As boas notícias costumam vir no fim dos telejornais a partir do fim mas neste caso é o inverso. A abertura do Coliseu Club, situado no primeiro andar do edifício do Coliseu dos Recreios, a mais bela sala de Lisboa, merece vivas de destaque na vida cultural, pelo menos da cidade e de toda a Área Metropolitana. As portas destrancam-se este sábado, dia 1, com os barreirenses Humana Taranja (na foto). No dia 11, o fadista Duarte celebra vinte anos de carreira e no dia 19 Yakuza e Salamandra celebram o novo jazz português na curadoria Santo Antão Jazz Clube do Rimas e Batidas.
A abertura de uma nova sala no centro de Lisboa, quando algumas se foram finando no calvário dos últimos anos, como o Lounge e o Sabotage, é, em si, um facto em contraciclo com obituário de alguns agentes secretos obrigados a cessar funçōes devido à subidas das rendas e à especulação imobiliária. Mas não só. A perseguição constante às festas do Planeta Manas e o cancelamento de última hora da boda da Príncipe não diz nada de bom sobre a pluralidade cultural de uma cidade vendida com o postal do cosmopolitismo. Como nos arredores, as opçōes de programação fora auditórios e teatros são bem mais modestas, o direito à diferença em Lisboa está ameaçado pelos poderes políticos e económicos interessados em esvaziar as franjas e facçōes contra-culturais.
Por isso, a abertura de uma nova sala é como a chegada de um novo vizinho ao quarteirão. Quando a deserção é generalizada e as habitaçōes são esvaziadas de vida e estantes de discos para serem reconvertidas em casas de férias ocupadas um mês por ano, há uma porta que se abre, de quem se pode esperar familiaridade nas propostas e uma coerência programática que, a avaliar pelos nomes já confirmados, tem na música portuguesa um eixo estrutural. De acordo com o programador Nuno Barros, o cardápio reflectirá música “eclética, nacional e internacional, muito focada nas novas bandas portuguesas mas não descurando projetos já cimentados“. Intenção e prática são, para já, coerentes.
O Coliseu Club é “polivalente e multidisciplinar” e tem uma ocupação que poderá variar entre 200 lugares sentados e 500 com plateia em pé. Quer pela dimensão, quer pelos primeiros nomes avançados, propōe-se a acolher o circuito médio habitual do Musicbox, das quintas-feiras do B.Leza e do Lux, das produçōes da ZDB em exterior ou do LAV, embora a elasticidade da sala permite esticar para capacidades mais próximas do vizinho Cinema São Jorge. Sem cadeiras a travar ímpetos físicos de dança, protesto ou catarse colectiva.
A boa notícia guardada para o fim não é só sobre o Coliseu Club. É sobre a vitalidade da música portuguesa, que transcende MEO Arenas, Campos Pequenos ou Coliseus esgotados. O efeito normalizou-se entre os tubarōes do streaming mas é bom recordar que são excepçōes. E que para além destes, há outras linguagens exteriores à dominação do mercado. Gente que se manifesta fora dos grandes eixos e encontra respostas através dos meios próprios - nas redes sociais, plataformas, em algumas rádios e programas de autor, junto da imprensa não-anestesiada e sobretudo cara-a-cara com o público em concertos onde a verdade não pode ser mascarada.
Se a classe média nacional estivesse depauperada de entusiastas e de validade artística, uma sala como esta teria poucas hipóteses de avançar, quando se percebe que as digressōes internacionais de média escala estão condicionadas pela subida acelerada dos custos de andar na estrada entre hóteis, aeroportos e portagens, e ameaçam deixar muitas bandas a ver documentários em casa. Numa fase em que o frenesim de propostas pré e pós-pandemia dá sinais de abrandamento, a abertura de uma sala no centro de Lisboa com programação regular de música portuguesa de autor indicia maturidade do público, sem complexos de inferioridade de pagar para ver os Maquina o mesmo que pagaria pelos Fat Dog (?) - é só exemplo - um cansaço crónico do circo festivaleiro e uma necessidade vital de resistir à hipernormalização do gosto. É chato mas alguém tem de fazer o trabalho sujo de transmitir uma centelha de optimismo.
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