Algo estava para acontecer. Em setembro, nas cinzas da guerra aberta com Drake e o anúncio do Super Bowl, uma nova canção aterrava no Instagram sem explicaçōes ou créditos. No final de outubro, uma conversa com SZA, a pedido de Kendrick Lamar, publicada no Harper’s Bazaar, aquecia a chapa. Os grandes astros do hip-hop mal precisam de falar fora das rimas e só comunicam através das redes quando o assunto é inadiável. Quando se abrem à imprensa, é porque têm algo a acrescentar que não se resume em 280 caracteres. Sabem que a mediação lhes é retirada mas também que o bilateralismo do jornalismo permite outro tipo de profundidade espiritual que nem a comunicação digital, quente e imponderada, convida, nem a lírica é suposto explicar. Alguém como Kendrick Lamar não precisa de se expor no lugar do paciente no divã, mas tem a lucidez de compreender as virtudes dessa forma tradicional de destrancar as portas do seu quartel.
Rumores de sessōes com Jack Antonoff associavam Kendrick a Taylor Swift. Acontecera em 2015 na remistura de Bad Blood. Não se confirmou o vínculo com a toda-poderosa mas é Antonoff, omniprodutor da pop, a comandar as operaçōes na cabine e a adaptar-se à linguagem de Kendrick depois de ter produzido 6:16 in LA, entre tiros da Costa Oeste contra as granadas de Toronto. Sem relâmpagos, mas com avisos de tempestade, GNX interrompeu uma sexta-feira apressada em chegar a casa. NOVO KENDRICK LAMAR. Porque ele pode.
A estratégia resultou porque o protagonista tem a autoridade de neutralizar as pausas para cigarro e café. Sem singles, que também não existem em GNX, porque os grandes vultos da pop digital (Billie Eilish, Taylor Swift) pensam em si e nos seus - exércitos de seguidores espalhados nas redes e nas plataformas - e não em ringues fora do seu controlo como a rádio ou a televisão. O anterior Mr. Morale & the Big Steppers encapsulava cinco anos de angústias, frustraçōes e interrogações. Era longo e sinuoso, repleto de traumas da infância e dúvidas existenciais sobre a paternidade. Kendrick prometeu não demorar tanto até voltar. E cumpriu. Trinta meses depois, GNX é mais claro. Não se desvia nem deriva mas o halo persiste desde o início. Quem sou eu e o que diz esta música sobre mim?
“A música é apenas o começo. Não acho que seja o meu objetivo final. Sei que não é o meu objetivo final. A música é apenas um meio para atingir um fim”, respondia a SZA na conversa publicada pela Harper’s Bazaar. O poderio de Kendrick está na ostentação da fragilidade e não no controlo de um império impenetrável. Ainda assim, é um animal competitivo. “Acredito no amor e na guerra, e que ambos precisam de existir”. Para alguém vindo de uma mundividência dura com privação de oportunidades, os dois são inseparáveis.
Foi a arte da guerra que o levou a melhor sobre Drake numa guerra civil como não se via desde 2Pac e Biggie. Para triunfar no Super Bowl do rap, precisou de se sujar e apelar à crueldade rápida. Kendrick podia ter ignorado as provocaçōes - de J. Cole, primeiro, e de Aubrey Graham depois - mas respeitou os códigos de honra da cultura. E volta a disparar, desta vez contra o ídolo Lil’Wayne por este ter assumido a frustração de não ter sido convidado para o Super Bowl em vez de Kendrick Lamar, logo na inaugural wacced out murals. GNX começa com a desconhecida cantora mariachi Deyra Barrera, descoberta num jogo dos Dodgers. Ouvem-se as bancadas em suspenso. Quando Kendrick arranca, já ninguém o pára.
Ele acelera como um F1 e gere as pausas como um mestre do xadrez. Presta as devidas vénia a 2Pac em Reincarnated, feita a partir de um sample de Made Niggaz, e a Luther Vandross, em Luther (com excertos deste e de Cheryl Lynn) mas se se esperava de GNX uma volta de consagração após a estocada final de Not Like Us, Kendrick volta a desafiar-se para se desconfortar e lubrificar. E, pedra sobre sobre, vai construindo um tetris de exigência e superação de limites próprios, como os grandes mestres da canção pop/rock de Bowie a Springsteen, de Dylan a Cohen, de Joni Mitchell a Nina Simone. Uma autobiografia em despique contínuo entre a honestidade e a sua representação. “Um homem com valores morais que defende algo em que acredita”, descodificou a SZA, com quem assina dois duetos, sobre o significado de Not Like Us.
