À solta num bilhete de ida e volta
Uma ronda pelas reediçōes de verão antes do comboio voltar a sair para novas estaçōes
The Police - Synchronicity 40th Anniversary (1983)
“Esta canção é sobre manipulação de massas”, afirma Sting ao público de Oakland, antes de Murder By Numbers, manifesto anti-pop de compasso jazzístico. Em Synchronicity, os Police são os mesmos Sting, Andy Summers e Stewart Copeland mas muito diferentes da new wave colorida e refrigerante de Outlandos d'Amour (1978), Reggatta de Blanc (1979) e Zenyatta Mondatta (1980).
Os sinais de mudança já transpareciam do melodramático Ghost in the Machine (1981). A gravidade de singles como Invisible Sun e Spirits in the Material World cessava lentamente os tons da pop garrida. Synchronicity (1983) podia ter suscitado um novo capítulo mas foi o último suspiro de uma história tão improvável como bem sucedida. Foi bom enquanto durou e, por isso, teve um fim.
Um baterista americano (Stewart Copeland) vindo de uma banda de rock progressivo Curved Air), um guitarrista (Andy Summers) dez anos mais velho com currículo nos Animals e nos Soft Machine, e um ex-professor vocacionado para o jazz (Sting) tinham tantas probabilidades de resultar em conjunto como o Leicester de ser campeão…E no entanto, os Police foram um caso ímpar de popularidade na new wave, talvez por isso mais amados que reconhecidos. Desequilíbrio que a colossal reedição de Synchronicity desmistifica até na postura de sair por cima quando já não havia química entre os três. O magnetismo e influência de Sting neutralizou o papel criativo de Copeland e Summers e, quer as conflituosas sessōes de gravação, quer a posterior digressão, já com as antenas de Sting voltadas para um caminho a solo, acentuaram inevitavelmente a cisão entre os três.
Um ano antes, a erosão começava dentro de portas, nos aposentos de Sting, com a separação da actriz Francis Tomelty logo após o nascimento da segunda filha do casal. A triangulação Every Breath You Take, Wrapped Around Your Finger e King of Pain faz o luto da relação e é central no disco mas a ruptura de Synchronicity está para além da crise emocional do vocalista. Basta reconhecer as pegadas tribais de Walking In Your Footsteps (um prenúncio das rotas globais de Sting), o afrobeat de Miss Gradenko, a fúria de Synchronicity II, a pedra de gelo jazzy no copo de whiskey de King of Pain, a aridez de Tea In Sahara e o compasso jazzístico da fabulosa Murder By Numbers para ler o divórcio dos anos formativos da pop. E em vez do reggae ocidental dos álbuns anteriores, os Police assumem uma identidade art-pop mais próxima da vanguarda idealizada por Peter Gabriel na época.
O que podia servir de eficaz sessão de terapia individual ao serviço do grupo, foi um segundo divórcio de Sting. Quando chegou o momento de gravar o álbum, o líder do grupo decretou o fim da democracia interna, trouxe as maquetas quase finalizadas e deixou pouca margem para guitarrista e baterista sincronizarem. De acordo com Hugh Padgham, em entrevista ao Sound On Sound, as discussōes tomaram proporçōes físicas. Nos estúdios AIR, na dionisíaca ilha caribenha de Montserrat, o produtor pensou em abandonar o leme do barco e cançōes como Every Breath You Take só foram terminadas graças a laboriosos exercícios de overdub.
A telenovela já não era segredo mas os rascunhos desvendados na reedição de quase seis horas são uma revelação. A versão Every Bomb You Make é um curioso desvelo, mas há casos de versōes superiores como a maqueta de Wrapped Around Your Finger, chefiada por sintetizadores, ou o esboço a óleo de Every Breath You Take. As horas de maquetas permitem apreciar a evolução das cançōes e imaginar outros desfechos se o vocalista não tivesse tomado o controlo criativo. Se em estúdio, Synchronicity é o prelúdio de Sting a solo, em palco - o quinto e sexto discos - nada fica da inimizade, onde cada um gravou na sua sala, e a segurança do trio é respondida em apoteótica aclamação.
Os Police enquanto colectivo estavam finitos mas não enterrados. Dez milhōes de unidades vendidas, correspondentes a oito platinas depois - um feito Beatlesco -, tomara todos as disfuncionalidades serem tão frutuosas e as tensōes internas produzirem sombras tão pairantes. Por magia negra, Synchronicity interrompeu a maratona de Thriller de Michael Jackson na liderança das tabelas e passou 17 semanas em número um. A digressão elevou-os ao estatuto de estádio, no Reino Unido e nos EUA. Mesmo em fase de separação, a comunhão de bens fazia dos Police a banda mais popular da temporada. Após o concerto no Estádio Shea, em Nova Iorque, Sting sentenciou o fim: “não vamos fazer melhor do que isto. Devíamos parar”, comentou com Andy Summers. E por aí ficaram. Many miles away como no fim em boato de Synchronicity II.
