Os dias anteriores ao Primavera Sound Porto foram terríveis. O actor Adérito Lopes foi atacado por um grupo neonazi, o mesmo que horas antes insultara o insuuspeito Sheik David Munir em cerimónia oficial com a presença do candidato a PR Gouveia e Melo. Perto do Estádio de Alvalade, um grupo de fanáticos do Sporting incendiou o carro de adeptos do Porto - o desporto só é um caso parte porque a violência há décadas é banalizada. No Porto, três voluntárias foram agredidas por neonazis enquanto distribuíam alimentos a um sem-abrigo. Perante esta escalada da barbárie, relativizada pela governação, as franjas ainda têm o poder de circular na faixa central?
À chegada ao Parque da Cidade, para um reencontro após um 2024 abstinente, um enorme caleidoscópio de tons verde-alface, homens de saia, mulheres de calçōes, pessoas trans, não-binárias, e todo o tipo de cidadãos impuros destituídos de pudor e acometidos de extravagâncias, geravam um trânsito pacífico à porta do festival, com algumas semelhanças com os orgulhosos arraiais de luta pela liberdade e celebração pela diferença. Quem circulasse nos corredores de acesso ao festival, e não tivesse consultado as notícias dos dias anteriores, talvez não adivinhasse tratar-se da mesma civilização constatada por Hannah Arendt em 1961 como profecia de um futuro que teima em reaparecer como fantasma não convidado para a festa.
Do grafismo precário a fenómeno pop de 2024, bendito por Kamala Harris, Brat (qualquer coisa como fedelha, ou pirralha) foi a palavra de ordem do festival, estampada como slogan de campanha, na roupa de muitos milhares que se deslocaram do Porto de diferentes geografias locais, e não só. Há quanto tempo o festival não era tão certeiro a encontrar o momento certo para o consenso pop erguido a partir de correntes marginais (maximal, hiperpop)?
A espuma do momento desaguou no mar picado de Matosinhos como dia de praia. Um ano depois de se ter consagrado caso pop de 2024, Charli XCX estreou-se em Portugal para celebrar um ano de Brat. Foi o fenómeno do passado, ainda sem sucessor à altura, apesar das paletes de artistas pop a lutar por atenção todas as semanas, de Sabrina Carpenter, a Tate McRae ou Addison Rae, sem esquecer a selecção brasileira, latina ou K-Pop.
Esperava-se uma enchente, mas tão grande? Uma onda verde fluorescente invadiu como um raio de energia limpa e Charli correspondeu aos anseios. À hora marcada, dez minutos antes dos ponteiros mudarem o turno, só ela, uma faixa vertical de Brat, e a euforia de quem a queria. Muito. O início é avassalador com o elogio do hedonismo em 365 e a estonteante 360 - o fim e o princípio de Brat colados num arranque galvanizador e sem tréguas.
O modelo pop é conhecido. Instrumentais disparados por mão invisível e Charli, a voz e presença a desfilar no palco como passerelle. Há um princípio de imperfeição, por exemplo na exposição de um corpo pouco tonificado que rompe com o cânone pop da beleza inalcançável. Esse gesto humanizador aproxima e confronta o estatuto de diva. Não é essa a pele que há neste espírito libertino. Que cançōes carregadas de dúvidas existenciais como Girl, So Confusing espicaçam ainda mais. Que melhor brecha na civilização do que esta para ouvir uma mulher perguntar-se a si mesma Girl, how do you feel being a girl? (Girl, girl, girl)?
Serve-se e abusa-se do Auto-Tune mas a voz não se dilui na robotização e age como guia da consciência colectiva. Há um momento em que é preciso baixar o volume para não acordar os vizinhos em I Might Say Something Stupid, balada new age aveludada de azul e há um outro em que os vizinhos são convidados a entrar - o electro pop de Apple Girl atravessa a imaginação dos Human League a Kylie Minogue.
Até participar involuntariamente na corrida à Casa Branca, Charli XCX fez muito trabalho de picareta nos pisos subterrâneos da Internet. Dos milhares a vibrar com a pop absorvente do techno ao trap, alguém recordava a “era do Soundcloud”, quando há mais de uma década foi projectada para a viralidade? De lá vieram Vroom Vroom e para o corte do bolo, o clássico de arraial I Love It, assinado pelas Icona Pop. À falta de Billie Eilish e Lorde, houve champanhe no fim. E a certeza de que em tempos de guerras com quartéis identificados, braços armados ditatoriais e inimigos invisíveis, o prazer é uma forma de resistência. E o amor um gatilho desarmado.
Nem todas as formas de protesto são literais. Em Charli XCX, a mensagem de liberdade é subliminar e omnipresente. No caso dos Fontaines D.C, ela é explicitamente politizada. À semelhança do que haviam feito em Barcelona, projectaram nos ecrãs a verdade silenciada. “Israel está a cometer genocídio. Usa a tua voz”. Não mitiga a sensação de impotência colectiva perante o extermínio de um povo mas pelo menos o tempo de atenção serve uma urgência colectiva e não algum interesse corporativo. Quando o activismo enviesa entre a autenticidade e a encenação, os irlandeses não cederam ao receio de uma plateia crescente.
Diluídos os equívocos de Romance, sobretudo a incorrigível In The Modern World, os Fontaines D.C. de horário nobre são uma banda no pino das suas faculdades, coesa, rodada e recheada de grandes cançōes como a tensa Televised Mind, a electrizante Jackie Down The Line e a inevitável Starbuster. Seis anos depois de se terem estreado com Dogrel, e três do concerto inaugural em Portugal, no NOS Alive, os Fontaines D.C. não só cresceram como amadureceram. São hoje uma banda consciente da sua importância e do pelotão pós-punk que os segue e aos Idles. Aquilo que perderam em inocência, ganharam em traquejo e saber. São uma referência e sabem-no. Cá em baixo, podiam fazer-se várias equipas misturas de futebol com os equipados à Fontaines D.C de rosa e azul.
O defeito de ambos os concertos transcende-os. Há dois anos, a organização anunciava sob uma chuva de críticas que o palco maior seria para manter. Não mudou de opinião, mas o palco Porto, o maior do festival é indistinto de outros festivais e sofre de uma falta de carisma que o palco Vodafone, situado na lindíssima encosta do Parque, contrasta, como se viu pelo concerto para pista de dança de Caribou ao final da noite - misto de pulsão rítmica herdeira da cultura rock com máquinas ampliadoras da cognição. Se os portōes se tivessem fechado ao som de Can’t Do Without You seria a forma ideal de concluir uma noite política de júbilo.
Nem tudo foram flores porque o concerto de Anohni exige um silêncio e concentração que nem um festival dispōe nem a pop garrida de Magdalena Bay permitiu. Glass Beams e The Dare sofrem do pecado capital da réplica de Khruangbin e de todo o eixo DFA (Rapture/LCD Soundsystem), respectivamente. Males menores num pequeno grande oásis de êxtase recíproco e repartição dessa riqueza.
Aí está um grupo que tenho vontade de conhecer ao vivo. Os Fontaines DC.