Quando foi a última vez que um disco novo gerou discussão apaixonada? Sim, não é difícil encontrar leituras emotivas a álbuns de Taylor Swift, Billie Eilish, Charli XCX ou Beyoncé em fóruns, redes sociais, canais públicos, grupos privados ou comentários, mas a grande maioria cinge-se ao deslumbramento absoluto ou ao desdém gratuito. Um álbum gerar debate entre sentenças opostas já é uma raridade na cultura anti-democrática de abate do contrário. Na música, na política, no futebol, enfim, em tudo, escutar o outro caiu em desuso. É muito mais confortável vivermos no nosso quadrado, indiferentes à diferença, mas é muito mais desafiante lidarmos com a divergência. Não devia ser algo natural um objecto artístico gerar interpretaçōes opostas?
Não é, e daí a surpresa, minha e de vários leitores, às reacçōes à crítica pouco entusiasta de Romance, o novo dos Fontaines D.C., sobretudo no Facebook da Mesa de Mistura, e no Instagram. Sem surpresa, geraram-se respostas inflamadas mas também de inesperada concordância, como se os menos apaixonados pela banda, pelo álbum, ou decepcionados com o concerto em Paredes de Coura, de repente se relacionassem com algo tão elementar como a hipótese de vínculo a uma opinião divergente, sem que isso magoe alguém ou implique a inscrição num clube de ódio. Este conjunto de comentários espoletou um fórum aberto de troca sadia e espontânea de ideias, como num café, quiosque ou espaço público aberto à intervenção. Só por isso, já valeu.
Sobre o álbum dos irlandeses, pouco a acrescentar a não ser que Favourite, escolhida para descer o pano, é uma boa canção com argumentos para se intrometer entre as mais viçosas de Dogrel, A Hero’s Death e Skinty Fia. Até pelo impacto tomado causado pelo artigo, vale a pena recordar o propósito da arte perdida da crítica musical, outrora endeusada e reduzida, na era do algoritmo, ao interesse de alguns curiosos e a citaçōes de rodapé para fins de legitimação comercial - é assim que a indústria a encara de há muito para cá. E, no entanto, como ficou de novo demonstrado, continua a ter um espaço próprio e uma importância que, ao contrário do que muitos defendem, é fulcral na resistência às regras pouco claras, e à falsa percepção do algoritmo como elemento neutro do jogo. Pelo seu impacto emocional, social e político, a música pode desempenhar um papel único de construção de um pensamento e de uma alegria colectivas, como poucos fenómenos são capazes.
A crítica é um lugar de desconstrução da subjectividade e não de verdade absoluta. Nutre-se de ideias suscitadas pela música. Falo por mim: ao longo dos anos passei a valorizar muito mais o raciocínio, e respectivas representaçōes da subjectividade, do que o gosto como um fim em si mesmo. A procurar cada vez mais as questōes em vez de saltar imediatamente para a casa das respostas - uma preguiça alimentada pelas populares notas aos discos que mais fazem do que a esvaziar a percepção de um disco a número como se de um teste de Matemática se tratasse. Dá para passar? Já li textos sobre brilhantes dos quais discordei com veemência, e outros mais pobres com os quais concordei. Como qualquer exercício de reflexão, podemos questionar-nos individualmente e escrutinar o nosso redor a partir dela. A crítica mais brilhante não observa a obra como um acto único e isolado na sua autoria, contextualiza-a num todo maior.
Como escrevi na crónica Para que Serve a Crítica Musical, publicada em setembro do ano passado, a crítica, enquanto espaço consagrado do jornalismo, enfrenta os desafios inerentes à decomposição do sector, e consequente captura por interesses político-partidários pouco opacos e poderes económicos nada ocultos, e como tal inscreve-se num quadro transversal de precariedade convidativo do medo e, por arrasto, da perda de independência, mas tem caído também em alguns alçapōes próprios de um meio pequeno como o português em que todos se conhecem. A proximidade das redes veio diminuir a equidistância e acentuar tendências paternalistas, muito notadas no exercício de crítica à música portuguesa (álbuns, singles, concertos), e ainda sobram alguns restos de vaidade do passado influente, ou não se tivessem sido os críticos uma espécie de porteiros do Lux do que entra e não entra.
Teria todo o gosto em elogiar Romance como um salto natural para um outro escalão, e arregalar-me como nos três capítulos anteriores. Em vinte anos de escrita sobre música, e pelo menos mais dez como ouvinte com alguma consciência, e desejo de escavar o que está para além da música, já vi tantos casos de ascenção consequente como de tropeção e queixo partido. De cometas em choque com a Terra, falsas partidas, crescimentos vagarosos, coitos interrompidos, romances para a vida e outros perecíveis como o morango. Como respondi a alguns leitores, que relacionaram a minha opinião desfavorável com a transformação dos Fontaines D.C., há uma diferença entre mudança e cedência. Skinty Fia já rompia com o eixo pós-punk dos dois primeiros e não perdia propriedades.
Se esse gesto é consciente? Talvez sim, talvez não, mas seguramente a dimensão das plateias em salas e festivais é uma imagem que os persegue. A questão não é o quê, é como, e o como, neste caso, é escrever com transparência, conhecimento acumulado e a coragem que o meu pai sempre me passou, sem cair na soberba de pensar que há verdades mais certas. Não há, mas podemos pensar como chegamos até elas. Seguramente, todos temos caminhos diferentes. É útil observar o impacto da música mas é sobretudo vital analisar o processo e compreender que a sua interpretação nunca poderá ser objectiva. O belo da arte é precisamente cada um entendê-la à sua maneira e a crítica, enquanto mediador entre obra e público, é um farol para não andarmos às cegas no caos e, acredito eu, não pode ter medo de romper com o fácil, óbvio e imediato, sob pena de aceitar o imposto por instinto de sobrevivência e, dessa forma, esvaziar-se de sentido.
Há uns anos, um conhecido rapper português com quem tenho uma longa relação de admiração e estima pessoal zangou-se comigo devido a uma crítica negativa a um seu par sem metade do talento. Não questionava os argumentos, mas sim o acto, questionando a pertinência de escrever sobre algo de que não se gosta. Sempre contestei esta teoria porque a relevância de uma obra está acima da nossa subjectividade e, além do mais, uma opinião negativa mas sustentada é mais enriquecedora que uma outra mais entusiasta mas menos esclarecida. Prometia então um dia fazer a “crítica da crítica”. Gostei da ideia, disse-lhe, porque antes de mais era o reconhecimento da importância da crítica. Não só não mudei de opinião como defendo que no paradoxo actual em que o impacto tremendo da música é reduzido à emoção e à sua transmissão, retirar o cérebro do cofre-forte e devolver o pensamento ao corpo é um gesto elementar de restituição.