Resumo
Disco 1 | Gravação restaurada a partir das fitas originais;
Disco 2 | 18 cançōes entre as quais os lados B de 7” e 12”, além de 11 cançōes não-incluídas no álbum, disponíveis em CD pela primeira vez;
Disco 3 e 4 | Takes alternativos de todas as cançōes Synchronicity, até agora inéditos; uma versão inicial de Goodbye Tomorrow (renomeada de Someone To Talk To) de Andy Summers; a maqueta de I’m Blind de Stewart Copeland, reutilizada como Brothers on Wheels para a banda sonora de Juventude inquieta (Rumble Fish) de Francis Ford Coppola; um primeiro take inédito de Truth Hits Everybody (de Outlandos d’Amour e 1978); e versōes de Three Steps To Heaven de Eddie Cochran e Rock and Roll Music de Chuck Berry;
Disco 5 e 6 | 19 gravaçōes ao vivo - todas inéditas - captadas a 10 de setembro de 1983 no Coliseu de Oakland.
Moor Mother - The Great Bailout (Deluxe) (2024)
Três lanças completam o franco-atirador The Great Bailout. Impiedosa, Moor Mother questiona o branqueamento europeu da história da descolonização. Em God Save The Queen, Portugal é chamado a tribunal. Who build death like this, questiona como quem assume em tribunal a voz dos ancestrais mortos ou subjugados pelos colonos. Dor que vem de dentro com o saber de quem estudou e inquiriu a história, e continua sem ver a página virar.
keiyaA - Forever, Ya Girl (2020)
Típico objecto pandémico, sem respostas definitivas para as perguntas em assalto, é ressuscitado quatro verōes depois de ter chamado à atenção pela XL Recordings. As ligaçôes entre o hip-hop lisérgico, o balanço idiossincrático de Erykah Badu e o treino jazzístico degeneram sempre num caos calmo, indefinido e exploratório. Não são bem cançōes, são pequenas ensaios de ciência e poesia com vida própria de ânsia e desejo. Quarenta e oito meses depois, esta forma de desconstrução, defendida por pares como Liv.e e Sudan Archives, parece obra de artesã, esquecida e desvalidada pelo algoritmo, mas continua a suscitar um campo infinito de possibilidades e liberdades.
Spoon - They Want My Soul (2014)
Como ser uma banda de rock com o sangue da Motown? Os Spoon nunca desistiram de perseguir a perfeição de Emotional Rescue dos Rolling Stones a partir de um T1 em Brooklyn. Em They Want My Soul, a soul inflama o comando vocal de Britt Daniel, renovado após o romance paralelo Divine Fits, em Inside Out e na canção titular - a soul a ser mesmo soul. O perímetro indie dos Spoon nunca se fecha num quadrado (ex. a viciante Rent I Pay). É terreno permeável a conexōes e experiências, sem se desviar demasiado dos manuais rock'n'roll, e a produção de Dave Fridmann (Flaming Lips) só veio acentuar a meticulosidade e o rigor formal. Os rascunhos da reedição vêm enriquecer o álbum. Em estado bruto, estas cançōes já eram de primeira apanha e apesar do tratamento de estúdio, já estavam encaminhada para ver a luz. Ao oitavo álbum, a renascença dos Spoon.
Sleaford Mods - Divide & Exit (2014)
Há dez anos, o mundo parecia um lugar mais saudável, seguro e progressista em que o fantasma da guerra era cenário de videojogos. Quão enganados estávamos! Bem, todos não porque antes de o activismo sair à rua (e de se transformar numa hashtag), os Sleaford Mods já alertavam para a queda do sonho com raiva nos dentes e angústia autenticada. Música da classe operária que se posicionava do lado do agredido - punk com caixas de ritmos e incontinência verbal. Os Sleaford Mods dizem muito com poucos recursos porque têm em Jason Williamson uma caneta com turbo. Divide & Exit foi decisivo não só para a afirmação do grupo como também para relançar a música de protesto, ausente da ordem desses dias. A reedição devolve as cançōes remasterizadas com dois inéditos, e ironicamente, simboliza um prenúncio da morte da civilização.
Dinosaur Jr. - Farm (2009)
Em 2007, os Dinosaur Jr. ressurgiam com um fabuloso primeiro álbum em dez anos e davam um concerto inesquecível para os poucos que os quiseram ver num Sudoeste em infantilização. Nada mudava em Farm, dois anos depois. As torrentes de guitarras, os acordes abertos, os riffs golpeados, os solos intermináveis e as melodias clássicas de J Mascis persistiam como a pegada dos Dino e apesar da marca pop descomplicada, nunca soa a um álbum sobreproduzido ou maquilhado. A reedição em vinil soma-lhe quatro bombons até agora apenas disponíveis numa edição dupla limitada.
