Valete: "Vou ser sempre um anti-sistema dentro do sistema, mas o sistema está a mudar muito"
Primeira parte da entrevista
O MC bombeiro está aí de novo mas por estes dias, o campo de intervenção de Keidje Lima transcende o rap. No ano passado, associou-se à Junta de Freguesia de Benfica na criação e materialização do projecto Horizontal 360. Uma escola de vocação criativa que pretende corrigir o desequilíbrio entre classes, aproximar futuros artistas dos seus ídolos através de conversas e conferências e, de um ponto de vista filosófico, combater o individualismo.
Se nas suas cançōes, Valete é juiz soberano e sentenciador, no ensino não-formal assume o papel de facilitador com a função assumida de proporcionar aos seus contemporâneos a experiência inacessível quando aprendia a ser rapper à base de sabedoria intuitiva. Na primeira parte da entrevista, fala de tudo sem sofismas: pedagogia, indústria musical, o estado do hip-hop, o apaziguamento na relação com o meio, as virtudes e insuficiências do rap de grande consumo, e o exemplo de Plutónio.
Alguém sem medo de reconhecer o crescimento na relação com uma indústria “em mudança”, mas incapaz de se separar dos ideais combativos. O anti-herói nunca se renderá.
Houve um períodos em que estiveste mais desaparecido, embora também não houvesse redes sociais para sabermos tanto uns sobre os outros. Agora pareces estar mais activo e participativo. Concordas?
Valete - Eu sou o verdadeiro artista português. 90 por cento dos meus rendimentos não vem da música. Há muita coisa que o artista convencional faz e eu não porque a música é dez por cento dos meus rendimentos. E ainda dou metade do meu tempo à música. Devia dar menos. A minha comunicação não é convencional para um artista. Quando tenho alguma coisa, publico, mas tudo de forma muito desregulada. O hip-hop falhou a revolução social mas conseguiu a revolução cultural. Como Valete consegui a revolução social. Afectei pessoas em Portugal, Moçambique, Angola, São Tomé…As pessoas começaram a reflectir sobre temas políticos através da minha música. Há muito tempo que pensava noutros projectos transformadores além da música. Já tinha algumas ideias mas estava com dificuldade em materializá-las. Por sorte, conheci o Presidente da Junta de Freguesia de Benfica que é um visionário e me ofereceu os meios. Tem uma inclinação anormal para um político para as questōes sociais. É alguém com uma visão muito parecida com a minha e encaixámos. Ele é que me falou do projecto da escola. Sincronizámos ideias e passámos à prática. Acredito que se repetirá para outras ideias.
Que projecto é o Horizontal 360 e que efeito tem?
É o meu projecto de vida. Já fiz Coliseu, Campo Pequeno, Sudoeste, Super Bock Super Rock e a minha grande realização é esta. Tem um efeito brutal porque sinto que estou a realizar coisas que andava a projectar há muito tempo e está a afectar mesmo as pessoas. Ainda é meio local, estamos a trabalhar na zona de Benfica, a chegar às pessoas de Lisboa, mas a ideia é que seja um projecto nacional.
A ideia de escola não-formal.
Exactamente. Tentar transportar isto para outras cidades. Quero muito fazer isso.
Na prática, que modelo é este? É um ensino prático? Com o testemunho de referências dos mais novos?
Sim. Primeiro, tenho que dizer que não é uma afronta à escola convencional. É complementar. Há coisas que a escola tradicional não pode oferecer. Isso seria tema para uma outra conversa. A escola tem o seu modelo, que é discutível mas tem funcionado, e nós queríamos oferecer um modelo complementar, com uma inclinação artística, embora não apenas artística, e o que nós estamos a fazer, e faz diferença, é: os jovens que interagem connosco na escola têm acesso a referências da sua idade e especialistas em áreas de interesse. Ontem, levámos o Joel da Afrodigital, e o Nellson da Klasszik, que já fizeram mais de mil vídeos. Imagina um miúdo que gosta de vídeos poder tirar dúvidas com estes gajos. Já tivemos o Agir a falar de produção musical. Segunda-feira vamos ter o Hugo Teixeira que é um grande ilustrador. Na minha trajectória, muito cedo percebi que queria ser músico, lá para os 15/16 anos, e não tinha acesso às minhas referências. Como é que posso falar com o Rui Veloso? Com o Boss AC? Com o Gabriel O Pensador? Esta escola permite isso, até porque conheço as pessoas. Os ídolos dos jovens em áreas marcantes como música, literatura, artes plásticas, cinema…
Dar-lhes o que não tiveste?
