Foto: Pedro Ivan
A corrente de ar leva as redoma à Casa de Gigante, em Vale do Pereiro, na Sertã, onde se encontram em residência com a artista pós-género sús. É a partir da Beira Baixa que Carolina Viana (também conhecida como Malva) e Joana Rodrigues olham para o sublime álbum de estreia Santos da Minha Mente, terminada a transmissão do pensamento para a luz. A partir de hoje, é nosso.
Requisitam-nos esperança, exigem-nos positividade, mas não é essa a a história contada pelas redoma. Rascunho de um infinito a perecer, atrai-se pela tragédia humana mas ri-se no fim. Porque até a inquietação tem direito ao sono dos justos.
O concerto de apresentação está marcado para 17 de abril no Maus Hábitos. A visita a Lisboa será confirmada em breve.
Como nasceu o Santos da Minha Mente? Acumularam ideias ao longo dos dois anos desde o EP?
Joana Rodrigues - Fomos acumulando ideias ao longo do tempo. A primeira música que começámos a fazer foi a última que acabámos. A Voo Lento. Chegámos a tocá-la nos concertos que demos perto da edição do EP. Foi muito espontânea mas demorámos a acabá-la. Todas as cançōes surgiram de forma desfasada. Nunca combinámos estar juntas para criar. O processo foi muito semelhante ao do EP. Surgiram ideias para um beat ou para uma letra, e trabalhámos a partir daí.
Carolina Viana - Temos a sorte de conviver muito de perto uma com a outra e foi surgindo assim. Nunca experimentámos fazer uma residência durante um período para compor.
JR - Também temos um estúdio que vamos partilhando e às vezes acontece um “olha, fiz isto”. Trabalhamos nessa base.
Não há um processo organizado. Vai acontecendo.
CV - Só no fim é que começamos a reunir o que temos e olhar para o que fizemos para montar um objecto artístico. Também para percebermos o conceito e vermos que peças estão em falta para construir o imaginário do álbum.
Com que materiais coseram estas linhas? Dá ideia que o vosso ofício é ser. E o resto faz-se.
CV - É verdade. Não há uma premissa que não seja sermos nós próprias. Fazemos o que nos vai na alma, quer seja uma inquietação ou uma vontade. A premissa nunca é chegar a algum sítio, por isso talvez tenhamos demorado tanto tempo a editar música nova. Simplesmente, não aconteceu nem quisemos obedecer a nenhuma regra da indústria. Tanto que a Delírios Mensais saiu muito antes e para nós fez sentido que ela fizesse parte do álbum. Não definimos um conceito e [o álbum] acabou por ser muito sobre o que é fazer música, quase como se várias camadas coexistissem. As pessoais, as que estão à nossa volta…
JR - Não planeamos muito a forma como fazemos as coisas porque a nossa construção musical é muito derivada do quotidiano que partilhamos. Tanto em termos de temáticas, como instrumentais, ou daquilo que ressoa em cada uma de nós, ou no eu colectivo, acaba por surgir e sendo discutido no dia-a-dia. Acontece de uma forma muito pura de existência, através de conversas e de uma partilha muito próxima.
CV - E sem forçar. Não é com o objectivo de “bater” ou fazer bangers. Não existe aqui, não nos faz sentido, por mais que por vezes exista uma frustração.
A vossa matéria-prima é o dia-a-dia?
CV - Super.
Como é que isso se traduz na prática?
CV - Ambientes.
JR - Contextos. Muitas das músicas têm gravaçōes minhas no autocarro até casa ou de casa até ao metro, ou quando vou ter com a Carolina e vou a gravar. Também há uma saída nossa com amigos.
CV - É muito urbano na textura mas mais etéreo naquilo que se diz. É um reflexo da nossa existência na cidade. Somos parte dela, mas muitas vezes estamos noutro lugar.
Em vez de fazerem vídeos para o TikTok, recolhem sons do betão armado?
(gargalhada)
JR - Exacto.
Já tinha posto esta questão na entrevista à malva mas repito-a. A palavra é o mapa?
CV - (pausa) Acho que aqui nem tanto. Depende. O que costuma acontecer é a Joana trazer um estímulo musical e isso despertar uma ideia que queira explorar. Se bem que as coisas acabam por se fundir.
JR - Normalmente, há uma ideia sonora mas tudo se altera quando se começa a trabalhar a matéria lírica. Há muita coisa que começa de uma forma e se resolve de maneira completamente diferente. O estímulo inicial vem de uma parte instrumental mas aquilo que ela pensa pode levar a imensos caminhos. Há ali músicas que deram voltas e voltas e voltas até encontrarmos uma cama que fizesse jus à lírica.
CV - A palavra é mais bússola do que mapa.
JR - Gostei dessa.
É uma cama em que os lençóis estão por cima do edredon? Os instrumentais não são nada lineares. Gostas de desconstruir?
JR - Sim, mas da mesma forma que a parte sonora nasce como estímulo inicial, a escrita da Carolina também não é super-estruturada. Tipo “vou fazer 16 barras”, uma coisa muito métrica. Isso também me estimula a produção. Gosto de perceber como é que pego na escrita complexa e diferente entre músicas dela, e criar uma base para dialogar. Essa imagem do lençol é muito fixe.
Ou da almofada nos pés.
JR - Às vezes é confortável.
