Qual o papel do crítico musical? Trazer o conhecimento para o gosto e, a partir dessa soma, debater, questionar e reflectir. Se possível, gerar discussão porque a crítica é um exercício individual para o colectivo e não é, nunca foi, muito menos será uma verdade absoluta. Ela resulta da subjectividade de quem a assina, e da capacidade de contextualizar uma visão particular num todo maior. E daí ser tão importante juntar sentimento e análise. Uma crítica só com base em emoçōes é um comentário de redes sociais; se não for vivida, não tem paixão nem honestidade.
Apesar de ser um mediador entre a indústria e o público, o primeiro compromisso do crítico é com o leitor. Porque os agentes do meio, incluindo os músicos, também pertencem a este grupo. Todavia, o comportamento generalizado perante a crítica é de cinismo. Quando a crítica é entusiasta, o meio age como um Lobo de Wall Street à sexta-feira. Fazem-se partilhas, citaçōes em comunicados, enviam-se mensagens de parabéns e agradecimento pelo Whatsapp. Quando a resposta é desfavorável, “a crítica morreu”, “não existe”, “ninguém quer saber”, nem “ninguém lê”. Este discurso vem das mesmas pessoas que, em caso de necessidade, se queixam da erosão do jornalismo musical quando precisam de credibilizar um artista ou álbum e constatam que os meios especializados são agora menos do que as lojas de comércio tradicional na Rua do Ouro. Irónico, não é?
Querer matar o mensageiro tem consequências até para a indústria mais crente nas métricas e algoritmos, mas os meios e críticos, em particular, também se têm posto a jeito para ser usados, desvalorizados e ignorados, a ponto de se questionar a sua pertinência - muitos dos que hoje começam a fazer música não só não entendem o papel da crítica musical, como desconhecem a sua existência. Há quem defenda que se trata de um problema de espaço. Essa questão só se coloca no jornalismo exclusivamente impresso, obrigado a tomar opçōes editoriais em função da tinta. As dificuldades da crítica musical são outras: por um lado, a descapitalização do jornalismo roubou-lhe independência. Sem independência, não há transparência na opinião. E sem opinião sincera, não há confiança do leitor.
Convém fazer um reconhecimento de território. E constatar que a crítica, um pilar fundamental do jornalismo musical, quase desapareceu do mapa. Não por falta de interesse ou números, mas por medo. Para se defenderem, os meios refugiam-se em entrevistas e reportagens para exercer o sentido crítico - qualquer opção editorial parte de uma escolha - mas fogem da opinião com receio. E há a questão da forma. Em Portugal, não há um Anthony Fantano (The Needle Drop) mas o problema dessa forma de fazer crítica (como os video reacts), é a dependência da cultura meme. O vício de ser engraçado antes de ser inteligente. E ser crítico, de música, literatura, ou outra arte, ainda é ser líder de pensamento.
A crítica, ou o que resta dela, ganhou medo da opinião. Tem medo de perder o lugar devido a visōes inconvenientes para com aqueles que gastam dinheiro nos meios a patrocinar conteúdos, medo que os artistas virem os canhōes das redes sociais contra o crítico, como já aconteceu, e medo de perder seguidores - o mais egoísta de todos os receios.
Portugal é um país pequeno. E as redes sociais vieram estreitar ainda mais as relaçōes. Para o bem e para o mal. Porque uma coisa é beber cafés, imperiais ou trocar mensagens num chat, mas outra é um exercício de análise. O excesso de cumplicidade pode ser prejudicial até para o elogio porque facilmente se confunde com um favor, e porque pode não deixar ver o que está para além do abraço e do beijo.
É este estado de coisas que tem reduzido a crítica à indigência. E, como se percebe, a crítica também tem sido inimiga dela própria escorregando na casca da banana e deixando-se engilhar por falsos argumentos como o de se escrever apenas sobre aquilo de que se gosta. Como se a relevância de um objecto se medisse apenas pela relação que individualmente construímos com ele, e como se uma opinião desfavorável, fundamentada e sólida, não fosse também útil ao debate e à construção de uma consciência colectiva. Uma crítica negativa pode ser mais útil que um texto bajulador. Saber-se o que não se quer é fundamental para abrir as portas certas.
Há alguns anos que a indústria musical, sobretudo a discográfica, percebeu que devia concentrar-se no produto local porque é aí que pode fazer a diferença. Em abono da verdade, diga-se que a música portuguesa sempre teve na imprensa um espaço inigualável em relação à rádio ou à televisão. Se olharmos a três casos recentes, os de Slow J, Dino D’Santiago, e A Garota Não, o papel do jornalismo musical e da crítica em particular tem sido decisivo na separação entre o trigo e o joio depositado todos os dias no Spotify e no YouTube. Com particularidades próprias, os três definem o mais importante dos poderes da crítica: a credibilização, um valor cada vez menos reconhecido, mas decisivo para construir uma carreira. Slow J chegou a públicos que os seus pares geracionais do hip-hop não conquistaram. Dino afirmou-se como embaixador do anti-racismo e conciliador de extremos. A Garota Não é a voz esclarecida da classe trabalhadora, desiludida mas não adormecida, como há muitos Abris não se ouvia. Pequenos grandes charcos no deserto que castra o voo de álbuns como o soberbo Diabos M’Elevem de Riça.
Que futuro para o jornalismo e a crítica musical, pergunta o MIL num dos seus debates? Os problemas do jornalismo musical são os mesmos do jornalismo. Falta de meios, perda de independência, precariedade da classe e excesso de (des)informação. Problemas que só se resolvem com a confiança dos leitores, ouvintes e espectadores. A resposta em relação à crítica é provavelmente a mesma de sempre: questionar, fundamentar, contextualizar. O jornalismo musical e a crítica precisam de voltar à casa de partida e exigir de si mesmos o que devem requisitar ao meio: transparência. E a partir dessa relação franca, exercer as suas escolhas. De outra forma, continuarão a viver numa liberdade condicionada.
A crítica musical ainda pode exercer um papel fundamental de elevador da excelência, e só dessa maneira pode reocupar um espaço perdido, independentemente de esses canais serem escritos ou falados (como podcasts), mas para isso precisa de varrer as folhas mortas para redescobrir o chão.