É um álbum de autosuficiência do rap, sem concessōes a tendências exteriores, apesar da convocatória de Antonoff e das participaçōes de suspeitos do costume como Kamasi Washington ou Terrace Martin. Ao reflectir sobre o conflito com Drake, o rapper Cordae reconhecia as virtudes líricas do tiroteiro, assinalando o regresso do rap à palavra de honra. O significado nunca desapareceu, e se há vozes que sempre foram ouvidas pelo seu discurso de consciência poética, Kendrick é uma delas mas ambos pertencem a uma geração em que a relação com o instrumental se impôs muitas vezes na hierarquia sonora.
Lamar ainda traz Drake pelos colarinhos mas GNX supera a luta de egos e segue uma linha bastante radical de rap da linha do Oeste, caligrafada em Not Like Us, em Hey Now, TV Off e Peakaboo. Há algum altruísmo em passar o microfone aos benjamins Hitta J3, Peysoh e YoungThreat, mas quando repete I Deserve It All em Hey Now não restam dúvidas sobre o doce sabor da vitória.
GNX é um forte contendor a Álbum do Ano, candidato a digirecordista do algoritmo e a prémios da indústria mas Kendrick corre apenas por si. Talvez os códigos e hierarquias o atraiam e ser o número 1 do mundo do hip-hop o fortaleça mas as grandes batalhas são travadas contra os inimigos invisíveis próprios. E é em ritmo de atleta olímpico concorrente ao Ouro que Lamar volta a subir a fasquia, sem mimetizar o balanço irresistível de Good Kid, M.A.A.D City, a metamorfose de To Pimp a Butterfly ou a revolta americana de Damn. O momento é agora e os versos de wacced out murals são auto-explicativos. “It used to be fuck that nigga, but now it's plural”.
Álbuns da Semana
Michael Kiwanuka - Small Changes
Depois de nos dar o céu na catarse operática de Kiwanuka, o fabuloso álbum de 2019 e justo vencedor do Mercury Prize - um dos poucos prémios respeitáveis - pedir melhor era demais. Nessa autobiografia em jeito de canção, Michael Kiwanuka projectava dor e superação em soul descomunal benzida por arranjos grandiloquentes. Em Small Changes, a metamorfose está na beleza dos pequenos gestos. Kiwanuka baixa a luz mas não a intensidade e enquanto clássicos instantâneos como Hero ou Love & Hate mobilizavam uma cidade, desta vez Floating Parade e Lowdown ardem como velas numa igreja. As cançōes voltam a deitar-se na cama dos Sault - soul no peito, funk no tronco e uma bateria hipnotizada pelos Can. Bonito serviço à comunidade.
Father John Misty - Mahashmashana
Haverá melhor resguardo para o falhanço do que a arte? Mahashmashana, ou seja o acto de cremação em sanscrito, soa a término de ciclo mas nunca a fim de festa. Ainda e sempre exímio no papel de comentador social da cultura pop, Father John Misty comporta-se como os seus heróis nos melhores dias, de Bob Dylan a Harry Nilsson ou Van Morrison. "She put on Astral Weeks/ Said, ‘I love jazz/This is the last place I oughta be/ But I can’t drive and I sure can’t sleep", é uma das tiradas memoráveis de The Night Josh Tillman Came To Our Apartment, presumível sequela de I Love You, Honeybear. Como um teatro de si mesmo, Tillman move-se entre personas proféticas com inteligência, sarcasmo e uma indulgência própria da grande tragédia. Mahashmashana é como terapia para o apocalipse. As cançōes são longas como comboios mas nunca She Cleans Up, Screamland e I Guess Time Just Makes Fools of Us, todas polidas por arranjos lustrosos, são memoráveis. Merece ser recebido com guarda de honra como uma das obras maiores de um grande bardo.
