Slow J na MEO Arena: Maioria absoluta
A celebração colectiva da transformação individual
Os hinos de Slow J falam bastante sobre sonhos. Também Sonhar é literal. Imagina, de Frankieontheguitar com o convidado Ivandro, é um sonho acordado. Antes de Terra, do novo Afro Fado, dirigiu-se a uma plateia rendida desde o segundo em que o concerto foi anunciado, e a segunda data foi aberta. “Acreditem nos vossos sonhos e nos dos vossos amigos”, apelou após ter revisitado a história de uma Cristalina emoldurada a sépia que, em 2015, nasceu no quarto apenas com um portátil.
Na terra dos sonhos, como não acreditar no poder transformador da música durante um concerto cantado em coro do palco até ao último camarote desde a primeira sílaba até à última gota de suor? Como olhar para o homem que faz “ao Rui Veloso o que o Ronaldo fez com o Figo” e duvidar da profecia? “Hoje é o dia”, repetiu e insistiu. Uma celebração colectiva do poder do individual. De Slow J, convidados e público. 8 de março de 2024, dia internacional da mulher, a data inicialmente escolhida para a desbunda emocional, mas foram tantos milhares a querer juntar-se que a festa mereceu um bis.
A história já estava escrita. Faltava tirá-la do bilhete. Se um MEO Arena já é um troféu na galeria de que poucos se podem orgulhar, quanto mais dois e tão vorazmente lotados. Há pouco mais de 15 anos (10 de novembro de 2007), a página de história dos Da Weasel naquela mesma sala demorava a lotar. A resistência natural do país à sua música, muito sentida nessa época, inverteu-se. Os grandes ídolos geracionais de hoje são próximos, não vivem em Calabasas nem andam de jacto. Moram no peito. Viajam no coração através das cançōes.
Na pluralidade de um período fértil em música portuguesa transformadora, Slow J é sobretudo um caso ímpar de transversalidade, justificada pela transparência nas convicçōes, humanidade nas intençōes, exigência no processo criativo e por tocar em diferentes vértices. É modelo de ética artística na melhor escola de José Afonso, José Mário Branco, Carlos Paredes ou Sam The Kid, é lento de nome e ritmo, silencioso na postura mas tem o público rendido, por obra e graça da música. Para toda a regra, há uma excepção: é ele. Slow J fala por João Batista Coelho e letras como as de Where U@ destrancam as portas do laboratório. “Diz-me se eu não tou no palco/Tu achas que eu não tou no booth”, projecta consciente das expectativas existentes do outro lado da solidão.
É o segundo andamento de um concerto iniciado com Tata, a emotiva homenagem ao pai angolano, e a primeira canção acolhida pela rádio de Vila Real a Vila Real de Santo António e ilhas. Impressionante, não é? A primeira fotografia do palco é a cenografia. Três estruturas em forma de cubo, com projecçōes vídeo alusivas sobretudo ao imaginário de Afro Fado, e uma banda com duas guitarras, uma eléctrica, outra portuguesa, um baterista de pé, teclas e um baixo.
A produção é ambiciosa como nos fomos habituando a ver em concertos e festivais na transição da cultura de bandas para a necessidade de os artistas solo conceptualizarem um espectáculo a partir da sua individualidade. Slow J fá-lo sem nunca perder a naturalidade. Há um crescimento face a outros momentos do seu fulgurante percurso - como quando se apresentou sozinho em palco no Super Bock em Stock na apresentação de You Are Forgiven, mas continua a ser um rapaz no recreio a desafiar os amigos para jogar. “Uma das pessoas mais especiais que já conheci”, confessou Papillon no final de Fam, uma das mais efusivas do seu generoso património e a prova cabal de que o afro assumido em Afro Fado não é ruptura, é aceitação e valorização - bastaria retroceder à Casa de Art of Slowing Down, a grande ausente deste concerto, para reconhecer o óbvio.
O Slow J de Afro Fado, o coração desta noite de consagração, faz do hip-hop um processo. É a ferramenta primordial do engenho criativo mas em 2024 age sobretudo um meio de conexão com outras famílias: o afro, o fado, a soul e até o rock - a paixão assumida por bandas como os Imagine Dragons está lá na estridência de Vida Boa e no fogo crepitante de Fome. Mas a roupa é essencialmente acústica. O diálogo de guitarras entre Djodje Almeida (eléctrica) e Rui Poço (portuguesa) é o espelho reflector do afro e do fado, representados na capa do álbum por Eusébio e Amália Rodrigues. Ícones retratados pela sua grandeza, superação e conexão.
