Irónico como as denúncias da toxicidade de Win Butler não atiraram os Arcade Fire ao tapete. Os canadianos devem ser pioneiros no branqueamento do cancelamento. Sobre este caso, e todos os outros pré e pós-Me Too é confiar nos tribunais, quando os casos chegam à barra, porque a justiça moral é arbitrária e rege-se por emoçōes, não leis. Não há pior momento para defender esta posição mas desconfiar da justiça é lenha para a fogueira da extrema-direita. Para uma banda que se atirou fez à vida com um Funeral, a absolvição da justiça poética merece uma reflexão que, aparentemente, ninguém quer fazer. Podemos começar por aí. A burguesia indie branca abomina o desconforto e nem sequer pára para pensar de onde vem a liturgia de álbuns como esse primeiro ou Neon Bible. Está indisponível para se questionar, talvez com receio de se ver ao espelho nos seus próprios excessos ou no pior da mitologia rock’n’roll: o machismo e subserviência da cultura groupie. Butler tem direito a ser imperfeito como qualquer outro ser humano mas o comum mortal não tem a visibilidade e influência do louro espadaúdo. Virtudes públicas são responsabilidades privadas.
Não é caça às bruxas. O primeiro dos abusos da investigação revelada pela Pitchfork em 2022 é de poder. Butler assumiu a perseguição a mulheres e legitimamente, como qualquer cidadão, defendeu-se com o argumento de se tratarem de relaçōes consentidas. Os relatos dizem outra coisa, principalmente por se terem passado com mulheres entre 18 e 23 anos. Manipulação houve de certeza, A crise conjugal, aparentemente conhecida e aceite por Régine Chassagne, mulher de Win Butler e multi-instrumentista da banda que reagiu com compreensão (“ele andou perdido mas reencontrou-se”), é irrelevante. Da indústria, sobretudo a dos festivais, onde os Arcade Fire são residentes há quase vinte anos, não espanta o emudecimento. É uma banda lucrativa, familiar e assimilada. Ainda por cima, o caso foi um aguaceiro. O alarido inicial foi reduzido a um ensurdecedor silêncio. Há uma relação de efeito-causa entre os dois factos. No circuito de festivais, o rock ainda tem letra grande e não há substitutos para eles. O Deus-Butler vive acima do escrutínio e ainda se ri.
Os Arcade Fire são perfeitos a abastecer frigoríficos vazios. Quando estava a ver através da RTP o concerto chapa 5 no NOS Alive, o karaoke de uma noite de jantar de empresa, tudo se relacionou. O palco é usado como consultório de redenção pública e terapia de casal. Os acontecimentos relatados reportam-se ao período após Reflektor (2013), o último grande álbum dos Arcade Fire e provavelmente o mais arriscado dos seis. Sem surpresa, o alinhamento do concerto só aceita a inclusão de uma canção posterior - a Abba larga de Everything Now. Não há coincidências. É uma banda perdida da transcendência e esquecida do risco que os catapultou para a fé e devoção a cumprir um eficaz karaoke de si mesma, previsível e automático. Que importou isso aos 50 mil acanhados como sardinha em lata no Alive?
Provavelmente nada, o que diz muito sobre a cultura de falta de exigência e sobre o abafamento do caso. Na manhã anterior ao concerto, começaram a circular vídeos de um DJ set dos Arcade Fire no Praia do Parque. Em visitas anteriores a Lisboa, Win Butler, na pele de DJ Windows 98, já tinha repetido a façanha em clubes como o Lounge, o Incognito e o Lux-Frágil, onde pelo menos, as pessoas reconhecem os Arcade Fire e os Arcade Fire são ouvidos (sobretudo na cave perto de S. Bento). A escolha de um “steakhouse moderno”, simulador do verão da Oura no coração da cidade, é revelador sobre o posicionamento do festival, que legitima um momento de comunicação de uma das suas principais bandas num espaço onde a música é uma aplicação de engate, da gestão desnorteada do rumo da banda e do aburguesamento do indie (Indieciativa Liberal?) - muita gente ainda vive iludida mas o indie, enquanto movimento citadino e académico, só foi operário nos primórdios das quatro pistas.
Em 17 anos, não vou pela primeira vez ao Alive, era para ter começado esta crónica. Esta informação seria absolutamente irrelevante mas o vício de procurar nexos de causalidade entre o particular e o universal facilitaram-me quatro parágrafos do trinómio Arcade Fire-Alive-público, todos a apontar na mesma direcção: relação com a música. É prudente constatar que mudou. Não é arriscado constatar que piorou. Estamos na curva descendente da democratização. O tudo para todos só funciona quando há regulação e organização da informação. Nesta selva de predadores e presas, a música, incluindo a independente, há muito foi capturada pelos leōes, conscientes do seu efeito sobre as multidōes, e é usada como publicidade encapotada. Problema: o efeito da explosão da bomba é neutralizador. Exemplo? Tchaaarraannnn. Arcade Fire!