Fala-se muito na necessidade de esperança, por motivos evidentes, mas o Santos da Minha Mente é bastante descrente. Quando olharam para o álbum em retrospectiva, também o leram dessa forma?
JR - É curioso ver essa leitura porque já recebemos feedback de se tratar de um álbum sombrio. Cada canção trata uma temática ou temáticas que se cruzam. É um grande cliché mas elas também acontecem por necessidade de destilar esses pensamentos ou de os tornar toleráveis. Pelo menos, de pensar sobre eles e conquistar alguma paz.
CV - Como a nossa música não é para agradar, fazemos uma purga. É natural que a música seja escura. Ainda não fez sentido na minha vida, tanto neste projecto como em malva, escrever sobre assuntos que não me inquietam de forma avassaladora. Tenho sempre que tocar em qualquer coisa desastrosa, porque senão não me dá vontade de escrever. Estou apenas a desfrutar. E até sou uma pessoa alegre (ri-se). Este álbum também foi uma realização para nós de quão difícil é fazer música, pô-la cá fora e existir ao mesmo tempo que estamos a tentar fazê-la. Também ganhou essa conotação mais pesada por isso. No entanto, sinto que ele fica também aliado a um ângulo cómico que lhe dá essa luzinha. Ela pode estar escondida mas existe.
Como a nossa música não é para agradar, fazemos uma purga. É natural que a música seja escura. Ainda não fez sentido na minha vida, tanto neste projecto como em malva, escrever sobre assuntos que não me inquietam de forma avassaladora. Tenho sempre que tocar em qualquer coisa desastrosa, porque senão não me dá vontade de escrever.
Até a inquietação precisa de repouso?
CV - Sim, sim. O repouso acontece quando a gente termina todo o processo burocrático. Se gravássemos no pós-lançamento, surgia um álbum tranquilo. Só de silêncio (riem-se).
O tom lisérgico e narrado relaciona-se com a desesperança?
CV - Sim, na forma como digo as coisas, o tom de ser o certo. Se bem que não penso muito nisso. É natural.
JR - Nós estamos à procura de uma interpretação muito pensada. Anda muito à volta da voz da Carolina. Sai de forma natural e a produção vai nesse sentido.
No texto de apresentação, fala-se em monotonia. É curioso porque ela desapareceu do vocabulário dos dias.
CV - O que é uma pena porque é muito cansativo. De uma forma não muito consciente, a preocupação não é estar sempre a entreter, ou a meter uma batida ou um refrão. É contraditório em relação ao que vivemos.
Um desaceleração da pressa.
CV - Sem dúvida. Ao mesmo tempo, acredito que há momentos no álbum em que nos alinhamento com isso, como no relógio da Lugar - aquele tic-tac constante. Mas é um alinhar impotente.
JR - Na Lugar, damo-nos como vencidas pelo ritmo das coisas. É sobre o Porto, e como essa monotonia é posta de lado por um contexto exterior que nos é imposto e que nos obriga a adaptar à cidade. E o que é sermos criadoras numa cidade que nos tira a paz.
Falaste de cidade mas o nome redoma remete para privacidade.
JR - Sim, sim. Por acaso, é engraçado porque o nome demorou a entrar mas o nome faz cada vez mais sentido porque tem muito mais a ver com o espaço de compreensão, criação e diálogo entre nós as duas. Nós passamos muito tempo juntas e conhecemo-nos bem. redoma acaba por ser essa visão sobre o que há fora deste espaço e a Lugar fala disso de forma directa.
CV - redoma é um lugar seguro que a gente encontra para existir neste caos. Mas não partiu daí. Veio de eu própria ser uma prisão e querer romper com isso. Só conseguia olhar para dentro antes de conseguir olhar para fora.
JR - Estamos sempre a encontrar novos significados.
Que Porto é este que está debaixo dos vossos pés?
(longa pausa)
CV - Eu não sou do Porto, sou de Viana do Castelo e vim para o Porto há 11 anos. O Porto tornou-se uma casa e continua a sê-lo. É estranho porque me sinto segura, conheço muitos cantos e muitas pessoas, e é bom sair e encontrar alguém. Em paralelo, tem sofrido uma grande transformação que o descaracteriza e nós lamentamos isso várias vezes quando vemos sítios a fechar e a transformarem-se em hotéis. Podemos enumerar os sítios que foram outra coisa antes. Isso pesa e é triste. Nós ainda temos o privilégio de viver no Porto, com a ajuda dos meus pais, e tu se calhar também, mas há mais gente a viver na rua. Isso afecta-nos e a nossa criação. Por isso é que está presente.
JR - Eu sou do Porto. Sempre vivi em Gaia, que é uma cidade muito próxima. Eu ainda hoje vou e volto, e o Porto é uma casa. Consigo ver defeitos e virtudes. Claro que são momentos muitos difíceis, não só no Porto mas por todo o lado. O que me apoquenta na cidade é a despersonalização e a falta de atenção às pessoas. Quando vejo família ou amigos a terem de sair porque não têm escolha, é triste. Tentamos fazer música e resistir.
Obrigado por este texto, descobri Redoma a semana passada a ouvir a Antena 3 e a fazer aquilo de “decorar parte da letra meter no Google e ver o que dava”. Lá cheguei. Fiquei com curiosidade em conhecer mais