáticas que o disco explora, até do ponto de vista existencial. Uma fala mais sobre redes sociais, outra sobre questōes de género e outra ecologia mas elas misturam-se umas nas outras, e em cada uma delas há referências às outras, na forma como os poemas vão cosendo umas cançōes nas outras.
O nosso tempo é muito complexo. As mudanças são muito rápidas e, às vezes, nem se conseguem antecipar. Há pouco falávamos sobre a canção de protesto. Os inimigos tinham um rosto mais definido. Hoje, as lutas têm de ser mais interseccionais do que nunca como também a nossa reflexão sobre o mundo tem que abarcar uma série de dimensōes inseparáveis que compōe uma trama intrincada de conflitos, contradiçōes, fracturas e tensōes. Isso faz com que seja muito difícil compartimentar as lutas mas, ao mesmo tempo, mobilizar porque as pessoas estão entrincheiradas nos seus problemazinhos e têm pouca noção que a solidariedade entre pessoas diferentes é a mais urgente. Ninguém se salva sozinho.
Há muitas interrogaçōes e poucas respostas definitivas.
Sim, sem dúvida. Por isso é que as pessoas têm tendência a cair nos discursos populistas. Apresentam soluçōes fáceis, dão rosto aos inimigos e arranjam bodes expiatórios. Isso traz uma “solução milagrosa” para angústias que as pessoas nem conseguem nomear.
No single Making Teenage Ana Proud, falas de “activistas de Internet que monetizam a subversão”. O capitalismo é tão sofisticado que até da luta se apodera?
Absolutamente. Desde que há um Swatch com a cara do Che Guevara que o capitalismo venceu. Tem muito a ver com essa coisa da indignação performativa. Todas as semanas nos indignamos por ondas, alimentamos a trend, mas não nos mobilizamos realmente por nada. De indignação em indignação, mobilizamo-nos cada vez menos, no sentido em que nem saímos de casa para ir votar ou ir a uma manifestação. A armadilha das redes sociais tem a ver com essa ilusão que exercemos cidadania, quando estamos a iludir a própria democracia em plataformas movidas por interesses obscuros. De desinformação em desinformação, fake news, algoritmo e câmaras de eco, achamos que estamos a fazer diferença quando estamos apenas a fazer uma exibição benigna de virtuosismo, quando nem sequer temos noção do que se passa na nossa rua. São os sinais do nosso tempo, da forma como as redes sociais adoecem as pessoas individualmente e a democracia colectivamente.
Na semana passada, publicaste um manifesto em que observas os casos recentes de machismo juvenil. O alvo daquele desabafo também são as figuras públicas que só usam a influência para fins materiais e pessoais?
Escrevo crónicas todas as terças-feiras para o Jornal de Notícias e aquela decidi publicar para ter mais impacto. O alcance surpreendeu-me, para ser muito sincera. Aquilo é um apelo às figuras com mais influência porque sinto que já tínhamos um país misógino, com muitos problemas de violência doméstica, abuso sexual e falta de justiça concreta e consumada para esses agressores. O que é novidade são os gurus da masculinidade tóxica a doutrinar geraçōes de crianças, educadas pelo YouTube, pelo TikTok e pela pornografia. Uma misoginia ideológica, como se fosse um movimento cultural que instiga à desumanização das mulheres ao ponto de legitimar a violência.
O meu apelo é para os homens que têm influência e se importam, e que acredito que sejam a maioria, posso também comunicar com esses putos porque senão ficam à mercê desses Numeiros, Andrew Tates e sucedâneos. Há muitos rappers, humoristas e criadores de conteúdos que podiam comunicar e estão em silêncio. E já estamos a ver as consequências reais destes discursos de YouTube e TikTok. Preocupa-me vê-los a falar sozinhos para miúdos influenciáveis e capitalizados por essas pessoas que ganham dinheiro e seguidores à custa de um discurso de ódio que já tem uma concretização real.