Sem dúvida, começou por aí. Cometi muitos erros durante muitos anos, provavelmente por não ter esse contacto. A Paula Homem [Universal] e o Tomás Martins [Sente Isto, O Criador] foram falar sobre management e editoras. Tínhamos quase cem pessoas a assistir e o comentário da maioria foi: “a partir de agora, vou fazer as coisas de maneira diferente”. O que a Paula e o Tomás disseram ali mudou a vida daquelas pessoas. Eu não tivesse acesso a isso durante muito tempo e fiz muitas coisas erradas. Tinha muitos preconceitos em relação às editoras porque não conhecia essas pessoas.
Deixa-me ser advogado do Diabo. O posicionamento anti-indústria não foi uma das razōes da tua aura?
(pausa) Eu ainda tenho esse posicionamento. Nós estamos em Portugal e chamar indústria ao que temos pode ser um pouco rebuscado (sorri), mas é o que é. Vou ser sempre um anti-sistema dentro do sistema mas também acredito que o sistema está a mudar muito. O presidente da Sony Music, que agora já é o presidente da Sony Ibérica, é um gajo com quem cresci e tem uma visão parecida com a minha. Do que é um artista, de como deve ser tratado, do agenciamento, das editoras…O Ben [Miranda] revolucionou a Sony Music Portugal em pouco tempo. Tanto que foi chamado para dirigir a Sony Ibérica. Já não há muito aquela coisa de fabricar artistas, querer impor visōes…está a desaparecer. As editoras são entidades com serviços que os artistas podem usar. O Valete é um rapper de contra-cultura. Será sempre anti-sistema porque a minha música não é entretenimento. É arte e militância, mas também entendo que o posicionamento de antigamente já não faz muito sentido.
O Valete é um rapper de contra-cultura. Será sempre anti-sistema porque a minha música não é entretenimento. É arte e militância, mas também entendo que o posicionamento de antigamente já não faz muito sentido.
No espaço português, achas que a indústria olha para o hip-hop como causa ou a mudança deve-se apenas ao efeito, ou seja a ocupação de um lugar primordial no mercado, e de referência geracional como foi o rock?
A indústria é muito pragmática. Tem uma visão mercantilista e é dessa forma que o hip-hop é tratado. É um género popular, os jovens adoram e vamos acarinhar isto. Interagir com os artistas porque o hip-hop é o género da moda. Ponto. E não há nenhuma crítica a isso porque a indústria nunca se propôs ser outra coisa. O que é que eu acho que acontece? O que tem saído num registo mais radiofónico, mais mainstream, é música bem feita. Os artistas de hip-hop mais populares fazem bons trabalhos. No outro lado, sofremos muito. No hip-hop mais militante. Até mais artístico, diria. É muito difícil dizeres-me um artista surgido há menos de dez anos com um registo mais clássico, que consiga fazer muitas datas em Portugal. Lembro-me de uma banda que conseguiu fazer isso, os Grognation. Depois deles, não me recordo de ninguém. Tudo o que aparece é radiofónico. Sem crítica, porque também tem que existir. É muito mainstream mas faltam alternativas com adesão popular.
Alguém como o Slow J não conseguiu o melhor dos dois mundos?
Sim, sem dúvida, mas eu diria que o Slow J navega numa cena indie pop. É o público dele. Do que sinto falta é dos rappers mais clássicos. Hoje tens muitos modelos híbridos. Não é só em Portugal. Eles são rappers, são cantores…O Slow J pode fazer um álbum inteiro sem rap e ninguém se choca. O que falta são rappers de palavra.
Como os Álcool Club e o Tom.
Esses exemplos são perfeitos. Precisamos de mais projectos desses, com viabilidade financeira. Precisam de fazer as suas digressōes, editar com regularidade…O Tom anda aqui há dez anos e já devia ter cinco álbuns. Falta isso, e tenho medo que daqui a dez anos os nossos artistas de carreira sejam todos mainstream.
