Um futuro pós-algoritmo
Está na altura de começar a atirar este tema para a mesa. 2023 foi marcado pela implosão tecnológica, com uma bola de neve de despedimentos no sector e principalmente uma desconfiança cada vez maior na indústria digital, agravada pela transição do Twitter para x e pelos riscos da expansão não-arbitrada da inteligência artificial. Nem seriam necessários estes acontecimentos para desconfiar seriamente deste modo de trabalho não-forçado para as plataformas dos multi-milionários. SImultaneamente, alimentamos uma máquina e aceitamos as suas arbitrariedades. Haverá relação mais desigual e tóxica que esta? As redes sociais já foram e podem ser parte da solução. Neste momento, são um grande problema de demagogia, desinformação e manipulação. Um futuro pós-algoritmo pode e deve conter redes e plataformas - as actuais ou outras -, tal como a televisão ou a rádio näo desapareceram apesar das sentenças de morte, mas precisamos de reinventar o tempo e de humanizar a comunicação de novo se queremos impedir o colapso colectivo. O aviso é de urgência. Se vai acontecer? Quem quiser que acredite.
A causa antes da consequência
Voltar à casa de partida. Uma das doenças malignas dos últimos anos está em olhar para o efeito antes de procurar a causa. Isto nåo só tem invertido o processo criativo, normalizando-o em função do resultado e da repetição, como tem gerado uma perversidade: as lógicas de comunicação passaram a prevalecer sobre a criação. Traduzido para vocabulário de Internet, esta relação invertida, como hoje é norma generalizada, faz com que a validação venha dos números e não da arte. Não está na altura de nos voltarmos a ligar ao que importa? Provavelmente. Se há excepçōes? Felizmente. Se há luzes de esperança? Há. Mas não restem ilusōes. O impacto de alguém como Slow J deve ser tomado como excepção e não regra. O reconhecimento de uma figura como A Garota Não nåo foi imediato e podia facilmente ter-se dissolvido no desencaixe das regras e até no apetite da agenda da música popular de protesto, muito mais virada para a autodeterminação do que para o colectivo. São dois excelentes exemplos de protecção das ideias e guarda da comunicação, mas nâo espelham o todo. O peso dos factores exteriores à música é cada vez maior e mais caro com natural prejuízo do novo talento. Mais lenha para pensar um futuro diferente.
Recuperar o sentido crítico
Vem na sequência das notas anteriores. Mais sentido crítico é questionar, problematizar e resistir. O gosto leva ao conhecimento e conhecimento é apurar o gosto. Não é fácil explicá-lo nem está na moda defendê-lo num tempo em que tudo se reduz a impulsos, emoções, verdades únicas, ausência de contraidtório e pós-verdade. O chão comum que nos segurava está em desintegração mas são as conquistas colectivas que permitem as individuais e não o inverso. A validaçåo pelos números e a obsessão pela visibilidade deixaram um rasto de perversidade na relação com a música. Não se trata de ela ser ouvida - esse nem sequer ė o maior dos problemas - mas sim do que ela diz, transmite e representa. Se o compromisso for meramente emocional, perde-se o contexto e o conhecimento que ela aporta. Sobre estas questōes, leituras absolutistas são perigosas mas uma coisa certa: o questionamento é necessário. E o que se tem assistado, por exemplo em redes como o TikTok, é cada vez mais o uso da música como legenda. Que casos inusitados como a explosão do shoegaze nesta rede não atenuam. Porque só com sentido crítico se pode concluir que no máximo, este movimento é uma reciclagem e no mínimo, quase todas as bandas são uma segunda-mão ou iguais entre si. Se o nível médio da música portuguesa subiu bastante é pela exigência de quem a entrega, mais do que pela expectativa de quem a recebe.
O presente vem de dentro
Mais importante do que um nome ou vaga, é o todo. E hoje, a soma de muitas partes tem um mantra: a busca por uma identidade local construída sobre um pensamento global. O problema da auto-estima que durante tantos reduziu a música portuguesa a um complexo de inferioridade face ao exterior tem os últimos dias contados. A língua, durante anos observada como um problema métrico de expressão, é parte da solução. Não sendo uma obrigação, é uma ferramenta determinante de conexão e partilha. Mais do que nunca, a música portuguesa reflecte o chão comum do país, e as muitas especificidades culturais, sociais, económicas, geográficas e históricas. Portugal ainda é um país macrocéfalo mas a geografia pop está em expansão, não apenas no código postal de quem a cria, mas na tradução de vivências locais. E a memória das várias tradições, é um barro em reconstrução constante. As estatísticas não mentem. Os consumos de música portuguesa cresceram a todos os níveis. A quota de 30% de rádio é um sinal mas nem sequer é o mais relevante. A grande mudança está na mentalidade. Perdeu-se o complexo de ser e o medo de gostar.
E a exportação?