Death Cab For Cutie - Transatlanticism (2003)
Quando os versos So this is the new year/And I don't feel any different descaíram da neura de Ben Gibbard para a depressão colectiva de 1 de janeiro, New Year's Day dos U2 tinha exactamente vinte anos. A idade contada por Transatlanticism em outubro do ano passado. Como tantos outros clássicos, o álbum da vida dos Death Cab For Cutie nasceu das tensōes acumuladas entre os membros da banda. No ano anterior, Gibbard tinha-se dedicado aos Postal Service no magnífico Give Up. As caixas de ritmos usadas nas maquetas, conhecidas da reedição, são indícios do parto electro-pop destas cançōes mas se há casos em que a produção desvirtua a autenticidade, em Transatlanticism não há gorduras. Tudo tem a medida certa. As cançōes têm coração grande sem precisarem de ser grandiosas. A escrita de Ben Gibbard está no cume das suas capacidades e a banda no auge da superação, como que reagindo à erosão interna provocada pelo desgaste da estrada. Transatlanticism é um portento de fragilidade: expōe-na como radiografia sem a explorar como um sistema lacrimal. Um álbum próximo da perfeição formal que expande horizontes (como o licenciamento das cançōes para a série The O.C.) sem abusar do açúcar. Sobreviveu sem rugas esta bíblia indie de principio de século.
Transatlanticism é revisitado na íntegra no Kalorama a 30 de agosto
Velocity Girl - UltraCopacetic (Copacetic Remixed and Expanded) (1993)
UltraCopacetic só podia pertencer à classe vingada dos 90, ainda o com motor cheio de ruído e sujidade shoegaze, mas já com a alma sitiada na pop sobretudo através da vocalista Sarah Shannon a anuncia os ventos britpop dos anos posteriores. Apesar de serem americanos naturais de Washington, os Velocity Girl, que resgataram o nome ao principal single da era de guitarras dos Primal Scream quando estes ainda queriam ser os R.E.M. escoceses, confundem-se com bandas inglesas como as Lush ou irlandesas como os Cranberries na sua respeitável alvorada quimérica. Os Velocity Girl eram titulares da selecção de esperanças, e a Sub Pop detectou-lhes um futuro promissor, mas os resultados artísticos aquém das expectativas de UltraCopacetic fizeram-no um menir de Obelix, acelerando o princípio do fim. A parca experiência de estúdio ditou o desfecho do álbum mas o retratamento do som na nova versão corrige pecados originais sem apagar as marcas deliciosas do tempo. Depois de descobertas as fitas originais no ano passado, Copacetic ganha Ultra vida e uma nova aura. Não é o melhor novo velho álbum de guitarras do ano - esse continua na posse dos Majesty Crush - mas repōe alguma justiça à história e transmite uma autenticidade quase infantil irreprodutível em filtros de TikTok.
King Sunny Adé - Aura (1984)
Objecto importante para se compreender a evolução da música pan-africana nos anos 80, e uma óptima referência para se perceber como a identidade de colectivos actuais como Ibibio Sound Machine não é nova. Na época, King Sunny Adé era o astro musical da Nigéria - com as devidas diferenças, o Burna Boy de um tempo fecundo em investigação e revelação. Os african beats de Aura contêm uma riqueza polírritmica e melódica que fala por um tempo de descoberta ocidental das músicas de um continente demasiado abonado em música para ser subestimado pelos jogos políticos de poder. Disco repleto de camadas e pormenores, revela um cuidado com o estúdio que desmistifica o primitivismo tribal. Trinta anos depois, está vivo.
Reedição Cherry Records/disponível na Flur
Suzanne Ciani - Buchla Concert At Galeria Bonino New York April 1974
Do ponto de vista histórico, Buchla Concert At Galeria Bonino New York April 1974 é a primeira performance ao vivo de Suzanne Ciani mas a relação de causa-efeito está muito para além do facto. Trata-se de um manifesto artístico, de um portal a abrir-se para um novo mundo de hipóteses sonoras e cromáticas, possível graças à espantosa intuição da compositora - uma pioneira nem sempre reconhecida como tal. Percebe-se que se trata de uma exploração quase cega sem medo do desconhecido. A efervescência dos sintetizadores ainda chega em bruto, sem condescendência ou tratamento, mas é garantia de um genuíno desejo de cumprir novos destinos, num período de grande fertilidade da vanguarda novaiorquina. Criavam-se pontes entre as artes e os seus obreiros com consequências até hoje.
Sandy Harless - Songs (1973)
Do mesmo poço folk de Joni Mitchell e Sandy Deny, Songs é acto única na discografia de Sandy Harless. As cançōes seguem o padrão comum da música pastoral: voz baixa, melodias volúveis e palavras claras, ou seja o estritamente essencial para acontecer música. A nuance, neste caso, está nas permissōes. O álbum foi financiado por um negócio de criação de 27 peixes de aquário. Passou despercebido, mais de 50 anos depois voltou à rede.