Este artigo está nos rascunhos do Substack há uma semana mas demorou a libertar-se do casulo por obrigaçōes profissionais, cansaço acumulado e um calendário de feriados e pontes propício a desligar. Não é um ensaio definitivo sobre viver um festival em 2025 porque a realidade é mais veloz do que a conseguimos seguir e, mais de 25 anos depois da primeira vez, o passo já é de maratonista e não de sprinter. Por isso, chamo-lhe um esforço de auto-compreensão sobre a tensão entre subjectividade individual, tendências grupais de massas e um saber acumulado que nem aceita o posto de comando da experiência nem se sente compelido a compreender tudo.
Se me permitem também, por paradoxal que soe perante as atrocidades constantes, o silêncio pode ser uma grande oportunidade para respirar debaixo de água. Não se trata de deixar que nos calem, trata-se antes de falar quando temos algo a dizer. E dessa forma não afectar o espaço público com poluição sonora, por mais ínfimo que seja o alcance.
E entretanto meteu-se um segundo festival no calendário - o primeiro do verão depois de um Primavera Sound quente. Sem surpresa, o Kalorama foi um fiasco de bilheteira, confirmado pela não-divulgação de números finais e indisfarçado pelos convites oferecidos pelo patrocinador, e marcas associadas ao festival. Como me dizia alguém na noite de sábado, “isto está espantosamente calmo” enquanto Jorja Smith alastrava o canto de sereia debaixo de veludo azul.
Um cartaz equilibrado e suculento q.b. (FKA Twigs, Jorja Smith, Sevdaliza, Badbadnotgood) já não é sedutor. Faltaram-lhe nomes gordos, pesou a falta de elasticidade da carteira, a oferta gratuita de arraiais, e a saturação do modelo de festivais. O primeiro festival de verão confirmou a crise anunciada (sobre este tema, na semana passada voltei ao jornalismo para escrever um artigo para a Visão - ironicamente, a última revista antes da redacção entrar em greve) e também a falta de uma personalidade própria que o legitime perante a concorrência pesada e os cartazes de nicho (sobretudo de metal e electrónica). Porque é evidente que, em 2026, voltar a agosto não vai resolver o problema existencial do Kalorama. Apenas adiar a visita ao médico. A não ser que o patrocinador principal decida desviar uma parcela generosa do orçamento de marketing para o cartaz.
A MEO, e outras marcas, apostaram em vídeos de “criadores de conteúdos” antes e durante o festival. Nada de novo, surpreendente ou até imoral - o meio condiciona a mensagem. E isso diz-nos bastante sobre a importância da música, ou falta dela. Celebra-se uma cultura de reacção imediata, de humor taggavel e esvaziamento do cerebelo, mas não tenhamos dúvidas. Os festivais grandes, ou médios sustentados por grandes empresas, pertencem-lhes e são vividos desta forma por grande parte do público. A música é reduzida aos seus instintos mais primários e o impulso natural de gostar ou não pode ser subjugado a um estado de presença física, transmitida através de experiências visuais alucinantes. E depois o que fica?
Deixemos de parte o debate infrutífero dos últimos anos sobre o “ir pela música”. Os tecidos do córtex são demasiado maleáveis para responder ao infactível. Toda e qualquer proposição artística é uma forma de comunicar. Podemos, no entanto, ensaiar hipóteses para o destino da moeda. E aí, é inevitável concluir que nos grandes eventos mediáticos, a música é uma muleta. Podia ser o cinema, como no caso escandaloso do Festival de Tribeca, a gastronomia ou o padel. O sujeito e a personalização secundarizam o objecto, tornando-o por vezes acessório ou irrelevante. Querem-se reacçōes cada vez mais rápidas e irreflectidas. O stress constante de filmar e publicar é incompatível da vivência. E está tão incrustado que já não é geracional, é cultural.
