É Samuel Úria, o próprio, a remover o cheiro a tinta na canção operativa do retrofuturo. “Eu declaro o presente hostil/Vou avançar para o ano 2000”, profetiza como um carro voador imobilizado num conto de Ray Bradbury. O futuro já era? Teoria do fim da história? Nada disso, apenas desencanto com o rumo do progresso, excursōes entre a palha e o asfalto, memórias do desapego e utopias por cumprir.
Afinal, 2000 A.D. está a ser recebido em ombros e 2025 afigura-se favorável apesar de não parecer nada tranquilo. Para um álbum político não-panfletário, está ganho. Pela frente, há coliseus, a 11 de outubro em Lisboa, e 17 no Porto, palcos, quilómetros e minutos para espalhar brasas como águas mil. E o final até puxa pelo lenço com a réstia de esperança no adeus comovido ao Xico da Ladra.
Samuel Úria conversa como escreve. É igual às suas palavras e aos 45, é fazer a festa como se fosse 1999.
É tentador pegar nos teus escritos e fazer uma espécie de puzzle. O 2000 A.D. é sintomático de uma marcha atroz? As utopias do século ficaram por cumprir?
A nossa geração cresce com a ideia um bocado utópica do que seria o futuro. O número redondo de 2000 fazia-nos pensar e sonhar que o futuro estava à mão de semear. Faltava pouco tempo e o que quer que fosse concretizado, seria um avanço. Quando se faz uma retrospectiva daquilo em que resultou esse avanço, é um bocadinho honesto dizer que a marcha está a ser atroz e que as coisas não estão a acontecer de forma tão progressista quanto nós imaginávamos. Mesmo que não imaginássemos nada.
Tinhas 20 anos em 1999. Deves lembrar-te do fantasma do Y2K que ia desprogramar os sistemas e causar o caos e a desordem mundial. Lembras-te do que sonhavas nessa altura? Não te parece que o passado é uma espécie de pretérito perfeito idealizado pela memória selectiva?
Sim, sim. Com vinte anos, ainda estamos sob a alçada da imortalidade. A ideia de morrermos velhos está muito distante. O tempo ainda se processa devagar. O pior da velhice é o acostumarmo-nos à passagem do tempo. O Y2K tinha piada mas era um fatalismo da cultura pop. Não acreditava nem deixava de acreditar. Mas depois aconteceu esta coisa curiosa, quando não se dá essa fatalidade informática que ia rebentar com os mísseis que, de alguma forma, marca, pelo menos para mim, a entrada numa fase em que começamos a viver e não a sobreviver. Há uma celebração poucochinha dessa sobrevivência e quase nos esquecemos de avançar a pensar na vivência. Os dias sucedem-se uns atrás dos outros no quotidiano de sobrevivência. Neste disco, não deixei que essa retrovisão tivesse esse mel da nostalgia que mascara de forma terna o passado e torna morno aquilo que é gélido. E às vezes também amornece o que era quente. Estou a tentar ser sincero com o meu cometimento na maneira como descrevo o passado.
O 2000 A.D. é um disco político não-politizado?
É a descrição perfeita. Não é politizado no sentido em que não é ideológico, mas é inescapavelmente político. Não me lembro de a questão política se ter tornado tão discutida pelo melhor e pelo pior. É bom discutir-se e até sistematizar-se as coisas de forma corriqueira mas o corriqueiro está a ganhar ao sistematizado. Qualquer pessoa se pode arrogar ao seu papel político, com todo o direito porque vivemos numa democracia, mas está a tornar-se mais rasteira a maneira como a acção política se está a fazer. Quando parto para escrever um disco, não quero escrever sobre isso mas não consigo controlar. É premente.
Revês-te na descrição de cronista de ti mesmo e da tua existência?
Quando ouço uma canção, lembro-me do dia em que a escrevi e porque é que a escrevi. Há uma espécie de marco cronológico nas cançōes. Nesse sentido, sou um cronista porque é mais fácil fazê-lo dessa forma. Não por sentir essa responsabilidade de ser o arauto da desgraça ou o repórter do quotidiano.
A Inquietação do José Mário Branco. O tirar esse peso das costas.
