O último fôlego só chegaria com Galinhas do Mato, em 1985, quando foi necessário convocar José Mário Branco, Sérgio Godinho, Júlio Pereira, Né Ladeiras, Helena Vieira, Fausto e Luís Represas para finalizar a empreitada, mas, dois anos antes, no magistral Como se Fora Filho, José Afonso já sabia da besta. A esclerose lateral amiotrófica que, ainda para mais, haveria de lhe afectar um dos maiores atributos: a voz de mil sóis e tempestades.
Para mitigar as sequelas da maldita doença, o técnico de som José Fortes instalou um microfone no hall do Angel 1, onde havia um sofá, “para que o Zeca não tivesse de descer as escadas para a sala onde gravávamos”, contava Janita Salomé, que pouco meses antes começara a acompanhá-lo, em Os Melhores Álbuns da Música Portuguesa, co-editado pelo Público e pela FNAC em 1998.
As mesmas cordas danificadas pela degeneração muscular não dão parte fraca. Eu Dizia, gravada com José Mário Branco ao piano e Pedro Wallenstein no contrabaixo, foi a última canção a ser transposta para fita quando a doença se espalhava. “É um poema que o Zeca dedicou à Zélia quando ia a atravessar Espanha e, se não me engano, é a última coisa que ele cantou em estúdio. É impressionante porque o texto tem que ver com isso. Sente-se que já lhe falta força, mesmo se ainda está bem cantando”, recordava JMB, um dos três produtores, nas mesmas páginas do livro.
“Este disco retrata a intenção de um homem que sabe que vai ficar sem esse instrumento e se cerca de colaboradores para que veiculem a sua ideia ou o sentido das cançōes feitas sobre o assunto”, recordava Júlio Pereira que com JMB e Fausto trabalhou a direcção musical e arranjos. Em separado, por vontade de Zeca.
“Um dos quatro melhores discos do Zeca”, defendia JMB, é o melhor do pós-25 de abril e tem a mão de um revolucionário não só político como musical. Embora o engajamento paire como sombra eterna, a sua grandeza excede quartéis e muros. Porém, o campo político estava minado. Zeca pagou o preço de nunca se ter vinculado ao PCP e ter apoiado Otelo Saraiva de Carvalho nas presidenciais de 1976 - no ano seguinte, chega a ser apupado em Grândola por militantes do partido - e acabou ostracizado no espaço mediático por uma esquerda ressentida, indisponível para aceitar a diferença, e por um esvaziamento sociocultural do qual a música ligeira se aproveitou. Cantores como Marco Paulo e grupos como as Doce passaram a dominar o tempo de antena televisivo e radiofónico enquanto José Afonso era desvalorizado, até nas redacçōes de jornais, onde o pós-modernismo da década de 80 relegava as vozes de abril para a gaveta das camisolas de malha.
“Estávamos a sair do 25 de novembro e o que estava ligado à esquerda passou a ser atacado. A partir daí, as pessoas desligaram-se de tudo o que fosse além da música ligeira e o Zeca foi apanhado por tabela. O Zeca esteve igual a si próprio. São temas muito vigorosos”, comentava JMB, também ele vítima do incómodo suscitado por um disco contracorrente, sobretudo a partir da década de 80, quando a canção de protesto foi empurrada para fora da pista pelo roque português e pela música moderna do Rock Rendez-Vous, além da canção modesta em recursos.
O último disco de corpo inteiro de José Afonso é notável na capacidade reinventiva e de compreensão dos sinais políticos e estéticos. Um labirinto lúcido de utopias permanentes e desencantos pós-revolucionários, provido de clareza de pensamento e audácia. Faltava-lhe o combustível mas não a estamina.
Na espantosa Canção da Paciência, as cordas grossas sopram o vento quente da música baleárica pré-house mas o texto nada tem de mediterrânico e exprime a decepção com os novos rumos de um futuro que era brilhante.
Tenho muitos anos para sofrer
Mais do que uma vida para andar
Beba o fel amargo até morrer
Já não tenho pena sei esperar
Como se Fora Seu Filho tem sabor agridoce. Na contenção de Utopia há uma dúvida existencial (Este rio este rumo esta gaivota/Que outro fumo deverei seguir na minha rota?) só ao alcance dos mais idealistas, inquietos e auto-críticos. Papuça e a acutilante O País Vai de Carrinho alimentam uma das grandes paixōes de José Afonso. África, onde viveu três anos em Angola e doze meses em Moçambique - as injustiças coloniais despertaram-lhe a consciência política que não mais o abandonou desde a infância e a ousadia de emular a música da lusofonia na sua. Na alvorada de 80, ainda ninguém ousava assumir este diálogo ou sequer propô-lo. A herança colonial era demasiado pesarosa, mas Zeca tinha plena consciência da potência musical da lusáfrica.