Voltando à escola, no texto de apresentação o tema da saúde mental é sublinhado. Na tua mundividência, é justo concluir que passaste a vida em guerra com os outros e contigo, e que agora estás à procura de paz?
Acho que tenho esse espírito combativo e não vou deixar de o ter. A idade ajuda-te a perceber com que armas deves lutar. Creio que é mais isso. Quero transformar, mas sem muita megalomania. Eu até acredito que para seres um revolucionário, a primeira coisa que deves fazer é tratar bem as pessoas perto de ti. É uma revolução do caraças! É um bocado isso que estou a tentar fazer. Agora criei a escola, circunscrita a Benfica, Lisboa. Tentar fazer o melhor possível, mas sempre com a ideia de que queremos criar um projecto capaz de responder às necessidades das pessoas. Não queremos impor a nossa visão. Vou dar-te um exemplo: na conversa de ontem sobre vídeos, três jovens pediram-me para trazer o NGA para falar da carreira. Vamos já tratar disso! A escola não tem de ser a visão do Valete. A escola vai de encontro ao interesse dos jovens.
Assumir o papel de facilitador.
Sem dúvida, a minha cena é essa. Quero ser um facilitador. Já fui muito dogmático no passado mas aceito visōes diferentes. O hip-hop também tem essa beleza de nos mostrar caminhos e caras diferentes. Quero cada vez mais fazer coisas pequenas, bem feitas e em colaboração. Essa é a minha filantropia. Se isso me dá paz? Dá, mas serei sempre combativo. Acho que isso nunca vai mudar.
Como rapper, escreveste bastante sobre a autenticidade do hip-hop e também sobre questōes como a adulteração de números, através do streaming e dos seguidores nas redes sociais. Sentes-te mais apaziguado com o teu meio?
(pausa) Vê uma coisa, Davide. Eu ia para o Bairro das Fontaínhas com oito/nove anos ouvir alguns dos primeiros rappers portugueses. Eles rimavam lá. Filhos de emigrantes a rimar sobre a vida deles. Eu carrego a essência da origem. Sou um dos últimos. Há muito poucos da minha geração no activo. Sei o que representa o Valete para a cultura hip-hop portuguesa. As pessoas têm de me ver dessa forma. Sou uma espécie de bispo da cultura hip-hop. Não há problema nenhum de, de tempos em tempos, fazer certos alertas. “Cuidado que esse caminho é perigoso”. Quero que os meus colegas entendam que é possível fazermos o que queremos. Não temos de estar sempre a responder ao que a indústria quer. Para o sucesso fácil. Não. Nós somos jovens visionários, com um sentido estético brutal. Fizemos uma revolução cultural e aquilo que os grandes nomes do hip-hop produzirem, as pessoas vão seguir. Como seguiram Slow J, Dealema, Álcool Club…Os rappers não têm de seguir tendências, ser escravos da indústria ou do público. Somos especiais, nós é que ditamos o ritmo. Nós é que ditamos tendências. De tempos em tempos, vou ter que aparecer com uma mensagem parecida porque, de tempos em tempos, o hip-hop enfrenta crises. Quando sai o Rap Consciente em 2017, é um momento de crise e eu tinha que dizer alguma coisa. Não sou um rapper como os outros, sou de segunda geração, bebi dos pioneiros e vou espalhar essa mensagem da raiz. Não há problema em o hip-hop experimentar, alargar-se, misturar mas tem que ser sempre contra-cultural. Desafiar o imposto, o tradicional, as instituições…
Eu carrego a essência da origem. Sou um dos últimos. Há muito poucos da minha geração no activo. Sei o que representa o Valete para a cultura hip-hop portuguesa. As pessoas têm de me ver dessa forma. Sou uma espécie de bispo da cultura hip-hop.
Concordas que neste momento o que mais se ouve não é bem contra-cultural.