É sempre a inquietação. É péssimo vivermos inquietos mas por outro lado tem a vantagem de descrever as inquietaçōes, musicá-las, torná-las poéticas, partilhá-las, querer estabelecer a comunicação com outras pessoas. É óptimo tê-las e eu vivo nessa harmonia e desarmonia de “a vida não corre assim tão bem mas ainda bem porque senão tinha sobre o que escrever”.
Por vezes, não há uma necessidade de abstracção para respirar?
Sinto a necessidade mas cedo à tentação. É muito difícil, é quase um fear of missing out. Não tem tanto a ver com o quotidiano ou notícias, mas com oferta cultural de entretenimento ou vida social, embora eu sinta isso em relação ao mundo. Se não estou a par, é como se não estivesse a andar. Acaba por ser uma curiosidade mórbida.
O grande medo do pequeno mundo ou o pequeno medo do grande mundo?
É o grande medo do grande mundo que se está a agigantar. O mundo está a crescer mas também está prestes a implodir. Não estou aqui a avisar que o fim do mundo está próximo mas infelizmente é cada vez mais nítido que para lá caminhamos. Os passos que estamos a dar colectivamente, e mesmo a maneira pouco saudável como queremos travar essa progressão, não auguram nada de bom mas isto não é um discurso desesperado. Se faço cançōes, escrevo-as por achar que individualmente também temos a obrigação de dar o nosso melhor e darmo-nos melhor com os outros. A solução para essa pacificação não começa por pacificarmo-nos com nós mesmos - que muitas vezes nem sei o que isso quer dizer - mas com os outros. Apelar às nossas melhoras qualidades e educação, e aquilo que achamos ser o melhor para nós termos capacidades e canais para comunicar aos outros. E também receber deles essas noçōes.
Nas entrelinhas, acabaste de dizer que não acreditas em auto-ajuda mas será que não escreves também para te salvar?
Para me salvar não sei, mas tenho perfeita noção que há um lado bastante terapêutico nas cançōes. Muito daquilo que chega à guitarra e aos palcos, é dita naquele momento porque ficou por dizer noutros momentos. Precisavam de saltar para fora, por timidez, reserva ou preguiça. É uma grande vantagem de poder viver disto. O equilibrar-nos através de coisas que no quotidiano estaríamos desequilibrados se não tivessemos um microfone, ouvidos e veículos generosos para escutar aquilo que temos para dizer.
Tenho perfeita noção que há um lado bastante terapêutico nas cançōes. Muito daquilo que chega à guitarra e aos palcos, é dita naquele momento porque ficou por dizer noutros momentos. Precisavam de saltar para fora, por timidez, reserva ou preguiça. É uma grande vantagem de poder viver disto. O equilibrar-nos através de coisas que no quotidiano estaríamos desequilibrados
A Canção de Águas Mil fala sobre…Abril.
Foi uma canção que surgiu no final do ano passado. Tinha escrevinhado alguns versos. Tinha determinado que seria uma canção a abordar, mesmo que subtilmente, o 25 de abril. Sobretudo, o que tinha acontecido antes sem querer que fosse uma canção tão temática. Entretanto, a RTP/Antena 3 tinha-me convidado para um programa sobre a relação entre a música e o 25 de abril em que ia participar no episódio de Peniche. Acabei por canalizar a canção para uma questão mais temática. Entra neste disco também por essa revisão dos tempos em que a nossa geração nasce em liberdade e já não conhece essa mordaça do Portugal pré-25 de abril. Faz-me sentido porque há muita gente a querer reescrever o que era cinzento, e a querer pôr uma película colorida. Isso deixa-me desgostoso porque venho de uma família que muito celebrou o 25 de abril e muito padeceu também nas mãos dos agentes da opressão. Custa-me muito o querer apagar da história, o “se calhar não era assim tão mau” para preservar alguns valores. Isso é profundamente errado. Se os valores de que nós gostamos têm validade, é porque os podemos expressar em liberdade. Se queremos que os outros comunguem, a única forma de os defender é pelo diálogo. Esta canção nasce da ligação a um passado que tem de ser reavivado porque não era vivo.
A história do Samuel Úria que vem do campo para a cidade também está no 2000 A.D.?
