Menos de uma hora depois de Drake ter insinuado que Kendrick Lamar bate na mulher Whitney Alford em Family Matters, Meet The Grahams escalou ainda mais a tensão. Verso após verso, Kendrick deixa recados contundentes à família de sangue de Drake. No terceiro, acusa sem moderação o canadiano de estar a esconder um segundo filho - o primeiro já tinha sido desocultado em The Story of Adidon, a bala de prata disparada por Pusha T aquando de uma batalha pública de rimas acendida após o rapper ter acusado Drake de trabalhar com ghostwriters. Lamar também denunciou comportamentos predatórios para com as mulheres, acusou o pai Dennis Graham de ter criado “um filho horrível” e deixou um post scriptum: “Fuck a rap battle, this a long life battle with yourself”. Tomara que fosse uma auto-crítica e ambos cessassem fogo de imediato.
Drake soltou Family Matters na sexta-feira à noite. Kendrick respondeu com Meet the Grahams nem 60 minutos depois. A não ser que tudo isto não passe da encenação de um thriller sangrento, de uma série da Netflix ou de um genial reality show, a guerra aberta passou todos os limites do razoável e não só diminui os dois como infantiliza uma cultura que depois de se ter afirmado como bandeira cultural dos EUA no mundo não conseguiu lidar com as armadilhas da massificação. A evolução da narrativa do hip-hop é um decalque da história do rock e viaja na mesma carruagem da electrónica. Os episódios repetem-se: primeiro a resistência contracíclica estranha-se e causa rejeição, depois a indústria assimila-a, rega a planta com demasiada água e esta perde a folhagem, além de sofrer ataques de fungos e bactérias. Chegámos ao momento da saturação. Quantos Lamars emergiram depois de Kendrick? Tantos como no rock depois de Kurt Cobain. Talvez Pop Smoke pudesse ter ascendido a esse clube restrito se não tivesse partido tão cedo.
Nunca é só rap, nem o rap ou outro género vive numa redoma. Aliás, isso seria negar o impacto esmagador, mas talvez esse seja um dos grandes problemas. A cultura cresceu para dentro e para os lados enquanto perdia a auto-crítica. Os grandes ficaram todos gordos. Até o franzino Lamar, incapaz de se controlar na luta de verbos, perdão de egos. O bife mal passado servido por Drake e Lamar à hora do jantar mostra bem a irresponsabilidade e alienação da realidade de alguns dos seus actores principais - nem vale a pena falar de Kanye West, certo? O tema pode não abrir telejornais, mas prende a atenção da Internet como um episódio final de Euphoria. E já chegou à política, com Joe Biden a servir-se do poder de fogo de Lamar para atacar Donald Trump.
Convém, aliás, recordar como tudo começou. Em 2023, J. Cole reacendeu a luta pelo primeiro lugar em First Person Shooter no álbum For All The Dogs de Drake. “Love when they argue the hardest MC/Is it K-Dot? Is it Aubrey? Or me?”. As referências nominais a Lamar e Drake culminaram com um “right now, I feel like Muhammad Ali”. Lamar respondeu seis meses depois. “The big three”, replicou em Like That, de Future e Metro Boomin, “it’s just big me”, desvalorizando as rimas “com pouca substância” de Cole e Drake. Duas semanas depois, Cole reagiu em 7 Minute Drill do álbum Might Delete Later, editado sem aviso prévio. A resposta foi tão patética que a auto-censura fez apagar a canção do alinhamento poucos dias depois com um pedido de desculpas no festival da Dreamville e a justificação de que a reacção a quente se devera à pressão exterior. “Senti-me péssimo nos dias seguintes”, explicou. Durante anos, a comunidade alimentou a esperança de Cole e Lamar juntarem os cadernos n’O Grande Álbum do Lirismo Moderno. Nunca aconteceu.
Não tenhamos ilusōes. Esta série tem audiência e ambos sabem-no. Há cinismo no descontrolo emocional. A Rolling Stone, por exemplo, olha para o caso com naturalidade e atribui a vitória no ringue a Kendrick Lamar. O autor Andre Gee antecipa novas rondas no pingue-pongue verbal mas defende que os beefs fazem parte da cultura gastronómica do rap. É um olhar de dentro para dentro. O rap é uma radiografia de quem o versícula e alimenta-se da ambiguidade entre fantasia e real. O choque de personalidades sempre existiu e lubrificou a linguagem mas o mais chocante nesta guerra aberta é a forma como as mulheres são humilhadas enquanto se trocam galhardetes na via pública.