Num contexto como este, em que todos os dias notícias surgem casos de violência sobre mulheres, surpreende-me que muitas figuras públicas, com o poder de influenciar essas geraçōes e contrabalançar as narrativas, estejam em silêncio como se fosse normal. Quero acreditar que se fosse um discurso racista, veículado por um YouTuber, as pessoas indignavam-se e achavam que era crime. Como é contra as mulheres, ficam alegremente em silêncio, e não se mobilizam. O problema não é só das mulheres, a própria masculinidade tem que se resolver. Há muitas formas de ser homem, longe dessa toxicidade e misoginia.
Não te parece que, um pouco como acontece com o revivalismo dos ideais fascistas, ataca-se a consequência e nem sempre se procura a raiz destes problemas. Ainda não vi o Adolescence mas fico com a sensação que a grande surpresa com a série está no confronto com uma realidade invisível aos olhos dos adultos, mas que já lá estava.
Há muitas pessoas conscientes, acho é que se está a tornar muito óbvio não só por causa da série mas devido às notícias, como o caso do adolescente que morreu em Braga. Estamos a perder o controlo da situação. Vivemos numa sociedade misógina, e isso já existia antes, mas uma geração que é criada com o YouTube, o TikTok e a pornografia, desde os nove/dez anos, sem supervisão, espírito crítico ou educação sexual nas escolas, fica completamente enviesada por uma ideia de masculinidade violenta, em que as mulheres são objectos e se devem manter submissas.
Também acho que há um revanchismo em relação às conquistas das liberdades e direitos das mulheres, que tem muito a ver com aquela frase em que a igualdade pode parecer opressiva. Há ressentimento de alguns homens que sentem que agora já não se pode dizer nada, têm que lidar com mulheres livres e autodeterminadas, com direito ao seu desejo e a pôr limites. Para quem esteve num lugar de privilégio e dominação, pode parecer uma perda de direitos quando na verdade é apenas uma perda de privilégios e o equalizar das liberdades de cada um. Isso pode ser intimidatório para homens influenciados pela extrema-direita e por esse reaccionarismo machista e ressentido.
Agora, a culpa não é dos progressistas. É deles mesmos. Não me parece que seja útil cairmos no discurso de que a culpa foi do feminismo que foi longe demais quando nem sequer temos uma igualdade real nas nossas sociedades. Estamos a pedir o básico que é reduzir os números de violência doméstica, igualdade de salários, trabalhar as mesmas horas por dia, divisão de tarefas domésticas, ter o direito a andar na rua sem ser violada, numa sociedade em que o medo não se torne numa estratégia de sobrevivência, que não tenhamos de cercear a liberdade porque há uma testosterona inimputável, e uma série de direitos que a extrema-direita e esses misóginos revanchistas querem transformar em bode expiatórios, aproveitando-se das inseguranças de miúdos doutrinados pela Internet, em que teorias da conspiração se tornam pós-verdades.
Obviamente, há um papel de consciencialização de pais, escolas, da justiça que tem que ser mais eficaz, da regulação das redes sociais e do conteúdo para pessoas numa idade muito precoce, sem capacidade de decidir o que é certo e errado, e o que é verdadeiro e falso. É um tema muito complexo, mas o que tentei foi apelar aos homens com influência para fazer parte da solução só que ainda há muita inércia e o silêncio é mesmo ensurdecedor, porque estão num lugar de privilegio e enquanto não forem pais de meninas, talvez não acordem para o problema.
O que é o que governo sombra do Luís Montenegro te trouxe? Ele já é da tua banda há alguns anos mas desta vez foi o produtor do álbum.
Chamei o Luís para o [concerto] Conta-me Uma Canção e fizemos o Que Força É Essa Amiga. A partir dessa experiência, tive vontade de fazer mais cançōes com ele porque ele tem a linguagem da música electrónica e dos instrumentos mais convencionais. Depois, trabalhámos com beatmakers como o Stereossauro, o DJ Ride, o Keso, o Virtus e o Pedro Geraldes. Todas as cançōes foram por caminhos diferentes. Foi muito bom trabalhar com o Luís pela sua polivalência, não só com a construção mais clássica de beats, mas também de acrescentar teclados, guitarras e até o desenho de som. E também porque ele é muito entusiasmado e criativo. É aquela pessoa que nunca diz que não a uma ideia. Às vezes, chegava com uma ideia vaga e ele tinha toda a paciência do mundo para construir bloco após bloco. Nessa mistura de métodos e processos, acabei também por experimentar mais registos vocais que não teria explorado se tivesse mantido o método de trabalho dos outros discos.