A 17 de julho de 2016, estávamos ali naquela mesma sala a levitar durante o recital de Kendrick Lamar e a acreditar no poder transformador da música. Nessa tarde, um tal de Slow J corria o palco como uma mola e deixava-nos boquiabertos. O hip-hop estava a passar dos limites, dizia-nos a conjuntura global, confirmava um concerto extasiante, reproduzido na plateia, como se K.Dot fosse voz colectiva sem necessidade de microfone, e indiciava uma nova vaga do movimento local de onde Slow J partia para uma Vida Boa. Naquele final de tarde de verão, ficou nitído tratar-se de alguém especial, diferente dos demais. Irónico pensar como essa primeira revelação, ainda com as cançōes de The Free Food Tape no bolso e as de Art of Slowing Down a saírem da toca, ocorreu dez dias depois do golo do Éder.
É um daqueles acasos cósmicos que a história só pode ter planeado. Oito anos e quatro escalas depois naquele perímetro - 2016, em 2017 arrebatador ali ao lado no mesmo SBSR, 2018 já entre as paredes da Altice Arena a fazer o hat-trick, e 2019 como convidado de Richie Campbell em Water - , chegou a maioria absoluta. A noite do discurso vitorioso. Slow J tem tudo o que não se vislumbra na política: pacificação, unanimidade na liderança e um projecto de futuro para a música portuguesa.
Sim, a noite foi encabeçada por ele mas a parte substancial pertence a um todo maior. A uma banda no tempo e lugar certos, aos convidados Papillon, Ivandro, Richie Campbell (a retribuição de novo em Water), Teresa Salgueiro (em Nascidos e Criados), Gson (a fechar em Origami e 3,14 sem Sam The Kid) e os Góias (os irmãos Henrique e António Carvalha) “os verdadeiros arquitectos” de Afro Fado - o Redefiniçōes de Slow J na aclamação, projecção de uma identidade discursiva e na latência entre a luminosidade de Tata, a adrenalina de Where U@ e a tensão de Cor da Pele. Quem ouviu esse álbum dos Da Weasel imune a platinas sabe que atrás do sorriso bem rasgado de Re-Tratamento chove por todo o lado. E tudo fez sentido na primeira parte do soberbo Eu.clides. Fechamos os olhos a estamos a ouvir a Cabo Verde, o sul de Espanha, a profundidade da soul, uma escrita de humor, amor e política (Tê Menos 1) com ginga e pop. Perfeito.
Ao terceiro capítulo, o disco riscado da poderosa Lágrimas e um canto solitário de Teu Eternamente já batem na saudade. Cinco anos de imaginário colectivo depois, toda a gente as sabe de cor. Saberão a geografia das entranhas? É provável que sim. O silêncio digital de Slow J é um dos veículos do seu grito. Se queremos decifrar o enredo, as palavras são as pistas. Tudo o que é escrito, o coração sentiu. Tudo o que é dito, a cabeça reflectiu. Uma “primeira motivação pa' me tornar quem eu quiser ser” feita declaração de intençōes, empoderada por tambores encharcados em notas de guitarra que não precisam de falar para dizer tudo.
Sara Tavares estaria no MEO Arena para arranhar as costas de Também Sonhar se não tivesse partido na semana de Afro Fado. Perdeu-se a doçura mas ficou a “Maria capaz de sonhar até a ultima gota”. O segredo de ser “para sempre” está em plantar a semente. A árvore deu fruto. Sonhar compensou. É uma noite para a eternidade de muitas solidōes e para a necessidade de muitas esperanças mas a vertigem do voo ainda não pousou. “Toda a grandeza ainda é sinal/da minha insignificância”. Os sonhos e profecias de Slow J pedem o mundo. “Um dia eu vou tomar a banda de assalto/'Pa matar saudade/'Pa gente voltar/Depois eu vou tomar o mundo de assalto/Que eu não 'tou cansado/Só 'tou a lhes mostrar.
"É uma noite para a eternidade de muitas solidōes" e ficaria tudo dito mas. Acho que o cariz não político da forma é desmentido pelo conteúdo, que pacifica e ao mesmo tempo que descontrolado mostra emoções. Como canta, grita, pula e nos arrepia uma, outra e quarenta vezes até chorarmos ao sentir aquele vazio tão cheio de voz, de presneça, da mentira "se morrer nem me notas" da Sara. Teu, meu, nosso eternamente.