Está a demorar, mais do que se previa. Ainda nos falta entrar nos circuitos de exportação. Portugal é um país demasiado pequeno na geoestratégia global mas quanto maior for a força do mercado nacional, e mais grosso for o carimbo na assinatura, mais perto estaremos de ver Pedro da Linha a trabalhar com Rihanna, termos as nossas Rosalias e Stromaes por direito próprio ou vermos Dino a pisar os mesmos terrenos de Burna Boy ou Wizkid. Porque ter críticas favoráveis na Pitchfork ou no Resident Advisor ajudam mas a internacionalização é estar presente nos circuitos e não ir de vez em quando. De vez em quando, surgem umas luzes no fundo do túnel como a entrada de Afro-Fado de Slow J para um dos dez álbuns mais ouvidos globalmente em data de estreia no Spotify mas esse é um efeito da unanimidade em solo nacional e não de algum entusiasmo global. Ainda estamos longe de exportar a música portuguesa como um todo. Uma marca sonora de assinatura portuguesa, da qual o fado não tem de ser excluído, mas que reflicta essa identidade moderna, local e desassombrada. Como o novo Brasil, a Espanha pós-Rosalia ou os ritmos que chegam da América Latina.
Para quando a democratização do jazz em Portugal?
Outro caso gritante de lista de espera Se há talento, há público, há escolas, há festivais, há algumas salas, massa crítica e até alguma comunicação, o que está a falhar para o jazz não descer do castelo? É um problema de mentalidade em que todos terão o seu quinhão de responsabilidade. Talvez valha a pena olhar para o exemplo inglês. O movimento encabeçado por nomes como Shabaka Hutchings, Nubya Garcia, Moses Boyd, Alfa Mist, Yussef Dayes ou Emma-Jean Thackray nasceu da confrontação das "instituições", do faça-você-mesmo contra o estabelecido, de mentes abertas para outros sons, do afro-beat, ao grime ou à cultura bass, e de um clima de partilha entre músicos e músicas. Um TGV a abrir canais quando em Portugal ainda estamos na era da máquina a vapor presa no túnel. Só um esforço colectivo de aproximação ao jazz à música popular e da música popular ao jazz, incluindo agentes, programadores e músicos pode encurtar distâncias. E o ensino, quase sempre subestimado quando se fala destes temas, tem uma palavra a dizer. Porque o jazz é, antes de mais, um espaço rico e amplo de liberdade. É de base que se resolve o problema, educando não só para a técnica mas para o pensamento.
A crítica ainda tem uma palavra a escrever?
Quando este artigo começou a ser escrito, ainda não era conhecida a reestruturação na Pitchfork, a publicação mais influente da era digital, apesar da quebra dos últimos anos. É mais um prego no caixão do jornalismo musical e do que resta da crítica. Aguardemos pelas consequências mas os despedimentos e a integração na redacção da GQ näo antecipa nada de bom. A ala melómana arrisca-se a ficar ainda mais entregue ao algoritmo, à não-filtragem do caos e a conteúdos publicitários mascarados de escolhas editoriais porque a publicidade tradicional já não prende o olho. É fácil imaginar que a crítica, a batata quente, será sacrificada. A crise do jornalismo musical é um dano colateral da fragilização do jornalismo enquanto modelo de negócio e, acto contínuo, da captura para fins comerciais, políticos ou outros menos claros. Com uma agravante no caso da cultura: é uma das áreas mais vaidosas do sector. Em Portugal, é isto. O jornalismo musical é um anexo. A crítica está demissionária quando podia ter um papel fundamental a separar o polvo da pota. Como se vê pelos casos citados, quando a crítica cumpre o seu papel ainda é importante. Pelo menos, para a música portuguesa.
Abranger, aproximar, diversificar
Tudo se relaciona. Já se percebeu que o ecossistema da música é campo cada vez mais inclinado para quem detém o poder no bolso. A morte anunciada da crítica é apenas mais uma denúncia de intençōes: tirar do caminho quem tente moderar esse xadrez corporativo. Para estar vivo no circuito, é preciso investir cada vez mais em fotos, vídeos e presença social. E ainda que alguns custos, relacionados com gravação, tenham decrescido nos ùltimos anos, está caro fazer música. As ideias não têm preço mas pô-las em prática é para quem pode, não é para quem quer. Com a subida dos custos de transporte, estadia e alimentação, andar na estrada (e abdicar de outros ofícios) vai ficando mais caro mas é essa a classe que não pode depender do streaming para sobreviver. Há quem acredite que os combates lutam sozinhos - efeito do hiperindividualismo até na luta de causas - mas só um clima económico saudável e justo pode atacar pela raiz um meio que ainda contém bolsas de machismo, racismo, insensibilidade ambiental e centralismo. Extensōes de um capitalismo feroz que encontrou no universalismo pop uma mina coberta pela “paixão dos fãs” e pela “emoção das plateias”. A escalada dos preços dos bilhetes para as grandes digressōes ou o silenciamento abaixo do algoritmo são apenas a coroa e a cara de uma discriminação classista-capitalista. Tudo se relaciona, na música e fora dela.
Mais identidades, menos géneros e hashtags
Pode parecer que sim, mas nem tudo é nevoeiro ou tempestade. O que sobressai no caos é a identidade, não é a réplica. Podemos dar voltas ao mundo ou ao quarteirão, mas o que acaba por se distinguir é a diferença, sobretudo quando há tanta informação repetetiva e circular, O que talvez esteja mais difícil é a afirmação da personalidade entre tantos factores de dispersão mas é uma luta que vale a pena tentar. Porque os géneros, ou as hashtags na sua versão moderna de cultura de playlist, são só uma bussola, um arrumo da informaçåo e, por arrasto, um convite à preguiça de descobrir, estimular e conectar com o desconhecido. Quando hoje olhamos para o edifício da música portuguesa, é isso que vemos: singularidade. Não há maior sinal de evolução que esse. Luzes no fundo de um túnel.