O mais chocante nesta guerra aberta é a forma como as mulheres são humilhadas enquanto se trocam galhardetes na via pública. A leviandade com que Drake acusa Lamar de violência doméstica e este contrapōe com a denúncia de ataques predatórios a mulheres menores de idade é chocante. Em The Heart Part 6, Drake nega a versão mas o sarcasmo é sintomático do sentimento de impunidade.
A leviandade com que Drake acusa Lamar de violência doméstica e este contrapōe com a denúncia de ataques predatórios a mulheres menores de idade é chocante. Em The Heart Part 6, Drake nega a versão mas o sarcasmo é sintomático do sentimento de impunidade. “If I was fucking young girls, I promise I’d have been arrested/I’m way too famous for this shit you just suggested”. No passado, o canadiano já tinha, por exemplo, defendido Tory Lanez após este ter sido acusado de alvejar Megan Thee Stalion numa festa. Em agosto, foi condenado a dez anos de pena efectiva. A vulgarização da linguagem é a banalização do mal. Drake e Lamar batem no fundo mas não falam apenas pelas suas convicçōes. Representam uma cultura e servem de exemplo para todos os que aspiram chegar tão longe.
Nos anos 90, a guerra Este contra Oeste custou vidas a 2Pac e Notorious B.I.G., assim como a Stretch, da mesma Thug Life de Shakur. Qualquer um deles, foi vítima de homicídio de gangues rivais. Nisso, o hip-hop mudou bastante. As mortes mais recentes ou partiram de assaltantes (Pop Smoke, XXXTentacion), ou imitaram a mitologia rock’n’roll (Mac Miller, Lil’Peep e Juice Wrld todos morreram de overdose). O palco da luta livre entre Drake e Lamar é na Internet onde se imaginavam que as guerras do Séc. XXI viessem a ser travadas, sem armas, sangue ou feridos, mas com invasão de sistemas, roubo de dados e cortes gerais remotos. É em ambiente de comunicação que se disparam as muniçōes.
O segurança alvejado com gravidade à porta da mansão de Drake terá sido uma bala sobre a Broadway? Esperemos que tenha sido apenas um disparo acidental. Por enquanto, é uma guerra de palavras. Imatura, inconsequente e inútil. Drake e Lamar gastam o latim a discutir como adeptos rivais num bar e desperdiçam o poder de empolgar plateias com entradas a pés juntos e tentativas frustrantes de lesionar o adversário com gravidade. Se a postura de Drake já não surpreende em função dos actos desesperados de recuperação do centro democrático entre rap, pop e r&b - conquistado à base de singles como Hold On We’re Going Home, Hotline Bling e One Dance e nem tanto de álbuns -, com os mecânicos e algorítmicos Certified Lover Boy, Honestly, Nevermind, Her Loss (com 21 Savage) e For All the Dogs, de Kendrick esperava-se outra capacidade de resistir ao convite para lutar na lama.
Os ataques desferidos por ambos são demasiado graves para ser encarados como um recreio e, a comprovar-se, inserem-se na esfera criminal mas mostram bem o quanto a NBA do rap se transformou numa terra sem lei, moral ou escrutínio, em que, nas suas mansōes douradas, alguns rappers se sentem acima das regras. O endeusamento é recíproco de dentro para fora e de fora para dentro. À hora a que este artigo é escrito, uma das últimas notícias diz que The Heart, Part 6 já colecciona um milhão de não-gostos no YouTube. Era bom que a reprovação pudesse ser canalizada sobre a misoginia e a cultura do ódio que este caso também transparece. A realidade, porém, é outra. O próximo disparo é aguardado com ansiedade dentro da cultura. Não há grande dúvidas de que a saga terá outros episódios, mas os próximos acontecimentos só poderão atirar mais fogo para o fogueira. As mulheres são tratadas como um dano colateral quando são a principal vítima. Não há vencedores, todos já perderam neste duelo.