Foto: Slow J
Fechar os olhos na sexta à noite depois de um serão de sonhos e acordar 48 horas depois nas mesmas águas de março foi o equivalente a ser pisado por uma manada de elefantes durante esse intervalo de reflexão e acto. Sociologicamente, não deve haver muitas experiências tão extremas numa baliza temporal tão curta. Primeiro o céu no concerto memorável de Slow J, depois o inferno no resultado eleitoral em que o grande vencedor da noite foi uma força anti-democrática. Esta montanha-russa não se ficou pelas tangentes. Tão depressa projectou superação individual e esperança colectiva como desceu à terra ao nível das gengivas.
Como explicar um divórcio tão profundo de factos? Como resolver a encruzilhada entre a crença de perto de 40 mil almas a trazer na ponta de língua versos como “eu tenho a história na minha posse” ou “pensas na cor da pele como a capilar/nós vimos do futuro p'a lhes ensina/essa é a razão do nosso som/combinações de cada raça e cada tom”, e mais de um milhão de portugueses a deixar uma cruz no reverso destas profecias? Que linha existe entre o país que exulta com a sua música e o país que despreza a sua memória? Portugal e a música portuguesa são o mesmo e o seu contrário? Até as costas mais largas têm nós.
As ciências humanas caracterizaram-se por não ser exactas. Estamos no campo da dúvida a atirar possibilidades. Talvez possamos partir de duas ilaçōes importantes: Slow J encabeça um movimento de construção e expansão a partir de uma identidade local, com múltiplas possibilidades, diferentes personagens e discursos, unidos por uma mesma convicção. Num mundo global, de informação acessível e partilha de conhecimento, estes actores posicionam-se de dentro para fora, sem complexos de inferioridade. É a partir da aclamação entre portas que se apuram estratégias para as ligas europas e taças intercontinentais. Talvez, e isso pode ser uma novidade, já sem o signo do exotismo do fado, do folclore ou da exportação de Madredeus ou Buraka Som Sistema. É música de identidade portuguesa com lugar no grande mundo. A chegada de Afro Fado aos dez álbuns mais ouvidos no mundo, em dia de estreia, é um sinal. Pequeno mas simbólico.
Na política, a esperança desapareceu. E os números espelham-no. Só dois partidos obtiveram um bom resultado nas Legislativas. Um deles, o Livre, tem um líder demasiado inteligente e consciente das consequências do enfraquecimento da esquerda para brindar aos quatro deputados - uma conquista sim, mas minoritária. O outro recebeu um voto de confiança vindo do protesto. Um milhão e cem mil votos foram distribuídos por um projecto de destruição da democracia onde o mesmo e o seu contrário são croissants ao pequeno-almoço. Da música vem alento, da política só frustração.
Por outro lado, a música hoje diz menos sobre quem a ouve do que noutras épocas de crispação ideológica. Instituiu-se que tudo se resolve ao nível dos afectos. Que as cançōes são só legendas da realidade. Que as palavras são peças decorativas e não devem questionar-nos. Que, no fundo, a música é uma experiência meramente emocional, individual e, de preferência, neutra. Comida de conforto. Talvez no novo tribalismo pop, racial, ambiental, feminista ou preocupado coma identidade de género não se sinta tanto o ascetismo. Pelo contrário, há quem chegue às cançōes através da causa e não o inverso. Não se pode dizer que Slow J e o guião do Afro Fado se abstenham desta problemática ancestral que o Chega em Portugal, e o avanço da extrema-direita no mundo, só vieram inflamar com lemas como “vai para a tua terra” ou “make america great again”.
A música de Slow J não é panfletária nem tem meios-campos políticos. Não é de esquerda nem de direita. Nem precisa para ser profundamente politizada na intenção assumida de projectar uma grandeza medida em identidade cultural ambiciosa, ou no gesto de aproximação entre crenças, credos, afro-descendentes, fadistas ou desfados para derrubar muros. Portugal precisava de uma limpeza de fantasmas como a assistida na quinta e sexta-feira. Não deve ter havido alma naquele pavilhão a não querer abraçar o próximo, amigo ou desconhecido. “Acreditem nos vossos sonhos e nos dos vossos amigos”. Missão cumprida com distinção.
É crível que a esmagadora maioria das pessoas, e tantas outras que desejavam ter feito parte daquela família à volta da mesa, não acreditem em balelas populistas nem em falsa informação sobre os imigrantes, e que portanto não se cheguem à extremidade do flanco direito. E certamente do 1,1 milhão de votantes no Chega nem todos são racistas, xenófobos ou fascistas. Muitos estão descontentes com os salários, com a falta de um médico de família, com a falta de oferta nocturna de transportes públicos, ou com a subida em flecha das rendas, e são vítimas da falsa democracia do algoritmo. Provalmente, o Chega foi o único partido que lhes chegou, através das redes e de mensagens com falsas verdades e manipulaçōes, mas que importam os factos ao populismo? O maior paradoxo destas eleiçōes é o partido que detesta a democracia ser o maior responsável pela quebra na abstenção.
Algo se perdeu então entre o paraíso idealizado por Slow J e o terror das eleiçōes, que tem no Chega o maior parasita de um sistema fragilizado pela base, isto é os baixos rendimentos. O problema não está, como noutros tempos, na dimensão popular. Perto de 40 mil bilhetes vendidos são apenas a impressão digital ou a tinta de um carinho nutrido por Slow J como actor principal da década digital e figura transversal num quadro de caótica fragmentação. É provável que o tempo traga respostas mais precisas a um contraste tão profundo. É desejável que a música não desenhe apenas paisagens, mas crie também rupturas. É tudo uma questão de escuta activa ou passiva. E que a política possa reaprender a Também Sonhar.