Na minha rede de amigos, conhecidos e simpáticos estranhos, acontecem coisas como o novo single de Benjamim ser partilhado no Instagram a seguir a um jacto de lama da deputada Rita Matias do Chega, ou um rapper e produtor, negro, estudante de Engenharia Bioquímica, com pensamento esclarecido e valores avançados, ouvinte da Griselda e investigador das gavetas de J Dilla, partilhar as atoardas da dita senhora. O discurso pode ser importado, irresponsável e manipulador, desdiz-se a si mesmo, mas tem o poder de comunicar com o antagónico. Passa e faz efeito em indecisos, descrentes e ascéticos. Estranho mas verdade. Não acontece só comigo, mas deixa-me estupefacto.
Como interpretar uma contradição tão profunda entre o apreço musical por alguém assumidamente militante e com intervenção política no Bloco de Esquerda e o reconhecimento numa intervenção de populismo autofágico do Chega? Como explicar que um afrodescendente negro, sócio com as quotas sempre em dia da cultura hip-hop se reveja numa dialéctica tão primária e, paradoxalmente, inimiga de si mesmo? Da parte da ciência política há quem cuide todos os dias fazendo o que o partido anti-democrático não faz: analisar os factos e tirar conclusōes. No discurso do Chega, só importam as consequências. As causas são uma tampa de esgoto na estrada. Só servem para contornar porque quando abrem cheiram muito mal.
Na cultura do estilhaço, a obra nem sempre tem uma tela. Entre os muitos ouvintes de Benjamim, uma boa parcela pode não conhecer as suas convicçōes ideológicas, mas também não é preciso ser doutorado em Harvard para pressentir a inclinação da caneta. Nem o próprio esconde. A vida social de um escarro não é um voto no Chega. Como a partilha de uma expedição de Benjamim às Berlengas não é uma cruz em Mariana Mortágua, mas no mesmo acto de demonstração pública de apreciação por uma intervenção na AR ou pela odisseia viagem sintetizada às Berlengas, algo se perde pelo meio.
No que toca à música, a dimensão afectiva está muito desencontrada de um espaço de reflexão e debate que, por implicar opçōes e escolhas, é conflituoso por natureza mas gerador de pensamento e massa crítica. Se juntarmos a isto a fé absoluta no algoritmo e a morte anunciada da crítica musical, temos um divórcio perfeito. Ouvir é uma coisa, estar à escuta é outra. A banalização do acesso à música, através da multiplicação de meios e canais, é a causa do maior dos paradoxos: mais acesso tem-se repercutido em menor importância e desvalorização do sujeito em função do objecto.
A perplexidade fica ainda maior quando a música está por toda a parte no espaço público e privado: nos carros e transportes públicos, nos auriculares e nas colunas, nas televisōes, rádios e redes sociais. Há sempre um ruído, som ou ritmo a falar sozinho no Instagram, mas para que serve a música, que reflexo tem em quem somos e o que diz sobre nós? Se a sua função for apenas de legenda emocional, é um queijo sem buracos. A questão não é se a música é um fenómeno senciente. Essa é a faísca natural - quando não é, é porque alguém come gelados com a testa. A questão é se a redução da música à “lagriminha no fim”, ao coração nos comentários e ao #mood, não estará a secar a sua razão.
Era tão bom, não foi? A abreviação das consequências é como um vestido sem corpo e induz relaçōes parecidas às da auto-ajuda na literatura. Basta espreitar comunidades como a Goodread, os Booktubers os Booktokers para reparar nas semelhanças. A democratização de pontos de vista é saudável, o tom geral é compreensivo mas as leituras vêm embrulhadas em instintos primários e referências vulgares de género, como se tudo se decidisse no campo das hashtags.
Depois de décadas de hibernação e silenciamento da revolta na música popular, o que não falta nos últimos anos é música de combate. Em Portugal, não faltam exemplos d’A Garota Não aos Fado Bicha, de Prétu a Capicua, e tantos outros a usar o poder de comunicar em proveito da mudança. Uma música de protesto ressonante do seu tempo saiu à rua, como provavelmente não se ouvia desde os anos 80, mas talvez a percepção desse espaço heterogéneo de intervenção sociopolítica seja menor do que a projecção de alguns dos seus intérpretes. Quiçá restrito a um nicho parlamentar, vocal mas residual.
A música vai ser sempre emoção, mas é a consciência que transforma o sentimento em conhecimento. Se não interrogar, só serve para efeitos práticos de consumo e funcionalidade. É um champô. A realidade é crua. Nas tempestades políticas que estamos a atravessar, há uma nova vaga de comentadores políticos filhos do algoritmo e até o humor, de forma quase sempre ligeira e inconsequente, consegue produzir alguns estragos. A música foi tão esvaziada do poder de desassossegar que mesmo acordada, não toca como despertador colectivo. Talvez isso explique que os extremos se toquem sem fazer chispa. Serão os tais indecisos?