A ideia de divisão de pessoa do campo de pessoa da cidade faz também a transição do século. Eu abandono Tondela e depois vivo em cidades um pouco maiores como Coimbra e Leiria, até parar em Lisboa. Há também esse desencanto suplementar de vir do campo para a cidade, que se afigura como paradigma do progresso, e não ser isso que encontro. Tem a ver sempre com relaçōes humanas mas também com oferta cultural, que é muito maior em Lisboa, mas por ser maior acaba por ganhar um cunho facultativo. Em Tondela, tínhamos bastante oferta, considerando que é Interior, e uma zona remota, mas ainda assim havia bastante teatro, cinema e música - muitos concertos - mas por estarmos fechados, tínhamos que estar abertos ao mundo através dessa oferta. Fazia parte do tecido das pessoas da minha geração essa cultura de estar nas coisas porque a vida e a sobrevivência quase literal da própria cidade, fazia-se por esse apoio constante. As primeiras bandas que tive em Tondela tiveram sempre espaços para ensaiar de borla, palcos para tocar e abrir para artistas maiores. Houve sempre essa afectividade e receptividade para com os artistas locais. Isso é impensável nesse mundo desarraigado da cidade em que é cada um por si. Tens que pagar, ser filho de alguém, ter contactos…
O professor Samuel Úria de Educação Visual também se desencantou com o ensino?
Não se desencantou no sentido em que continuo a acreditar que está no que o ensino oferece e nas lacunas, o potencial para extrair o melhor que temos no nosso país. Algumas das coisas simples que se podem resolver têm a capacidade de ser grandes alavancas para ultrapassar carências da sociedade. Parei de dar aulas mas não desapareceu de mim uma visão romântica do ensino. Uma das coisas que me dava mais gozo em dar aulas, e vou usar a palavra laboratorial, era a relação com os alunos. Tenho muitas saudades. Quando deixei de dar aulas, foi porque já não estava a ser um bom professor. Dedicava muito tempo à música, dava concertos e gravava discos. Não só era uma paixão maior como achava que era algo onde podia dar mais. Fui muito mais bem substituído no ensino do que na música, não por achar que sou insubstituível no sentido de um grande ego, mas porque aquilo que faço, bem ou mal, não há muita gente a fazer. Tenho parceiros que podem ser postos na mesma gaveta de música portuguesa. No ensino, queria ser aquilo que muitos professores sonham ser. Além de cumprir programas, incentivava e moralizava miúdos que achavam que não sabiam desenhar. Mostrava-lhes formas de se sentirem válidos, até avaliadas em conformidade com coisas que não transpareciam em primeira instância da expressão. Tive professores que fizeram comigo.
A palavra tem um peso muito grande nas tuas cançōes. É o teu primeiro rascunho?
Adorava começar pela palavra. É o mais difícil, o que exige mais de mim emocionalmente. A música exige muito de mim, um trabalho de minúcia e sensibilidade mas é mais um processo lógico e intelectual. Vou buscar bagagem de música que escuto mas não há tanta interioridade e quando há é para se vergar ao que a palavra quer estabelecer. Normalmente, começo pela música porque há um ritmo, uma estrutura e um tempo objectivo, com balizas, que me facilita um processo de escrita que já me parece com uma melodia. Um trautear que depois registo - a sonoridade daquelas palavras que não existem sugerem-me o tema. Se eu faço uma melodia com uma progressão ascendente de acordes, não posso falar de chão. Tenho de falar de céu. E o contrário também. Condicionar o processo, ajuda-me. Se for demasiado livre, demoro vinte anos a fazer um álbum em vez de três.
Voltando às tuas palavras, escreveste é Preciso Que Eu Diminua mas vais fazer os Coliseus no próximo ano.
É uma sala assustadora mas ainda bem. A melhor promoção que posso fazer, além da natalícia, está nos palcos que pisar em 2025 que motivem as pessoas a querer ver um espectáculo maior. Ainda não os anunciei mas vai ter convidados. Não posso ir sozinho para o Coliseu, vou querer levar os meus amigos da música e são muitos. Pessoas que me dizem muito em termos pessoais e musicais, que acrescentam muito à minha vida. Espero que esses palcos consigam grangear, qual Flautista de Hamelin, as pessoas atrás de mim para ver uma celebração ainda maior com pessoas a amplificar as minhas ideias e eu também a cantar as cançōes dessas pessoas.