É natural que festivais como o Alive, que em 2025 atinge a maioridade, tenham sofrido mutaçōes. Lembro-me como se fosse agora de, após ter titulado a minha reportagem sobre a noite dos Coldplay em 2011 de Alive in Rio, de ter um administrador da Optimus à minha espera na zona de imprensa para pedir explicaçōes, acompanhado pelo próprio Álvaro Covōes. Estavam escandalizados com a alusão ao então arqui-inimigo Rock in Rio e nem sequer compreendiam a comparação. Como sempre, a generalidade da imprensa absteve-se do seu papel crítico, com medo de perder acreditaçōes, e foi condescendente com estas mudanças, quando os mesmos jornalistas que as reconheciam comentavam em volume ASMR aquilo que não tinham coragem de verbalizar nas suas reportagens. Quem conheça a história do festival, sabe que há um antes e um depois desse momento. Em 2024, o Alive é uma versão Guilty By Olivier do Rock in Rio, mais citadino, classista e endinheirado, com uma programação um pouco mais exigente, mas não muito. O pior cartaz de sempre do Rock In Rio recebeu três dias de lotação esgotada; um cartaz fraquíssimo de NOS Alive anda perto.
Os concertos, e sobretudo os festivais, são um acto colectivo. Por muito particulares que os gostos sejam, é impossível não se ser engolido pela multidão quando há milhares de pessoas numa área tão pequena. Esse efeito é indissociável da experiência de assistir um concerto num festival com este perfil. Esse fenómeno pode ser galvanizador ou desmotivador. As conversas com amigos deixaram de ser sobre “o que vais ver” e passaram a ser sobre desconforto e irreconhecimento de causas comuns. A idade acresce exigência? Espero que sim, mas o problema está muito para além do conforto pessoal, e tem sobretudo a ver com aquilo que os promotores-empresários maximizadores do lucro pretendem vender e com aquilo por que as pessoas aceitam pagar.
Como escrevi em crónicas anteriores, os festivais, enquanto espelho aumentado da realidade, perderam o ritualismo colectivo e passaram a ser uma experiência individualista. Se isso condiciona a gula de ver o plateau hedonista de Dua Lipa, renovar os votos de fé nas preces de Michael Kiwanuka ou lutar com o cansaço até às 3 da manhã por Floating Points? Absolutamente. A única noite doce do Alive vai ficar em branco porque, pesados os factores, o desejo de ver estes espectáculos já perde na balança. E como prezo a coerência entre quem sou e o que faço aqui, pela primeira vez não estarei presente no local onde ainda há dois anos vivi Stromae e Fontaines D.C. pela primeira vez e Da Weasel como um eterno reencontro, e onde passei momentos especiais e irrepetíveis a sentir na carne Rage Against The Machine, Radiohead, Depeche Mode, Chemical Brothers, The xx, Idles, Vampire Weeknd, Disclosure, Thom Yorke, Jessie Ware, TV On The Radio, Buraka Som Sistema, Jorja Smith ou Chet Faker.
Estou certo que como eu, há muita gente a sentir o mesmo, em relação ao Alive ou outros festivais - a edição de 2023 do Primavera Sound foi traumatizante e demonstrou que até os festivais preocupados com o equilíbrio entre cartaz e comodidade se estavam a perder. Tenho todas as dúvidas que festivais tão asfixiantes consigam proporcionar memórias eternizáveis. O que hoje se oferece são brindes de prazer momentâneo promovidos como aplicaçōes de engate. Imediatas, fugazes, emocionais. E amanhã é outro scroll. O amor é outra coisa. Precisa de espaço e respiração. Só é possível compreender o outro se houver tempo e disponibilidade. O amor dá trabalho. Questionar as emoçōes também, mas observarmos a nossa mudança e do mundo através delas é isso que fica.
Os grandes eventos transformaram-se em centros-comerciais nada camuflados de marcas e conteúdos publicitários, pagos a preço de ostra. É bom recordar que o discurso do Alive evoluiu de “festival da boa música” para feira de vaidades, a começar pela de um promotor que tem tanta relação com a música como eu tenho com o padel. Está tudo interligado pelos mesmos números: a benevolência para com Win Butler, o Funeral dos Arcade Fire, a sedentarização dos festivais, a perda de valores críticos, o amor-algoritmo, a ruína do romance e a epidemia da solidão. Esta religião já não salva, só vende bíblias.
“o Alive é uma versão Guilty By Olivier do Rock in Rio” 🔥
Lembro-me de ver Arcade fire em setembro de 2022 no O2 em Londres na tour do WE logo a seguir as publicações da pitchfork. Havia um desconforto gritante do público em estar ali presente e muitos escolheram nem ir. Mas são contextos diferentes e as notícias ainda estavam frescas.