New Order - Brotherhood (Definitive Edition)
Numa divertida entrevista ao Brooklyn Vegan, Stephen Morris brinca com a ideia de "reedição definitiva" quando já houve uma pilha anterior de recuperações. Os New Order sempre viveram entre a solenidade e a turbulência, com muito humor, caos e até displicência, explica o baterista. Esta recuperação do álbum pós-Blue Monday, pós-Power, Corruption & Lies, mas ainda pré-Technique, ou seja antes de mergulharem em águas baleáricas, revisita o som modelar da pop sintetizada de meados dos anos 80 (muito influenciado por Arthur Baker) mas testa novas soluçōes apenas à base de guitarras, prenunciando uns New Order mais rockeiros que o tempo foi apurando até ao subvalorizado Get Ready (a versão instrumental de Broken Promises é o exemplo acabado, embora não o único). No entanto, é quando o baixo de Peter Hook namora com as caixas de ritmos, os sintetizadores e os samples que os New Order estão em casa. É essa a marca dos grandes clássicos Bizarre Love Triangle, State of The Nation e Shellshock. A pressa de Weirdo fala pela imperfeição natural dos New Order mas Brotherwood guarda preciosidades como as lindíssimas Every Little Counts e All Day Long, envoltas em notas de Wagner, a dança tribal de Skullcrusher, o original e a remistura de Paradise. Até um leigo em história da pop percebe porque foram uma das bandas mais influentes dos anos 80 até hoje.
Ódio com amor se paga. A fundação Red Hot entrega o novo volume da sua colecção a artistas trans e não-binários. De Moses Sumney a Anohni, do frutuoso encontro entre Arthur Barker e Pharoah Sanders a Kara Jackson, Adrianne Lenker, L'Rain, Alan Sparhawk, Perfume Genius, Cassandra Jenkins, à soberba versão de I Would Die 4 U de Prince por Lauren Auder e Wendy & Lisa, a causa agiganta-se ao longo dos oito actos. Ouvidos destreinados vão reconhecer o regresso de Sade, um milénio depois, e ainda por cima com um vídeo revelador da vida familiar com o filho trans Izaak. Levamos as palavras de Sharon Van Etten em Feel So Different para celebrar a diferença.
Can - Live In Keele 1977
Viagem ao centro do ritmo no reencontro com uns Can já tardios, sem Damo Suzuki nem Holger Czukay no baixo, ocupado com frequências rádio e outros ruídos, mas a personalidade característica persiste. Rock alemão livre de espírito com motivos psicadélicos e tribais, em roda a viva a dar a volta à cabeça. As peças são longas como sessōes de vudu em que tempo e balanço circulam como um rito macumbeiro, desprendido de obrigaçōes mas coeso nas ligaçōes. As mudanças no núcleo duro não se notam, antes pelo contrário são os Can no vórtice da pujança.
Ilusão Gótica - Privação Trópica
Quem disse que a tensão alta está relacionada com grandes embates rítmicos? Em Privação Trópica, quase tudo é líquido e intangível mas se há passagens a remeter para os sonhos acordados de Klaus Schulze e dos Tangerine Dream, quando a atmosfera é nebulosa ressuscita os fantasmas dos Coil e reacende as caldeiras dos Cabaret Voltaire. Música suspensiva do real ou demasiado presente para nos queremos confrontar com os nossos demónios? Francisco Lima, José Silva e Raul Mendiratta, ou seja os Conferência Inferno, descem aos confins do pavor, como quem acede à Dark Web, para nos mostrar o belo que há no medo.
Greg Foat - The Rituals of Infinity
Greg Foat segue as pistas do piano quando aos 3 anos começou a tocar em casa da tia, aos 11 se interessou pelos processos de composição e aos 15 começou a aprender jazz. O jazz de conforto domina as primeiras quatro peças de The Rituals of Infinity, próximas da nova escola londrina. A tensão do kraut faz crescer a adrenalina do instrumental titular do disco, que finaliza em estado de gáudio com The Dark Labyrinth e graça Minerva's Owl. Belíssimo disco de um pianista incansável.