Escreveste para a Ana Bacalhau e para a Aldina Duarte. No caso da escrita, permite-te exercitar outras técnicas?
Sem dúvida, aprendo sempre truques novos quando saio da minha linguagem. É como calçar os sapatos dos outros. [No Imperial é Fino], a Ana Bacalhau deu-me o desafio de fazer uma brincadeira com sotaques e a linguagem toda lisboeta e portuense. Esse exercício é lúdico e dá-me prazer. Como quando escrevi para os Clã, explorei ideias que na minha música não teriam lugar. Ou para a Gisela João. Com a Aldina Duarte, aprendi imenso. Foi uma oficina. Ela deu-me uma série de aulas sobre as estruturas e regras do fado. Eu escrevia, exercício a exercício, uma letra para ela e aprendi imenso sobre o fado e sobre uma quadrícula que parece muito canónica mas depois dá imenso prazer subverter, até pelo factor-surpresa por ser tão clássica e intemporal. Também foi muito bom fazer música e escrever literatura para a infância porque pede uma série de filtros. Recuperei aquilo que me fez começar a escrever na Primária, que foi o meu gosto pelas lenga-lengas e pelas rimas. O som das palavras e o sentidos. Resgatei esse lado profundamente lúdico e intuitivo da escrita.
Ser mãe é um tubo de ensaio?
É. Por um lado, tira-me imenso tempo e rouba energia vital à criação. Os primeiros anos foram muito difíceis para voltar a trabalhar e ter o meu ócio criativo, mas por outro lado é tão transformador enquanto experiência que me faz pensar em quem sou, na condição da mulher, o mundo que me rodeia e aquele que eu quero deixar. E depois, claro, observar uma pessoa na infância, a viver as coisas pela primeira vez, tambem nos limpa as lentes que estão um bocado foscas com o tempo. Permite absorver esse lado encantado e novo, em que tudo é uma estreia. É um atalho muito bom para a poesia. A criança obriga-nos a reparar na flor que nasce a meio do caminho e a parar para ver a joaninha.
Nos EUA, Bernie Sanders tem enchido estádios. É possível resistir?
É. Não gosto nada do discurso da inevitabilidade. Havia uma anedota de loira, e eu sou loira por isso posso contá-la, que era uma loira que quando chegava à rua, via uma casca de banana e dizia ‘lá vou eu cair outra vez’. Há muitas pessoas que acreditam na queda. Mesmo com a casca de banana lá, sou romântica e optimista. O discurso catastrofista é uma armadilha para não nos mobilizarmos e da mesma forma que as coisas mudam muito depressa para mau, também podem mudar para o lado bom se houver mobilização e resgatarmos a capacidade de pensar em utopias e criar alternativas. Os temas do meu disco. Precisamos como pão para a boca dessas figuras que nos fazem acreditar que vale a pena, que a tecnocracia, o there’s no alternative e que vamos voltar aos anos 30, como um ciclo, podem ser mudados a qualquer momento. A cultura pode servir de força mobilizadora. Não chega, claro. É preciso mobilização política, cívica, movimentos sociais, democracias saudáveis com imprensa livre, educação e estado social. Não faria o que faço se não acreditasse na mudança.
Capicua dá um concerto esta quinta-feira, 24 de abril, na Avenida dos Aliados, no Porto, logo após uma homenagem a Carlos Paredes, por ocasião do centenário do mestre da guitarra portuguesa
tinha guardada na lista de leitura. acordar com “enviar condolências à actualidade” na verdade inspira. a escolha de Brecht para abrir é essencial para nos encostar à parede. bela e longa entrevista.
E é assim que se fazem entrevistas. Obrigado, Davide.