Sim, mas é o mainstream. O próprio Valete, o Plutónio, o Phoenix RDC, o Slow J são 0,001% da cultura hip-hop. Os rappers mainstream não representam a cultura. É preciso sublinhar isso. Nós somos a parte visível, mas a cultura hip-hop é muito mais o Tom que o Valete. É o pessoal do graffiti nos comboios, o pessoal do breakdance, os DJs…Há uma cara do mercado, e na minha opinião com qualidade. Em 2017, quando fiz o Rap Consciente, havia muitos paraquedistas que nem de rap gostavam. Actualmente, os rappers mais ouvidos são bons. Não temos um problema de qualidade. Se quiseres uma coisa mais dançante, mais mainstream, Plutónio oferece-te isso bem feito. Se queres uma coisa mais indie pop, Slow J dá-te isso. Se queres uma coisa swingada, com características da Linha de Cascais, e até da portugalidade, o Dillaz tem isso. Sinto-me aliviado e apaziguado com isso. Temos bons rappers a representar o lado mais visível. Há dez anos não era assim.
Dizias à Sábado que te agradava os mais novos não quererem imitar os mais velhos.
Muito. Até porque o trap e o drill foram das melhores coisas que aconteceram. Não vais trazer nada de novo se fores um seguidor do Valete, do Sam The Kid, do Regula, do Xeg…O Regula já rimou em beats de boom-bap, de 80 Bpm, 56 vezes. Impossível superar, esquece. Traz uma cena fresca, e foi isso que essa malta fez. O hip-hop foi para outro lados e chegou a outros públicos. Nunca houve tanto público como agora.
Imagino que para ti o rap crioulo, por falar a língua de um terreno próprio, seja um eureka.
Sem dúvida nenhuma. Eles sempre tiveram um caminho paralelo. Têm as suas idiossincrasias. É espectacular. Eles conseguem prosperar à maneira deles, criar novos artistas, sem estar perto do rap cantado em português. Há uma coisa muito importante que queria realçar: a história do Plutónio é fantástica. É um rapper quase da minha geração. Já o conhecia em 2002. Ficou muito tempo a fazer cançōes sem explodir e, enquanto a maioria dos rappers da geração desistiu, ele não. Em 2018/19, tornou-se dos artistas mais ouvidos. Repara nisto Davide: como sabes, a carreira de um artista em Portugal é muito oscilante. Financeiramente, porque o país é muito pequeno. A maior parte dos artistas que consegue aguentar a oscilação financeira e de popularidade vem da classe média-alta ou alta.
Porque podem!
Exactamente, e há um momento da tua carreira em que precisas de fazer um reforço financeiro. Um gajo pobre, que vem de baixo, sem uma rede de segurança, do Bairro da Cruz Vermelha, não consegue. Não me lembro, na história da música portuguesa, de um rapper vindo do contexto do Plutónio, encher o MEO Arena. Lembras-te?
Não, mas isto de os artistas portugueses encherem o MEO Arena, como se fossem jantar fora, é recente. Mesmo o Coliseu ou o Campo Pequeno com o Bispo e o Dillaz é uma excepção.
Verdade, tens toda a razão mas o que o Plutónio está a fazer é inédito. A música portuguesa é muito elitizada, muito de classe média-alta. A cultura tem de o acarinhar porque o que ele conseguiu é revolucionário. Provavelmente, não se repetirá. A história dele deve ser fascinante. Como é que alguém que começou há vinte anos encheu o MEO Arena em 2025? O que é que tiveste de fazer? Que dificuldades passaste? Quem é que te ajudou? Provavelmente, ele nunca contou. Vou tentar levá-lo à escola.
Davide, sigo o Valete desde o primeiro álbum. Acompanho a carreira e activismo do dele há muitos anos, e esta foi das entrevistas mais interessantes e menos "chapa cinco" com ele. Muito bom, tocas em questões pertinentes que deram respostas bem conseguidas. Obrigado por isto!
Gostei mesmo muito desta entrevista. Não oiço rap por aí e além mas lembro-me de ter uns 16 anos e ouvir muito Valete e Sam the Kid no carro de um colega. Eu e ele estávamos a participar num programa de Verão, abríamos as portas das igrejas de Tavira por uma ninharia e, como era mais velho e já conduzia, às vezes apanhava boleia com ele. Não me lembro como se chamava mas lembro-me desses momentos a ouvir hip-hop com alguma nostalgia!