Álbum da Semana: Charli XCX - Brat and It’s Completely Different but Also Still Brat
Antes de Kamala ser Brat e de o verde-lima ser o Pantone da estação, Brat foi tratado aqui na Mesa de Mistura como o caso pop do ano. Da previsão à ocorrência, foi um ápice servido por estamina anárquica, libertina e sentimental, com atracção pelo interdito e decoração meme. E ainda que exista uma linha a separar o risco da inovação, as receitas de Brat não se encontram na secção de congelados e pré-cozinhados. Rompem com uma previsibilidade algorítmica, essa nova ordem global da inércia e repetição, que age como grande medo invisível do desconhecido. Brat está longe de simbolizar metamorfose colectiva ou rasgo transformador, mas rompe com a saturação ao utilizar tecnologia PC Music e restituir a febre maximalista de eventos de Facebook combinados num Blackberry sem hora para voltar (Sympathy Is a Knife, a remistura à Crystal Castles de A.G. Cook com Addison Rae e a bomba atómica de 365 com Shygirl reenviam-nos para a idade da inocência das redes sociais e das madrugadas alucinantes de electro).
Charli até já tinha participado num dos grandes êxitos virais da pop de Internet - I Love It das Icona Pop - mas mais de uma década depois de ter sido um dos emblemas da "era do Soundcloud", Brat foi a palavra-passe de entrada na alta roda. Não foi preciso esperar muito para ver o núcleo de amigas famosas engrossar. De Lorde a Billie Eilish, a fila foi crescendo nos últimos meses nas remisturas de Guess e Girl, So Confusing, respectivamente. A boda do ano estava a nascer sem desaforo ou contenção. Em poucos meses, Brat alastrava em diferentes sentidos, da política americana, ao brat summer e à cultura rave.
Brat and It’s Completely Different but Also Still Brat faz queståo de não ser um álbum de remisturas - recorrentemente tratados como uma extensão de calendário ou um lado B para entrar em círculos electrónicos. É antes uma grande festa com convidados VIP, como Ariana Grande e Bon Iver, além das nomeadas, e aves raras como BB Trickz e Bladee. Como se Charli XCX quisesse fazer dos Boiler Room precedentes de Brat uma grande farra. Por vezes, fica por justificar se os motivos são apenas artísticos ou também de multiplicar relaçōes públicas, mas Brat and It’s Completely Different but Also Still Brat tem o cuidado de não se repetir e justifica a presença de cada um dos convidados. É demasiado optimismo tratá-lo como um álbum novo mas há pelo menos um exercício de pensar no quarto dos hóspedes e refazer a cama, como em I Think About All The Time com Bon Iver ou a festa Tezenis desarrumada de Guess com Billie Eilish.
A jóia da boda é a versão new age de Everything Is Romantic com Caroline Polachek, um espelho aumentado de Desire, I Want to Turn Into You. Há brincadeiras bem sucedidas como a fusão de Julian Casablancas com Owner of a Lonely Heart dos Yes. Girl, So Confusing fica muito bem na pele da Lorde e Guess tem dois minutos mais agitados do que o McVegan sem sabor de Hit Me Hard and Soft. Está justificado o parágrafo.
Recomendaçōes não-algorítmicas
Elucid - Relevator
Chegar ao fim de Revelator e não sentir um arrepio Lynchiano na espinha é não ter coração nem vista. De faca na língua, Elucid orienta-se por becos, vielas e armazéns abandonados como um detective da subconsciência em busca de provas cinematográficas para documentar uma vida em que a realidade transcende a ficção. O guião é rico, a realização primorosa, cheia de baterias corpóreas, e o actor parece-se tudo menos com um intérprete. Revelator é teatro-cinema-rap.