E eis que assobia o Canarinho, epifania minimalista e a experiência mais arrojada de Como se Fora Seu Filho. Estaria José Mário Branco, autor do arranjo, extasiado pelo vudu de My Life In The Bush of Ghosts? Pelas primeiras experiências de David Bowie (no lado B de Heroes), David Byrne e Brian Eno com a futura world music? Peter Gabriel ainda não se tinha aventurado por estes mundos mudos. A escultura tropical mais parecida talvez seja Walking In Your Footsteps dos Police (JMB era um confesso admirador de Sting), desse mesmo ano, mas não se trata de uma importação. A repetição mecânica das congas e da flauta soa a fruto natural no poema fonético percutido pelo texto. Canarinho não é menos intrépido do que os saltos sem rede de Pop Dell’Arte, Mler Ife Dada, GNR ou Ocaso Épico.
Despida, a soberba A Nau de António Faria tem apenas uma muda fadista enquanto A Canção do Medo traz adufes, braguesas e uma polifonia de coral de tradição minhota. Metade das cançōes foi escrita para Fernão Mentes?, peça inspirada na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, e encenada por Hélder Costa para A Barraca. Tal como Por Este Rio Acima, de Fausto. Há acasos que não podem ser coincidência.
Como se Fora Seu Filho foi gravado por José Fortes, o melhor técnico de então, e beneficiou de condiçōes técnicas superiores aos discos anteriores. José Afonso ainda teve forças para levar a nau a bom porto e superar as limitaçōes físicas com uma ousadia estilística coerente com o desejo de esgrimir com o rótulo cansativo de “cantor de intervenção”.
A consciência do fim estava no pensamento de José Afonso mas os limites físicos não detêm a coragem e bravura. Em vésperas de se confrontar com a partida, deixou um testemunho vital de uma enorme perspicácia de raciocínio e extroversão artística que deixou marca em contemporâneos como Manuel João Vieira, B Fachada, A Garota Não e Ana Lua Caiano. Se a reedição de Como se Fora Seu Filho contribuir para o reconhecimento tardio de um disco essencial no cânone Afonsino, e para as afinidades da música portuguesa, a formiga sobreviveu em sentido contrário.
Reedições e memórias revisitadas
Emahoy Tsege Mariam Gebru played by Maya Dunietz & String Ensemble, Live in Paris
A sensação de ver a água a correr da nascente, transparente e cristalina, é uma das mais próximas da vida no seu estado mais puro e desinteressado. Há alguns anos, a pianista Maya Dunietz decidiu honrar a memória da amiga Emahoy Tsege Mariam Gebru, compositora e freira etíope que ao longo de uma vida sacra de 99 anos, fundiu religiosidade, treino clássico e uma personalidade ímpar, fruto dessa mesma vivência. A gravação ao vivo é um pretexto para algo maior e inexplicável. Peças monumentais que desafiam o texto e a justificação vêm de um silêncio estremecente para transmitir uma luz natural superior. Há momentos raros em que a música se aproxima do estado mais sólido de fé. Este é um deles.
Music For A Revolution Vol 1: Guinea’s Syliphone Recording Label
A construção europeia da história dos países colonizados está repleta de equívocos próprios das relaçōes de poder e servidão. Recolhas como esta da Guiné francesa demonstram por que se deve combater as falsas percepções da estaticidade étnica. A recolha (1967 - 1973) tem mais de uma década sobre a independência votada em 1958. O povo escolheu a autonomia territorial, em vez da nova Constituição francesa e o governo de De Gaulle retaliou. Impôs sançōes como a retirada de toda assistência económica. Em desespero de causa, o líder Sékou Touré respondeu com um programa cultural denominado authenticité, de redefinição da identidade guineense a partir das suas bases culturas. Nasceram as orchestres, com secçōes de metais, guitarras electrificadas e percussōes afro-cubanas. Como sempre, a música respondeu aos factos e expôs um território em metamorfose pós-colonial. Music For A Revolution Vol. 1: Guinea’s Syliphone Recording Label (1967–1973) reporta a explosão musical de uma encomenda social. Exilada na África do Sul e posteriormente nos EUA, a cantora Miriam Makeba fundiu a kora com o universalismo do jazz na luminosa Solo Quintett do Myriam’s Quintette. Ka Noutea, de Pivi & Les Balladins, um manifesto pela coragem, é contaminada pelos blues. N'Fa, de fazer chorar as pedras da calçada, recebe visita surpresa do fado, mas são cançōes de elã cubano como ...Miri Magnin que transmitem o clima jubilante da revolução. Porque a postura despótica de Touré consentia a censura e silenciava os horrores ditatoriais.
