O vídeo do concerto da semana passada em Milão é impressionante. As imagens recolhidas por um drone criam a ilusão do lento acordar de um vulcão em que a plateia parece feita de lava. Na capital da região da Lombardia, os habitantes sentiram uma trepidação semelhante à de um terramoto. 80 mil pessoas acotoveladas no hipódromo Snai La Maura explicam a sensação de abalo.
Travis não é Taylor mas em Itália os números não foram assim tão díspares. Swift somou 160 mil bilhetes repartidos por duas noites, Scott vendeu metade em apenas um serão. Ainda assim, em Portugal o tratamento mediático dos acontecimentos é do verão para o inverso. Taylor Swift é recebida como a Primeira Dama dos EUA, feliz proprietária das chaves da Casa Branca da cultura popular, enquanto Travis Scott gera um ensurdecedor silêncio comparável à da potente descarga de subgraves de Sicko Mode, o relâmpago antes do trovão e uma das obrigatórias nos três concertos de La Flame marcados para o fim de semana na MEO Arena. Nos canais generalistas de media, nada se passa. Sentimo-lo, no entanto, uma força imparável a crescer como um formigueiro no subsolo.
Portugal vai ser o único país a ter direito a tri, mas talvez isso se explique pela menor capacidade da sala (vinte mil pessoas), por comparação com outras do circuito europeu onde Travis Scott anda a inflamar as hostes com chamas e fogos de artifício. As duas primeiras noites esgotaram num ápice, a terceira continua em aberto como testemunham os cartazes espalhados pela Grande Lisboa. O que fechará primeiro? A transferência de João Neves para o PSG ou a bilheteira para a terceira noite na MEO Arena? Caso se confirme, serão cerca de 60 mil pessoas a esgotar a maior sala da capital em época estival. Lisboa, não se passa nada? Os cartazes com o letreiro “já era” não servem apenas para assinalar a venda de um imóvel. Metaforicamente, também representam mudanças no clima da estaçåo. Pausar, respirar ou desacelerar são verbos tão proibidos em Circus Maximus como levar garrafas de água, comida ou objectos cortantes para o recinto.
Se Kanye West corrigiu o futuro ao ver no hip-hop o novo rock e, quando chegou ao trono, quis fazer do hip-hop a nova arte contemporânea , e os Carters (Beyoncé e Jay-Z) passaram a fazer parte da colecção do Louvre no vídeo de Apeshit, Travis devolve-nos à pompa e glória do circo romano, local de culto e adoração. Jacques Berman Webster II, natural do Texas, dono de uma linguagem descomplicada e objectiva, de fácil descodificação lírica e assimilação melódica; utilizador compusivo do Auto-Tune, facilitador da agilidade vocal que tanto acelera em brusca perseguição de fantasmas como traz o coração junto à boca, é o Imperador. Em palco, ele é o centro do universo de milhares que, através da sua impressão vertical, trasnmitem para milhões.
O promotor responsável pela estreia de Travis Scott em Portugal em 2018, poucas semanas da abertura de Astroworld ao mundo - o último álbum massificador de hip-hop preocupado em ser uma obra maior, a par da primeira mixtape Meet the Woo, de Pop Smoke - revelou em conferência recente ter recusado a hipótese de produzir os espectáculos que se avizinham com receio das reacçōes ainda provocadas pelos dez mortos e 300 feridos no Astrofest 2021, o festival nomeado por Travis e produzido pela Live Nation. “Arrependi-me”, confessou.
Os números são frios. Os Swifties de Travis Scott, ou seja os Ragers, são indiferentes à tragédia espoletada após todos os avisos das autoridades de Houston, no Texas, para a deficiente organização do festival e risco elevado de catástrofe humana, que o próprio ignorou durante um concerto caótico e sobrelotado, sem rede de segurança, muito parecida com o ambiente testemunhado no Woodstock 99, através do brilhante e esclarecedor documentário da Netflix. A tragédia anunciada aconteceu mesmo, sem que Travis ou a sua equipa tomassem as devidas precauçōes. Diz-se no meio que, a partir daí, a postura mudou. Vimos Slow J parar o concerto na MEO Arena mais do que uma vez para que quem estava a sentir-se mal pudesse ser assistido. Oxalá seja regra por esses circos fora.
