Notícia triste a do fecho do Lounge no final do ano. Mais uma vítima da voracidade imobiliária que tem sugado a alma a Lisboa, enquanto crescem hotéis e condomínios de luxo. A crónica da morte anunciada pela turistificação da cidade já vem de trás e bastava olhar para casos próximos como Barcelona para adivinhar o desfecho. Não agora mas há dez anos o turismo foi apresentado como o pára-quedas do país. Não começou com Carlos Moedas, mas esta autarquia tem tido a inabilidade de não só não travar o problema como agravá-lo com as suas políticas liberais. A grande diferença para outras capitais em 2024 está nas medidas de correcção. Tardias, mas cidades como Amesterdão, Barcelona ou Veneza já impuseram medidas restritivas para travar o fluxo turístico, sob pena de perderem de vez a identidade por que são procuradas. Perante o previsível abrandamento do sector nos próximos anos, veremos o que sobrará da cidade quando os nómadas digitais acharem outra pechincha com wi-fi e café de especialidade.
Em Lisboa, a bolha imobiliária tem vindo a expulsar as classes desprotegidas (idosos, precários), a limitar o acesso a estudantes e a oportunidades de trabalho, e a trespassar o pequeno comércio. O Lounge é apenas mais um inquilino desse vasto cemitério. Um encerramento sem direito a perguntas uma vez que, de acordo com o proprietário Mike Mwaduma ao Observador, “foi decisão da senhoria não renovar” sem “hipótese de negociar”. Assim, sem direito a perguntas. Um golpe de misericórdia. O Lounge, espaço híbrido de concerto e clube, movia-se num território não-nomeável em que rock, disco, funk ou house celebravam o prazer do desconhecido e dos afectos promovidos por esse diálogo. Vivas ao Mário Valente pela programação destemida.
A ausência de um palco promovia uma visão olhos-nos-olhos de artista e público, por vezes esquecida mas importante para a fundação de comunidades solidificadas pelas razōes certas. Até pela sua centralidade, deixa uma fenda no circuito lisboeta. Não foi a primeira baixa nos últimos anos (há quatro anos, trancava-se a porta do vizinho de bairro Sabotage, no Porto o Café Au Lait também acaba de fechar a torneira) nem será certamente o último. A poucas centenas de metros, o B.Leza tem-se imposto como um importante farol de programação, e a abertura, quer da Sala Lisa, quer do Vago, até trouxe mais alternativas para um circuito, apesar de tudo já bem guarnecido com a ZDB e o Musicbox, mas a democraticidade do Lounge, por onde passavam freaks, intelectuais, estudantes, académicos, ravers e rockeiros, é inigualável. O melhor que Lisboa tinha, porque está a perdê-lo, era a diversidade. O fecho de salas como o Lounge reflecte exclusão cultural e social.
Um cadeado não é uma demolição. O finado foi recebido como um facto irreversível, como se não pudesse suscitar outras ideias e acender novas propostas. A reacção é reveladora não só de um fatalismo inerte, como de uma arrogância lisboeta que invalida qualquer hipótese de agir para além dos limites da capital, na Grande Lisboa. Não estará na altura de derrubar o cerco sanitário à volta da cidade e, uma vez que as rendas são proibitivas, pensar em alternativas nas periferias? De vencer a barreira psicológica do rio? De olhar para a água como factor de mobilidade e aproximar a distância? De apanhar o barco no Cais do Sodré para Almada, Seixal ou Barreiro? Ou o comboio no Campo Pequeno?
Para isso, claro, é preciso oferta cultural mas para lá chegar é preciso inverter a mentalidade centralista. E usar o encerramento de espaços como o do Lounge para repensar lógicas. Até porque a migração de populaçōes para os subúrbios pode ser uma oportunidade de criar novos públicos, sem a soberba que Lisboa foi acumulando, mesmo antes de se transformar numa cidade Remax Luxury Estate. Pensar uma programação cultural na Margem Sul ou Amadora deve reflectir, antes de qualquer outro critério, uma relação estreita com as suas comunidades próximas. No passado, os bairros destas cidades eram constituídos por operários ou por filhos do operariado com formação superior. Hoje, essa realidade é muito mais diversificada e inclui cada vez mais brasileiros, muçulmanos e europeus, além dos afrodescendentes.
Salas como a SMUP, na Parede, a Incrível Almadense, ou a Sala 6, no Barreiro, cada uma à sua maneira, são bolsas de resistência e exemplos notáveis de coragem. Não é fácil contrariar hábitos ou ciclos viciosos. Nos últimos anos, multiplicaram-se festivais, concertos, festas e eventos. Nunca houve tanta oferta, internacional e local, como nos últimos anos. Nem a pandemia acalmou o volume de acontecimentos. Passou a ser impossível acompanhar tudo e ainda bem. Os públicos estão habituados a ter em Lisboa um centro de acontecimentos e não é fácil inverter comportamentos tão enraizadas. Além das salas citadas, as cidades da AML têm programação, sim, mas de teatros, auditórios e festas populares.
Para além dos hábitos, as periferias têm menos população, menor poder de compra e capacidade de atrair potenciais apoios. Ninguém dá nada a ninguém, sabemo-lo. As marcas querem visibilidade e números incompatíveis com lógicas programáticas de formação de públicos que demoram a formar e amadurecer. As autarquias querem marketing e controlo ideológico. Políticos com visão para fenómenos subterrâneos de fermentação lenta também não se vislumbram. Dinheiros públicos e ideais divergentes ou contra-culturais costumam fazer faísca e acabar mal para os dois lados. E o mecenato em Portugal ainda tende a olhar com paternalismo e desdém para a arte popular. É difícil? É, há muitas entropias pelo caminho, mas também o era para o Lounge quando abriu há 25 anos. Lisboa era uma cidade letárgica e o Cais do Sodré sujo, decrépito e abandonado.