Os festivais de música retiraram a nacionalidade aos melómanos, reduzidos a uma alcateia de linces ibéricos a lutar pela sobrevivência da espécie entre comunicadores hiperactivos da experiência visual do vazio brutalista. Ainda faz sentido descrever uma tribo da música ou ela está tão subjugada a um comportamento minoritário que existe em silêncio de pajem. E, ainda assim, apesar da comunicação massiva veículada por personalidades de Internet, chegava-se mais depressa às primeiras filas dos palcos do Kalorama do que às portagens da Ponte 25 de abril em tardes de regresso da praia.
No campo neutralizado de um festival, a música é tão perigosa como cortar uma cebola com uma faca sem serrilha. O habitual rescaldo no final dos concertos mais aguardados, ou nos dias mais quentes, foi reduzido a extractos seleccionados de vídeos em que a acção é agora o espectador. A troca é indissociável de toda a performance, mas a transferência do olhar diz muito sobre o foco da lente.
Somos os últimos românticos, hesitantes entre o ser solidário e o ser solitário de José Mário Branco. E agora?
Ser solidário assim p'ralém da vida
Por dentro da distância percorrida
Fazer de cada perda uma raiz
E, improvavelmente, ser feliz
Contrariar as profecias
Em linguagem corriqueira, o Primavera Sound Porto correu bem. Disse-o o director José Barreiro, com alguma propriedade, quando defendeu que o festival já merecia alguma sorte. É verdade. Há dois anos, o Primavera apostou em grande. Dilatou-se para quatro dias, chamou gigantes como Kendrick Lamar e Rosália, e somou-lhe a terceira juventude dos Blur. Depois de um ano de embriaguez de festivais, regressados do celibato da pandemia, 2023 foi de gasto sem retorno. Choveu muito, a mudança de palco principal foi um desastre, com um lamaçal próprio de Glastonbury, as constantes interrupçōes fizeram do concerto de Lamar uma decepção inesperada, e não só o público ficou aquém das expectativas, como pareceu desconfiado do e desencontrado da multiplicidade de propostas. O princípio do fim do multigénero? É cedo para tirar essa ilação, confirmou-se este ano, depois de um 2024 de emagrecimento. Uma edição acima das expectativas, a contrariar a sina anunciada da crise de festivais. Charli XCX correspondeu à Bratenchente, os Fontaines D.C. diluíram os equívocos de Romance, Caribou superou os limites do corpo num híbrido exemplar de concerto, DJ set e performance sonora que não precisa de ser nomeado. Através das transmissōes da RTP Play, ainda fiquei impressionado com A Garota Não (a grande perda do meu roteiro), TV On The Radio, Maria Reis, Eu.clides, Wet Leg, Destroyer e Squid. Se tivesse permanecido no Porto, teria visto Jamie xx, Haim, Floating Points, provavelmente Denzel Curry e talvez Central Cee.
Vencer o medo
Os dias anteriores ao festival foram de angústia. O retrocesso civilizacional já vem de há muitas primaveras e não é da exclusiva responsabilidade nem das redes sociais, nem das televisōes, por muito que a falta de arbitragem em meridianos digitais, e o campo inclinado pela hegemonia de comentadores sbre redacçōes minguantes, empurrem o desfecho para a destruição da democracia. Não passarão? Nas ruas, infelizmente já passaram. No Porto, cidade onde duas voluntárias foram agredidas por distribuir uma refeição a um sem-abrigo, ergueu-se uma muralha. Quanto menos vemos, mais sufocante é o medo mas no Primavera Sound Porto não houve fachos ou nazis infiltrados, nem tampouco o receio de este amanhã se perder no nevoeiro. O clima foi pacífico, coexistente e até festivo. Dias de cama para o pessimismo.