O Miguel Ferreira (músico dos Clã e não só) é produtor do 2000 A.D. e tem-te acompanhado com bastante regularidade. Como descreves a parceria com ele? É uma espécie de encenador musical?
É curioso porque este é o terceiro disco com o Miguel - quarto com o EP Marcha Atroz - e a nossa parceria, com um ou outro percalço não pessoal. mas de algo que não conseguimos transmitir devido à distância e a algum detalhe porque não estamos a conseguir falar a mesma linguagem, tem crescido em entendimento. Em termos de amizade, é desde o início. Conhecia-o razoavelmente e é alguém que vou trazer para o meu círculo pessoal enquanto for vivo. Parecendo que não, ele é mais velho que eu mas eu vou morrer muito antes dele. O Miguel é um dínamo de energia e de vida. Inicialmente quando o convidei, foi para me trazer contrariedade. Os nossos anos 90 foram completamente diferentes. Achava que o Miguel, que tinha crescido com um universo de jazz e pop, ia trazer contrariedades ao meu universo de panque e roque, mas de repente encontrámos mais pontos comuns do que de divergência. As minhas expectativas foram goradas mas ainda bem. No caso do Adeus Português, tive dificuldade porque achava a escrita demasiado referencial e poética. Enviei-lhe uma maqueta, parecida com a versão final, e de uma maneira curta e descritiva, o Miguel entendeu tudo. Foi a prótese quando eu já estava sem fôlego para fazer. Quando encontramos uma parceria que é uma extensão do que nós queremos, faz-me pensar que é o caminho certo e ainda não está aqui o ponto final da nossa comunhão de bens.
O Sérgio Godinho confiou-te a escrita de uma canção para ele, o que é raro.
A letra, com excepção de algumas achegas minhas e do Rafa [Nuno Rafael], é do Sérgio. Aproveitei uma letra que ele tinha escrito para uma canção que funcionasse em torno daquilo que escreveu.
Também escreveste para os Clã e há um dueto com a Joana Almeirante que se tornou bastante popular. Quando escreves para outras pessoas, pōes-te noutra perspectiva?
Sim e não. Se me pedem para escrever uma canção, e não faço cançōes por livre submissão porque sou muito preguiçoso, querem uma canção feita por mim. Reconheço que há algum apreço por características minhas, provavelmente nas letras e também nas melodias (o Pedro da Silva Martins quando diz “escrevi uma canção à Samuel Úria tem mais a ver com o som do que com a letra”). Se me fazem um convite, e eu sou mais autor que intéprete, não quero desprestigiar aquilo que me é pedido. Não quero que seja uma encomenda que soe à pessoa que pede a canção. Tem que soar a mim. Não dispo as minhas capacidades mas há um processo muito pessoal em que quero que a mensagem possa ser subscrita pela pessoa que está a interpretar. Não quero criar essa barreira. Normalmente, quando acabo de escrever a letra faço uma memória descritiva para as pessoas perceberem os jogos e tudo o que está escondido para ficar claro para quem está a interpretar., mas também que tenha a voz e a dicção da pessoa na cabeça. Isso não é um exercício difícil porque também não me sinto um intérprete. Quando estou a escrever, há vozes de outras pessoas na cabeça. Muitas vezes desiludo-me. Tenho a voz do Tom Waits na cabeça e depois vem este grilinho é uma desilusão.
A voz do Alexandre O’Neill falou contigo no Adeus Português?
Acho que é uma das cançōes do álbum que tem gerado uma onda mais comovida. Estou feliz porque me trouxe também alguma comoção. Comovi-me com um poema do O’Neill que não estou a musicar de palavras maiores de um poeta maior. Quis dedicar uma canção a essas palavras, não me apropriando nem me querendo ombrear. É a canção de alguém influenciado pelo poema que quer falar de histórias e biografias que fazem parte do meu património mental de experiências mas quero fazê-lo derreado, socado e sovado pelas palavras lindas do Alexandre O’Neill. Estou muito feliz porque tenho recebido mensagens de pessoas que também encontraram ali algo especial.
Respostas recolhidas em conversa na FNAC Almada
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Sendo admirador confesso do Samuel e acompanhando de perto a sua carreira não podia deixar de ler a entrevista.
Está excelente. Muitos parabéns, Davide.