Damu The Fudgemunk - Peace of Action
O calor do momento derreteu o realce de Earl “Damu the Fudgemunk” Davis no meio. Aos 40, o quase-veterano é o primo americano de quem nem sempre nos lembramos mas damos o abraço no reencontro. Em Peace of Action, só o produtor está acordado até à tarde. Os beats são espessos, a iluminação cinematográfica e a narrativa de filme de acção. Nesta metagaláxia geolocalizada para além do hip-hop, não são precisas vozes para contar uma história de vilōes, agentes secretos, reuniōes em clubes de jazz e copos de whisky com gelo. E quando fechamos os olhos, podiam ser os Orelha Negra na sua versão mais sofisticada.
Estudos revelam que "música lenta de harmonias minimais pode ajudar a baixar os níveis de cortisol (a hormona do stress), reduzir o ritmo cardíaco e a pressão arterial, libertar endorfinas e ajudar a atingir um estado de calma e relaxamento", explica o texto de acompanhamento de Piano 1. O recital colectivo tem impressōes digitais de Hand Habits, Laraaji, ML Buch, Youth Lagoon e Kelly Moran, que emprestaram peças únicas a esta colecção. Eficácia garantida a baixar rotaçōes.
Amber Mark - Loosies EP
Por motivos insondáveis, Amber Mark ainda não tem direito a um lugar entre as mais destacas, o que é diferente de não estar entre as melhores. Talvez por ser a música a falar por ela e não o contrário. Se mais provas fossem necessárias, os acabamentos a ouro destas seis jóias de r&b sintetizado e galante reafirmam não ser necessária estar entre as mais altas para ser uma das melhores. Quem mergulha com esta profundidade em Sink In, só pode ter nascido sereia.
Pedra x Wugori - Raio de luz
Pedra e Wugori cruzam o olhar neste EP de deriva surrealista. Raio de Luz recorda-nos que o jazz e o boom bap sempre fizeram um bom par. Por mais que dancem, nunca é como da primeira vez e quando os dois agentes gostam de provocar, melhor é a sensação de incerteza.
Nigeria Special Volume 3: Electronic Innovation Meets Culture And Tradition 1978-93
A Soundway continua a dar-nos aulas de história instrutivas e lúdicas. Depois de nos ter apresentado o passado de plumas e lantejoulas do sul asiático na colecção Ayo Ke Disco: Boogie, Pop & Funk from the South China Sea (1974-88), desta vez o salto é até à Nigéria, um dos países mais férteis em produção musical do continente africano e por isso alvo de buscas constantes. Ainda há muito por recapitular, prova esta recolha de cançōes em que ritmos vitais como o juju e o highlife ganharam nova vida graças à introdução de caixas de ritmos e sintetizadores, e à influência americana do disco, da soul e da pop. É desse choque de partículas que resultam choques irresistíveis de particular entre tradição cultura e sofisticação como Edue Ukot Akpa Itong, as versōes dub de Do Good e Highlife, Omoge e especialmente Japadodo.
Gianfranco Reverberi - Rivelazioni Di Uno Psichiatra Sul Mondo Perverso Del Sesso
Julgava-se perdida para sempre esta banda sonora do compositor italiano. Foi a delirante Psicolimite, incluída lado B de um single americano, assinado como Sharon Chatam e la sua Orchestra, a atrair as suspeitas. Quando um coleccionador descobriu que Sharon Chatam era um pseudónimo de Reverberi, o preço do disco subiu para níveis de T0 em Brooklyn, e a Rivelazioni total aconteceu. Um filme fetichista onde cabem necrofilia, ninfomania e gerontologia só podia ter música alucinada. O tom é sério, porém. O misterioso anonimato alicia o enigma. A secção rítmica é a turbina sobre a qual se flutuam percussōes, flautas, saxofones, frases de piano e uma electrónica muito avançada para a época. Rivelazioni Di Uno Psichiatra Sul Mondo Perverso Del Sesso é constituído por peças-chave que se intercalam como peças de uma história em crescendo. A música é parte da tensão desde atingir o Psicolimite até à explosão.
Jean D.L. - Standing/Engraving
Recolhas de campo e guitarras à Lee Ranaldo. Cada peça traz o melhor dos dois mundos: o ambiente sereno e a tensão das cordas em diálogo permanente entre o escapismo e o real.
Que trocadilho fantástico, sinceros parabéns