Tucker Zimmerman - Dance of Love
As lendas dos trovadores perdidos costumam vir embrulhadas em tragédia (Tim Buckley), decadência (na etapa americana com Rick Rubin) ou mistério (Rodriguez). Tucker Zimmerman é um caso anormal de naturalidade. É uma memória de Zimmerman escrita pelos Big Thief e prefaciada por Adrian Lenker. escolta dos Big Thief. Costas mais quentes não há. Entre as Ten Songs produzidas por Tony Visconti em 1969 e elogiadas por David Bowie, e o princípio dos anos 80 gravou com regularidade. Depois, dedicou-se à ficção através da escrita de romances, poemas e curtas-metragens, embora sem nunca abandonar a música ao compor para orquestras sinfónicas. Em 2005, Chautauqua já o resgatava da hibernação. Em 2024, Zimmerman é um perfeito desconhecido, quando comparado com o outro Zimmerman, mas Dance of Love podia candidatar-se ao Pullitzer na forma como narra a passagem do tempo com desconforto, sentido de humor e uma luz de esperança no final. Na linha da vida de Leonard Cohen. A realização é dos Big Thief e Adrianne Lenker contracena. Difícil imaginar melhor equipa para este guião.
Carminho - At Electrical Audio
Há um ano, numa folga da digressão americana, Carminho pousou ao microfone dos estúdios Electrical Audio, de Steve Albini em Chicago. Histórico, por ter sido com é, e por Albini ter partido em maio. O que há de inesperado na conjugação de personalidades entre a fadista e o produtor resolve-se com lógica. Carminho traz a autenticidade na voz, Albini sempre procurou um som cru e sem artifícios nas centenas de bandas gravadas. Nos interstícios do corpo instrumental do fado, há uma guitarra eléctrica a atrair para o livro de estilo retorcido dos Dead Combo. E depois há aquela voz magnética a radiar sobre o peso da gravidade.
Mayra Andrade - reEncanto (Live At Union Chapel)
Fala-se tanto de Mayra Andrade, pelas melhores razōes, como quase nada de novo tem deixado escapar desde o clássico instantâneo Manga, de 2019. A doce Bom Bom, de Batida, foi uma excepção notada nos últimos anos. A explicação está no princípio de reEncanto (Live At Union Chapel). Mayra deu à luz e este formato de voz e violão, com as mãos de prata de Djodje Almeida (entre vários outros ofícios, guitarrista de Slow J) é justamente o regresso aos primeiros ossos das cançōes. Sem surpresa, o estado mais puro permite escutar a essência de um repertório magnífico de claridade, afecto e esperança. Que seja o berço de outras maternidades.
Homem em Catarse - Catarse Natural
Sempre que se desprende de genéticas musicais como a dos Linda Martini ou de palavras de ordem como as de Hipoteca, Catarse Natural cresce para uma dialéctica própria de pós-rock crepitante, fado de sangue rockeira e uma inexplicável melancolia muito nortenha, como se Barcelos fosse o vértice de um triângulo com Seattle e Reiquiavique. As cançōes dão pelo nome da Catarse, estão carregadas de intençōes políticas, comportam-se como um manifesto, mas escapam inapelavelmente para a contemplação. Esse bulício interior transforma-se em magma e sentimo-nos na Islândia entre lagos e vulcōes a fantasiar sobre o Árctico. Depois do magnífico Sete Pontes, meio-piano, meio-silêncio, a massa instrumental sobe de tom mas o silêncio continua a atravessar-se como um rio. Naturalidade e genuinidade falam por Catarse Natural. Nem tanto a explosão.
Cosmic American Music: Motel California e Luke Una - Everything Above The Sky/Astral Travelling
Nunca saberemos tudo sobre a folk. Em Cosmic American Music: Motel California, abrem-se duas arcas perdidas de pérolas obscuras dos anos 70. A primeira segue as pisadas do volume inicial e segue os passos de uma nova vaga de trovadores, despojados dos motivos políticos dos hippies. O trocadilho com os Eagles refere-se aos antecedentes da explosão da banda e de corrente como o AOR. Já a curadoria de Luke Una, DJ, promotor e agitador cultural, traz motivos espirituais, solares e musicais, como a influência suspensiva das baleares, para uma selecção levitante.
O terceiro volume da série Aquapelagos é literalmente um oceano pacífico inspirado pelas paisagens aquáticas. A tranquilidade e a imensidão do oceano são acompanhados por uma consciência de expansão crescente ao longo das peças sonoras. Pak Yan Lau e Vica Pacheco são capitães da expedição.