Psicose colectiva
Está a instalar-se uma ideia de que as atrocidades para com os nossos irmãos da Palestina, da Ucrânia e agora do Irão, além todos os outros civis vítimas da tirania de loucos e fanáticos, nos devem limitar a alegria e o prazer. Como se solidariedade implicasse negação e privarmo-nos de viver resolvesse algum conflito. Se há conclusão a tirar das manifestaçōes constantes contra a(s) guerra(s) e genocídios é a de uma impotência colectiva, limitada pela falta de estratégias de combate, em Portugal ainda muito reféns das lutas de Abril - por mais que o esterco suba à superfïcie e circule em espiral, o mundo é outro e diferentes problemas implicam novas estratégias - e por uma incapacidade reconhecida de unir movimentos de protesto em ideais comuns. Pelo contrário, quanto mais destruímos a beleza e nos amotinamos, mais próximos estamos de jogar xadrez com as regras do inimigo. Violência gera violência e fogo acende fogo. No Primavera, houve paz e manifestaçōes de apoio à Palestina. No Kalorama, uma espectadora foi obrigada a baixar a bandeira durante o concerto da israelita Noga Erez. Porquê?!
Ciclos de vida
Estar com as pessoas é muito melhor do que ver historinhas no Instagram. No Primavera, reencontrei alguém que muito estimo e por acaso é um dos programadores mais atentos, livres e aventureiros de salas nacionais. Aliás, a conversa começou com um: “há quanto tempo nos conhecemos?”. E daí, passeámos no fluxo constante entre memória e actualidade, até chegarmos ao “ser ou não” dos festivais. Para ele, a música anda em círculos e nós é que mudamos. Para mim, há ciclos repetitivos, sim, mas há também uma transformação dos contextos. Há mais música mas a acessibilidade tornou-a menos valiosa e escrava das plataformas comunicativas. E tudo isso resulta num sentido crítico cada vez mais reduzido, fomentado pela importância cada vez menor da imprensa musical e do seu papel de observação e escrutínio. A música está reduzida cada vez mais reduzida às suas qualidades emocionais. Tudo se resume a um jogo de comoçōes cardíacas e fogos de artifício oculares. Um dos sintomas mais evidentes da incultura musical generalizada, já não apenas entre público mas também entre o sector. Reciclagens sempre existiram. O hip-hop é uma reconstrução. Todo o movimento de bandas novaiorquinas dos anos 00 tem um pai de vinte ou mais anos. A grande diferença é a inconsciência agravada da desinformação, que se pode justificar com a incapacidade de o cérebro humano processar tantos dados, não se pode desculpabilizar com a falta de pesquisa e à acomodação a esperarmos pela informação em vez de a procurarmos. Os Glass Beams são um assalto encapuzado aos Khruangbin. Os The Dare roçam a desonestidade intelectual na sua versão MP3 a 128kb do edifício da DFA, em particular os The Rapture. Os Parcels, uma das bandas mais sobrevalorizadas dos últimos anos, são uma ave de rapina dos Daft Punk e dos Jamiroquai. E os Turnstile? Resgatam os pesadelos emo Y2K com a ligeireza de um linguado no cinema dos Incubus e Sting no lugar de vocalista.
Falta de poder transformador
A congregação Brat parecia uma plantação de alfaces de tão verde que estava. Momentos singulares como este transmitem esperança ao poder transformador da música, porque canalizam uma expressão individual de liberdade para uma energia colectiva imparável. E nem sequer foi caso único no Porto. Liniker e Anohni também sopraram no vento contrário ao ódio. Se esses suplementos energéticos são exponenciados em batalhas coesas de princípios democráticos para todos, e não apenas parceladas em causas, é outra questão - a mais importante. Apesar dos manifestos pró-Palestina e de ensejos para celebrar o amor, nem os festivais são convenientes a actos políticos nem o público se sente convidado a manifestar-se dessa forma. O que diz muito sobre a evolução de um modelo, outrora um arame farpado da mediocridade e um espaço de oposição ao fastio engravatado, e hoje uma extensão dessa mesma pressão capitalista, sem a questionar além da imagética.
Foto de Miguel Oliveira/Primavera Sound Porto