Nos anos 80 e 90, Almada era um destino obrigatório de resistência ao centralismo. Resquícios de uma história de combate anti-fascista com braços musculados no sector industrial, que trouxe muitos alentejanos para a cidade, para se empregarem na Lisnave, e para o distrito para se empregarem na Mundet (Seixal), CUF/Quimigal (Barreiro) e Setenave (Setúbal). A música ainda trazia a marca dos calos nas mãos, do cheiro a óleo das oficinas, do desejo de mudança e da crença numa vida melhor. Pelo menos, para os operários do pré-25 de abril, que foram constituindo famílias e trabalharam para os filhos poderem usufruir das oportunidades de que mal ouviram falar: ensino superior, emprego qualificado e salários justos. Trabalhar para viver e não só viver para trabalhar.
Durante essas décadas, Almada distinguiu-se não apenas pela fileira de bandas mas também e sobretudo pela marca sonora. O que para uma cidade tão próxima de Lisboa era admirável. O rio, a ponte, os sprints para os transportes, o tempo perdido no trânsito e algum preconceito do centro para com o subúrbio, até na classe artística, eram lenha para uma identidade cultural, manifestada sobretudo na música e no teatro - o maior festival do país era e continua a ser o de Almada. Com histórias diferentes, e contextos sociopolíticos distintos, a Braga dos Mão Morta e a Coimbra dos Tédio Boys (os exemplos clássicos da geografia periférica musical pós-25 de abril) diferenciavam-se por serem células criativas com ADN próprio e não apenas por terem salas receptoras de concertos. Na época, o circuito de bares era uma placa giratória por onde passavam quase todas as bandas.
Salto no tempo até 2024, e o Cine-Incrível, no coração de Almada velha, é obrigado a cortar a electricidade dos amplificadores. Motivo: queixas dos vizinhos. A reclamação clássica dos moradores de bairros habitados por bares e clubes, e que foi, por exemplo, uma das razōes para o Johnny Guitar ter fechado em 1996. Às vezes, como neste caso, nem é o ruído que vem de dentro das paredes mas sim o incómodo com as conversas filosóficas até altas horas e as cantorias desafinadas pelo whisky. Excessos naturais decorrentes de uma actividade para quem o pequeno-almoço é à hora de jantar das famílias e que opera em contramão com os ritmos de trabalho dos comuns. Mas o prazer de uns é a dedicação de outros. E nem todos são obrigados a praticar yoga, por muito saudável e reconciliador com a paz que seja.
A Almada do Cine-Incrível reduzido a torneiras de Imperial já nada tem a ver com o pulsar inquieto de noites históricas com Ratos de Porão, Xutos & Pontapés e Mão Mortas (estes dois, ambos com os Braindead na primeira parte) que arrastavam pequenas multidōes à calçada da Capitão Leitão, vindas de Lisboa e arredores, ou do próprio distrito, para espanto (e inveja) nacional. Nem tampouco a sala é a mesma, mas o centro nevrálgico da discussão sobre o Cine-Incrível, o Mercado Negro em Aveiro, ou sobre toda e qualquer sala fora dos grandes centros, afectada pela pressão urbanística, especulação imobiliária ou inflacção, é a identidade cultural.
Repare-se como na Área Metropolitana de Lisboa, a SMUP, na Parede, passa a ser agora a única sala de concertos com programação regular e exigente, capaz de responder às necessidades da sua comunidade mais próxima, formar novos gostos e atrair públicos exteriores ao concelho de Cascais. Quando se dá o exemplo do Barreiro, e de festivais corajosos como o Out.Fest, ou o já extinto Barreiro Rocks, são momentos importantes com impactos indiscutíveis na cidade, só que esporádicos no calendário. A programação de teatros e auditórios é necessária mas são salas com características distintas, mais formais e institucionais.
Nos últimos vinte anos, Almada é uma cidade crescentemente normalizada. Um dormitório sem grandes laços de afecto entre a população e as ruas. Tem uma grande superfície comercial às portas do automóvel, perdeu a cultura de bairro, e vive num dilema entre o envelhecimento de uma geração desconfiada da sua descendência e uma descendência desconfiada do que a cidade não tem para lhe oferecer. Para trabalhar, tem de atravessar o rio e para poder ter autonomia dos pais, casa e qualidade de vida, tem de apanhar o avião. Os migrantes vêm para a cidade, mas nunca a chegam a fazer parte dela. Estão mas não chegam bem a ser. Anda-se pelo centro da cidade e não há vestígios das duas universidades do concelho. Ninguém se lembra que elas existem, sequer. É como se vivessem num Luxemburgo à parte.
Que virtuosismo podem ter salas como o Cine-Incrível? Muito. Se conseguirem agir como centros de resistência, de onde germinam ideias e comunidades, estarão a ser não apenas receptoras de convidados - e não há nada de errado nisso, antes pelo contrário - como a influenciar a cadeia artística desde o início. O meio está cheio de almadenses, na indústria e nas áreas técnicas, com escola nos fundadores 80 e 90. O fim da história é para os romances históricos, mas não é fácil reinventar o tempo e por muito boa vontade que o associativismo tenha, é insuficiente perante obstáculos correlacionados como a falta de poder de compra e de massa crítica.
Setúbal tem sido a casa de alguma da música mais importante dos últimos anos, de Slow J a Garota Não. Os dois vestem a camisola da cidade. “Esse é o meu fado esquecido nas praias do sado onde o sol continua a brilhar”, fixou J em Casa, enquanto o clássico instantâneo 2 de abril adoptou o nome do bairro onde a sadina cresceu. À volta de Cátia Oliveira, há o guitarrista Sérgio Miendes, com ligaçōes a diversas banda da cidade como os Um Corpo Estranho. Parece haver sofrimento contido e melancolia insular a atravessar aqueles glóbulos mas daí a georreferenciar-se uma bolha criativa setubalense há uma longa travessia que o esfriar das relaçōes de proximidade não ajuda. Somos dos lugares mas os lugares não são nossos. As zonas de consumo substituíram os espaços físicos e humanos. A periferia continua a intimidar o centro e a ser excluídas das grandes decisōes. E é essa ordem de exclusão que estes espaços culturais podem contrariar se agirem como sirene de emergência.