Foto: Kevin Mazur/Getty Images
Como definir uma geração? Segundo a tese de Karl Mannheim, é “um lugar partilhado dentro do processo social e histórico”. Um enorme e difuso chapéu de chuva comungado por um conjunto de acontecimentos históricos e comportamentos sociais. Embora separadas por doze anos, Billie Eilish (22 de idade) e Taylor Swift (34 de idade) são parte de um mesmo cosmos de transformação e reactividade a essa mesma mudança. Ambas personificam, aliás, uma metamorfose incontornável. Nas altas esferas da pop, as mulheres passaram a assumir voz de comando. Como em tudo num mundo em que o excesso de informação poucas vezes se traduz em volume de conhecimento, a questão não é o quê. O facto justifica-se por si mesmo: Taylor Swift pode influenciar o rumo das eleiçōes americanas se declarar apoio a Joe Biden, como já sucedeu com a influência de Oprah Winfrey para o consulado Obama. Por isso, está debaixo da mira da candidatura Trump e é vista como uma das principais opositoras.
Já a anti-trumpista assumida Billie Eilish não precisou de ir a eleiçōes para ser votada a porta-voz global da autodeterminação contestária, segundo uma nova ordem em que a contestação se exerce a partir de vontades individuais e não necessariamente dependentes de uma matriz política - sinal claro de desgaste dos partidos, de descredibilização dos seus representantes e do crescimento de uma geração que devolveu a política à vida estudantil através de causas e não de doutrinas ideológicas. O que é bastante controverso porque são as doutrinas a defender as causas através de soluçōes políticas e não o inverso. Já se percebeu que os pequenos clubes de combate acabam a lutar entre si e que a soma dos indivíduos é inferior à força colectiva, mas ainda assim Eilish representa um conjunto de angústias identitárias (ansiedade, sexualidade, aborto) e universais (veganismo, desastre ecológico, Trump, xenofobia, extrema-direita). Eilish, por exemplo, usou o poder (Your Power) para lançar uma linha vegan de ténis Air Force 1 da Nike.
Só por aqui se vê o quão esmagadoras se tornaram e o impacto mediático causado. Repare-se como nenhuma delas precisa de rádio ou de meios tradicionais para disseminar a música. Nenhum dos álbuns recentes - o recém-chegado Hit Me Hard and Soft, de Billie Eilish e The Tortured Poets Department, de Taylor Swift - tem singles cantaloráveis mas isso não as impede de bater recordes. Comunicam directamente com as massas sem passar por intermediários. Eilish e Swift espelham um tempo paradoxal em que fala sobre o quê como um fim em si (os impérios, as marcas, as biométricas, a influência política) sem se discutir o porquê - o processo sem o qual não teriam erguido os palácios onde agora mexem com as rotas turísticas e são endeusadas. Delas espera-se que digam “verdades” para abrigar o sentido da vida mas o fenómeno e as suas implicaçōes está muito para além da benção e salvação.
É tentador dissociá-las. Swift uma moderada, filha do country, criada na pop, a entrar na fase da romancista com cançōes desconsoladas e poesia congelada que lida com problemas complexos como solidão, abandono e desgosto com a chama de um isqueiro sem gás e o desconforto de uma enxaqueca. Eilish, ousada e transformadora, a usar a pop como laboratório de experiências e conexōes. Será assim tão simplista a descodificação? Tanto The Tortured Poets Department como Hit Me Hard and Soft ardem em lume brando. São mornos e baços. Com uma extensão injustificável de mais de duas horas no caso de Taylor Swift, e uma canção lindíssima como Chihiro a decidir a favor de Eilish. Se aquilo que as separa é tangível, embora menos do que se pensa, o Deus algoritmo acasala-as a um tempo de incontestado de liberdade condicionada. Que no caso de Eilish se transforma numa captura sem resistência da contracultura.
"Que uma indústria resgatada por dinheiro novo do streaming tente vender uma nova heroína que mitiga as dores de crescimento em canções de porta trancada e pinta os olhos de preto esfumado, é normal. É o seu papel e a rebeldia vende, sobretudo quando não atravessa a pele (…) A idade pode ser apenas um número e este ser o início normal de um percurso promissor mas encontrar novos Cobains neste gótico Instagram é viver dentro de um filtro de Instagram sem luz natural. Não vem mal ao mundo do álbum que hoje chega às plataformas mas o problema é esse. Não há campainhas a tocar em When We All Fall Asleep, Where Do We Go?. É preciso que tudo mude para que continue na mesma”, escrevi em 2019 aquando da chegada do álbum de estreia de Billie Eilish.
Cinco anos depois, e após ouvir o mais soft que hard novo álbum, não me parece que a previsão tenha falhado. E sobretudo há algo que a torna mais parecida com Taylor Swift do que com Kurt Cobain ou outro ícone da resistência. As primeiras damas da era digital querem ser unânimes e confortáveis. Receiam a divisão e o desconforto. São transparentes mas evitam a controvérsia. Sim, Cobain também desejava a aclamação mas através da ruptura e não do consenso. E ainda que os materiais artesanais usados na produção caseira de Finneas criem uma ilusão de controlo da situação, não tenhamos dúvidas que When We All Fall Asleep, Where Do We Go?, em 2019, e Hit Me Hard and Soft descendem da mesma macroeconomia imperativa e asfixiante. E a não ser que a música já nada importe na sua representação, há uma entropia.
O problema não é de intenção mas de percepção - a falsa sensação de vento contrário - e de impotência em contrariar os acontecimentos, por muito boa que seja a vontade. Pode parecer um gesto de ruptura mas é um acto de rendição. Atirar o lixo para debaixo do tapete é diferente de o varrer. A diluição do sentido crítico tem consequências: a militância se confunde com merchandising e as convicçōes mais legítimas caem nas armadilhas do populismo. Até o protesto passou a ter de aceitar as regras do jogo para se poder legitimar e o capitalismo tem uma atracção irresistível pelo inimigo.
Nesse complexo confronto entre uma privacidade inegociável e um impacto de que nunca abdicou, o terceiro capítulo expōe as virtudes e defeitos que a perseguem desde o início. A liberdade em que se move é condicionada pela tirania do sistema e pelas obrigaçōes sociais de uma primeira dama. Antes de ser uma figura reformuladora do acontecimentos, é fruto das circunstâncias. E a pop conformista e confortável de Hit Me Hard and Soft é como um hambúrguer vegetariano no MacDonalds. Pode parecer que está a trincar o sistema quando está apenas a ingeri-lo e, desse modo, aceitá-lo. As batatas fritas em óleo a ferver até são as mesmas do Double Cheese de Taylor Swift. Podemos falar de transgressão?