A que horas é o sorteio do Mundial? Aí saberemos se os Fontaines D.C. ficaram colocados no grupo de Beyoncé, Dua Lipa, Billie Eilish e Taylor Swift ou no dos Oasis, U2, Pearl Jam e Arctic Monkeys. Terão capacidade para vencer uma prova a eliminar? Grian Chatten aspira a ser melhor marcador? Serão a Melhor Banda do Mundo para o NME ou para o France Football? Em que canal será transmitida a cerimónia? Eleven ou Sportv?
Adiante a infantilidade e medievalismo. Há uma regra conhecida na indústria de que quando uma banda não-fabricada ascende na vida, chega a um momento em que ou o copo enche com vinhos franceses ou esvazia até à destruição do fígado. É a linha que separa o primeiro escalão da descida de divisão. Sabemos que a cultura popular é cíclica e autofágica. Há vinte anos, bandas como os Placebo entravam numa espiral de fracasso em Sleeping With Ghosts, álbum típico de perda agravada de sentidos e ontrolo da direcção, cheio de cedências à indústria, cançōes apressadas e descosidas. Pressentia-se uma banda desconfiada de si mesma e o tempo foi implacável. A máquina precisava de ser alimentada e, embriagados pela aclamação à esquerda, os Placebo aceitaram ser piores para continuar a crescer. Não mais voltaram a ser os mesmos de Without You I'm Nothing e Black Market Music. (curiosamente, foram cabeças de cartaz de Paredes de Coura em 2003 numa noite prestigiante com PJ Harvey e Yeah Yeah Yeahs)
Olhamos para o Romance dos Fontaines D.C. e o campo está inclinado para o mesmo precipício. Eles fizeram tudo o que vem no manual de receitas. Pintaram o cabelo de rosa, vestiram Adidas e tons verde Brat da estação. Na semana passada, o vazio In The Modern World dava a estocada final nas expectativas. Tinham-se passado para o lado dos Coldplay. A mais medíocre canção dos irlandeses foi feita à medida para os mesmos efeitos de legendagem de Espresso de Sabrina Carpenter e para se bater com a aridez de Birds of a Feather de Billie Eilish - música sem grandes princípios a não ser a finalidade de sonorizar vinhetas do dia a dia social. Com nacos de poesia como In the modern world/I don't feel anything/In the modern world/And I don't feel bad quem precisa de alcatra de novilho? Fabuloso para a pantomina das redes.
Nos anos de Nancy Boy e Special K e Taste In Men, dos Placebo, os alternativos definiam-se por se levantar da mesa quando se apercebiam da presença de curiosos a bordo. Agora, passa-se justamente o oposto. Ainda bem que as fronteiras entre indie e mainstream derreteram só que agora as métricas comandam a razão. O juízo só não é tão drástico porque a bombordo há uma estupenda Starbuster, que muito prometia, mas o efeito Dei-te quase tudo e quase tudo foi demais é a marca de um Romance falhado. O glorioso estampanço de uma banda que quis tanto ser grande que se esqueceu de ser boa.
Enquanto os Idles se dissociaram da caricatura deles mesmos e ousaram divergir em álbuns menos compreendidos como Crawler e o mal-amado Tangk, no caso dos Fontaines D.C. a trajectória sólida e progressista, sobretudo no salto do pós-punk protestante e desencantado de Dogrel e A Hero’s Death para o rock sónico de escola Steve Albini e existencialista - mais próximo de uma certa América eléctrica dos anos 90 do que dos Joy Division ou dos primórdios dos U2 - é traída pelo facilitismo. Um álbum nivelado por baixo, desinspirado, carregado de jargōes de auto-ajuda, utopias estéreis, lágrimas de cebola e pensamentos frugais tirados do bolso para a caneta. Este poema não só ensina a cair, como é a queda. Os joelhos só não acabam no hospital porque o carisma permanente de Grian Chatten é uma rede de gravidade protectora do rendimento mínimo.
Romance está mesmo a pedir os papéis para o divórcio. A relação só sobrevive porque para trás ficaram três capítulos de rock não-gentrificado mas é melhor dar um tempo aos Fontaines D.C. e deixá-los ir na queda livre da embriaguez dos estádios até acordarem de ressaca. Esperemos que não seja tarde demais para se reabilitarem.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Cocteau Twins & Harold Budd - The Moon and the Melodies (reedição)
O convite dos Cocteau Twins não tinha o álbum como segunda intenção. Apenas a vontade de Simon Raymonde pedir autorização para uma versão de Not Yet Remembered de Harold Budd e Brian Eno. Conta-se que o entusiasmo terá nascido compositor, um veterano entre novatos. Ainda mal refeitos de Victorialand, editado nesse ano, os Cocteau Twins tinham acabado de inaugurar o estúdio September Sound, nos arredores de Londres. O som cristalino e etéreo é infalível. Nas nuvens com The Moon and The Melodies, o efeito é suspensivo e reparador. Embora inicialmente creditado individualmente a Simon Raymonde, Robin Guthrie, Elizabeth Fraser e Harold Budd, pertence à linha da vida dos Cocteau Twins, à qual o último juntou o piano de cauda e alguma tecnologia - Sea, Swallow Me é a segunda canção mais ouvida da banda no Spotify atrás de Cherry-Coloured Funk. Pacto perfeito, The Moon and the Melodies apresentou outras linhas no horizonte além das sombras a pairar sobre os cinzentos anos 80. A operação de resgate deste som omisso e quimérico está concluída com êxito. O que fica por dizer nas entrelinhas das reediçōes dos Cocteau Twins é a questão pendente.
Margo Guryan - Take a Picture (reedição)
Magnífica peça de pop psicadelista e cosmopolita, de naturalidade novaiorquina como se Nico habitasse num viveiro de plantas. Cançōes dotadas de estruturas simples que precisam de pouco para transmitir afectos debitados em polaroids luminosos do real como nas magníficas Sunday Morning, Don’t Go Away e Take a Picture. Chama-se reedição mas na prática é uma descoberta.
Gas - Gas (reedição)
O ritmo é cardíaco. Os loops atmosféricos sucedem-se sem se atropelarem, como ondas magnéticas. O tempo corre a favor da hora e meio de serenidade e tensão sem pressas. Pela primeira vez reeditado, o disco onde a câmara de Gas se abriu é um teatro de sombras e cromatismos entre o ambientalismo e as camadas subtis de dub techno. Soa a um tempo perdido em que esta música era mais do que um efeito decorativos de moods terapêuticos. Por isso mesmo, obrigatório.
Koreless - Deceltica
Com alguma surpresa, Deceltica invoca o techno minimal sem se afastar das marcas de Koreless na produção: o passo fractal e a aura enigmática repassada na atracção pelo belo e indizível. Deceltica e Drumhell estão entre o mais audaz que se tem ouvido no mundo da electrónica conceptual e desafiam a cristalização reinante. Não valem menos que Burial, antes pelo contrário.