Jeff Parker - The New Breed (IA11 Edition)
Irreversible Entanglements - Irreversible Entanglements (IA11 Edition)
Carlos Niño & Miguel Atwood-Ferguson - Chicago Waves (IA11 Edition)
A importância da International Anthem não se mede pela antiguidade. Em onze anos, o que a editora de Chicago já fez pela transmutação do jazz excede o tempo de vida e caminha para ser um marco cultural universalista do som vibrante de uma cidade. Uma maternidade de alguma da música mais desafiante dos últimos anos, que agora refaz a cama. Das três reediçōes apresentadas, The New Breed adquire um papel fundacional no período madrugador em que acontecer. Jeff Parker começou por interessar-se pela processo de construção civil do hip-hop, ao trabalhar com samples, e juntou-lhe a mestria improvisacional do combo formado com Josh Johnson, Paul Bryan e Jamire Williams. Give The Drummer Some, ouve-se ao longe em Get Dressed - James Brown não desdenharia um instrumental assim à medida das suas ancas. Ao reinventar-se, sem abdicar da sabedoria acumulada, incitou um novo rumo para a International Anthem. E o resto são a história de álbuns como o afroespiritualismo dos Irreversible Entanglements, essenciais para o reencontro entre jazz, vanguarda filosófica e uma América negra debaixo de fogo, em 2017, e o diálogo profícuo, proporcionado pelo encontro no clássico do futuro Universal Beings de Makaya McMcraven, entre Carlos Niño & Miguel Atwood-Ferguson. Os dois em queda livre, sem corda, em provocação constante do espaço infinito, a mover o ar até a respiração renunciar.
Rafael Toral - Sound Mind Sound Body e Wave Field
Um par de reediçōes em princípio suscitado pelos espasmos justificados em torno de Spectral Evolution (álbum nacional de 2024 para a Mesa de Mistura). Editado em 1994 pela AnAnAnA, Sound Mind Sound Body era uma ilha desfasada da produção nacional. Depois de ter integrado os Pop Dell’Arte no despertar do sonho de Free Pop e Illogik Plastik (tem mão invisível no exercício magistral de corte e colagem da canção titular), já não reintegrou a unidade móvel liderada por João Peste no regresso deste de Londres. Sound Mind Sound Body não é um primor de inovação, sobretudo se posto ao lado de bíblias como os discos de Robert Fripp com Brian Eno, mas a costura é sincera na intenção de alargar o campo sonoro. Portugal era demasiado pequeno para o silêncio activo de Rafael Toral. Escutamo-lo antes de mais na busca incessante por lugares por inventar, como se exigisse mais de si em cada gesto repetitivo. Enquanto nesta introdução, a limpidez é aprimorada, o contacto primordial com as torrentes do rock é explorado em Wave Field, de 1998. Segundo o próprio, uma experiência acústica tenebrosa enquanto assistia ao concerto dos Buzzcocks na primeira parte dos Nirvana em Cascais activou um fascínio pela ressonância semelhante ao da peça I am Sitting in a Room, do compositor Alvin Lucier. Toral emulou a destilação em música ambiental mas a abstracção nem nega a energia eléctrica nem a onda espectral.
Coil - Black Antlers
Mudou a década, o século, o milénio e os Coil. Uma revolução por minuto a cada seis meses em CD-r de tiragem muito limitada, disponíveis em concertos. Um desses objectos resgatados ao desconhecido generalizado é Black Antlers, de 2004. Predomina o ritmo, um perpétuo de manipulação sonora e mutação constante. Quem conhece pelo menos alguns parcelas da sua obra, sabe que é a música indutora de dúvida, sobressalto e catarse. Esse estado de desnorte, de dúvida entre o real fantasiado e a transcendência induzida comunica desde a psique inconsciente. Vinte anos depois de descender de origem incerta, o refluxo é outro. A verdade ainda tem fundo de maneia? Ou seremos figurantes transitórios de uma teia efabulada?
Excelente análise sobre José Afonso! Gostei da forma como realças a “revolução até às cordas”. Vai além da mensagem política, tem toda a carga emocional e musical que ele conseguia transmitir. Seria óptimo ler mais sobre a sua experiência em Moçambique como professor, esse contacto com África moldou a visão anti‑colonial de Zeca e explica muito da intensidade ética da sua música, e influência melódica e rítmica Fica aqui o desafio. Obrigado por este texto: trouxe nuances importantes a um dos nossos maiores símbolos culturais, pelo menos acredito eu.