O caso deixou marcas. Travis Scott foi ilibado de acusaçōes criminais e tem vindo a chegar a acordo com as respectivas famílias, através de acordos presumivelmente milionários resolvidos longe da barra dos tribunais. No entanto, o processo está longe de ser encerrado e as acusaçōes cíveis persistem. Em entrevista à Billboard, o regressado Rakim defendia que o choque de egos entre Drake e Kendrick Lamar expunha a diferença entre o mainstream do hip-hop e o rap das ruas. A mesma conclusão pode ser extrapolada para a absolvição de Travis pela indústria, e para uma condenação moral exterior ao hip-hop. Nada de extraordinário se pensarmos na recente aclamação de um predador por feministas defensoras do MeToo. A entropia tem sempre a mesma origem: números, lugares de pertença e vaidade pessoal. Travis Scott é demasiado lucrativo para ser cancelado e os 128 milhōes de streams no dia de estreia de Utopia nas plataformas falam por si. Muita gente se projecta nestes comportamentos, até ao dia em que se viram contra os seus autores.
Ninguém quer olhar para o elefante na sala, mas ele continua lá. O próprio reconhece-o em My Eyes do álbum de há um ano. “When I stare in your eyes/You'll be there forever/To watch our life (to watch our life together/You just like going to Heaven (my heart)”, choram os primeiros versos com voz robotizada de assistente, gerada por inteligência artificial. Aquando da eleição de Personalidade do Ano pela GQ, Travis foi obrigado a falar. Comparou os fãs a família e lamentou a tragédia. As reacçōes pareceram mais uma necessidade de comunicação do que uma vontade sentida de comungar da dor e prevenir futuros acidentes. O caso não foi o primeiro. A 30 de junho de 2000, nove pessoas morreram em Roskilde, na Dinamarca, durante o concerto dos Pearl Jam. Resultado: a banda esteve seis anos sem aceitar festivais e ponderou terminar. Eddie Vedder, Jeff Ament, Stone Gossard, Mike McCready e Matt Cameron ficaram amigos de algumas das vítimas e dedicaram-lhes o single Love Boat Captain de Riot Act (“lost 9 friends we'll never know... 2 years ago today"). Imagina-se La Flame a deixar este voto de pesar? Pois.
Em White Hart Lane, casa do Tottenham, Travis Scott fez estragos. “Há momentos em que o espectáculo mais se parece com um concerto de metal do que de rap”, descreve a reportagem do Guardian sobre uma noite de “tensão e catarse” com “mosh de punk”, comandada por “uma mistura de êxitos musculados, força de vontade e uma grande caixa de fogo de artifício” à qual não faltam as habituais chamas. O jornal inglês descreve círculos próprios de uma plateia dos Slayer para descrever a energia catalisada pelo público e devolvida ao palco. O hip-hop vampirizou quase toda a energia e iconografia no rock’n’roll, desde a potência sonora, à idolatria, aos tecidos de cabedal, à postura de mau da fita perpetrada por Travis Scott. Não deixa de ser curioso que os dois mundos tenham as costas tão voltadas. O do hip-hop por se ter tornado enorme e autosuficiente e o do rock por, nas suas encarnaçōes recentes, ter volvido à marginalidade berçária do rap.
Travis Scott é um titã dos tempos modernos. Tem dimensão pop, o magnetismo dos maus rapazes do rock e escola de rap. Não é demasiado carismático ou discursivo, mas conserva algo de perigoso e desafiante. Não tem o dom da palavra de Kendrick Lamar nem a facilidade (perdida) de Drake em criar êxitos para ouvidos aleatórios. Bebeu quase tudo da visão conceptual de Kanye West, mas subtraiu-lhe a provocação e fechou-se seu império quando Kanye se desgastou a derrubar muros e a erguer escadas para os seus contemporâneos poderem passar. Como Travis. Utopia podia ser uma colectânea de lados B dessa claustrofobia industrial, matizada e pós-modernista chamada Yeezus e, ainda assim, quem dera a muitos tirar papel químico assim. Mas enquanto Kanye é arrastado para o lodo pelas palavras, os actos são insuficientes para condenar a responsabilidade moral de Travis. Estranha astrotopia esta.
Visceralidade, ira e fúria fazem dele um astro criador de música perigosa e nocturna - um íman de excessos e experiências-limite com a familiaridade necessária para espoletar êxitos - em Itália Fe1n foi repetida oito (o-i-t-o) vezes Nem Kendrick Lamar recriou tantas vezes o míssil anti-Drake Not Like Us a jogar em casa, em Inglewood, no evento The Pop-Out. No século digital, as personagens pop são macias e bem comportadas. Não se drogam, pregam como jesuístas e evitam polémicas para não criar divisōes entre os seus clubes. Controlam o algoritmo mas vivem refém dele, como o criador com medo da criatura.
Eis Travis Scott, rebelde de calças rasgadas e tatuagens, símbolo de errância e transcendência. Será o novo velho rock’n’roll ou o normal-não-tão-novo-assim hip-hop?