Em solitude como John Coltrane, Carolina Viana destranca a malva de vens ou ficas sem lhe roubar o recato. Não lhe nega a privacidade mas as cançōes despontam como boato de primavera. Estão debaixo de chuva, mas doam-se à amizade entre pingos grossos.
Depois de se ter revelado no auspicioso parte, das redoma, e de ter exposto o exílio pessoal no promissor vens ou ficas, MALVA continua a florescer em poros. A riqueza é redestribuída por Bia Maria, Mimi Froes, Miguel Marôco, Francisco Fontes e Luís Duarte Moreira, entre mensagens e cafés que se organizam em cançōes cúmplices.
E por falar em beijos e abraços, a dupla com Joana Rodrigues vem aí de novo. Um novo álbum chegará em março, revela em entrevista. 2025 vai ser um ano de erupçōes cutâneas.
Apesar de o poros trazer convidados e de se dilatar musicalmente, o ponto de partida continua a ser a solidão?
(pausa) Sim, sinto que parto sempre daí, tanto em redoma como em malva. Não comecei a escrever há muitos anos. Foi para aí em 2020. Até lá, não escrevia mesmo nadinha. Nem um diário. Encontrei na escrita de cançōes um lugar de solitude, ainda mais do que de solidão. O vens ou ficas nasceu nesse lugar de solitude e solidão. Aí sim, sentia-me muito sozinha a tentar chegar a algum lado. Foi o resultado de um processo extremamente solitário. Gravei tudo no quarto e mostrei a pouquinhas pessoas. O poros vem de um lugar muito recatado em que escrevo para mim e só depois surge a vontade de convidar pessoas para cantar comigo. Quase todas as colaboraçōes nasceram assim. Primeiro, eu fiz na solidão do meu quartinho e depois convidei para participarem nas cançōes.
É um processo doloroso e libertador?
Mais libertador que doloroso, porque quando estou a escrever já passei pelo pior. Estou a revisitar os lugares e a apreciar a beleza dessa dor.
Estas cançōes são muito reveladoras. Servem-te de terapia?
Pois, tenho vindo a aperceber-me cada vez mais disso, mas quando as faço não tenho essa consciência. O momento em que verdadeiramente percebi isso foi quando saiu o vens ou ficas. Comecei a receber mensagens de parabéns pela coragem. ‘O que é que eu fui fazer?!’ Percebi que estava a abordar temas de forma muito crua e talvez ofereçam ângulos de visão que outras cançōes mais superficiais não oferecem. O que também é válido. Sim, funcionam como terapia. Demorei algum tempo a perceber mas agora é muito claro.
Uma cura?
Sem dúvida. Aliá, a guitarra onde eu compus a maioria das cançōes foi para arranjar e chegou há alguns dias. Já tinha sentido saudades mas não tinha noção que eram tantas. Há bocado, peguei nela para fazer umas coisas. Dá-me prazer só de olhar para ela.
Com o vens ou ficas, ganhaste confiança em ti?
Sim, não só pelo processo de o criar e expor, mas também ao apresentá-lo ao vivo. Tudo contribuiu para ganhar uma confiança maior e construir uma espécie de chão onde já estou bastante mais confortável.
A ideia dos convidados nasceu de base ou foi aparecendo à medida que bebias cafés com as pessoas?
(ri-se) Foi um misto. Cada colaboração tem a sua história. Com a Bia Maria, já conhecia o trabalho dela há alguns anos. Ainda estava longe de fazer cançōes e já estava completamente apaixonada. É uma das minhas vozes favoritas de Portugal. A Fera foi a primeira do álbum a ser escrita. Já existia há alguns anos e estava ali paradinha, à espera de encontrar o rumo certo. Não acreditava nela, de todo. Achava-a lamechas (ri-se), e continuo a achar, mas acho que encontrei o tom certo. Entretanto já conhecia a Bia Maria, enviei-lhe uma mensagem e ela encaixou perfeitamente. Foi caso único. As outras, ou já escrevi a pensar na pessoa, ou estava a prestes a encontrá-la.
As cumplicidades são musicais e pessoais?
São, sem dúvida nenhuma. Tanto que no caso do Miguel Marôco, a canção não foi para quem eu a escrevi, mas deu-se a feliz ideia de me lembrar dele, que é alguém que aprecio bastante embora ainda tenha privado pouco. E foi ele que me deu a conhecer à Mimi Froes e ao Francisco Fontes. Foi o último convidado e o fechar de um ciclo que fez todo o sentido. São pessoas de quem gosto bastante. E há o Luís [Duarte Moreira] que é um dos meus melhores amigos.
Antes de começar a gravar, contavas-me que te sentias receosa das reacçōes que o poros pudesse suscitar. Lembrei-me imediatamente do dueto com a Mimi Froes por ser o mais luminoso e pop, e por isso ousado para o teu cancioneiro.
Compreendo, pela Mimi Froes ser um nome que ressoa pela sua visibilidade. Sim, poderia recear mas gosto tanto da canção (ri-se). Não me chateou nada sair da minha zona de conforto porque ela arrasa. Canta muito, e eu mantenho a minha postura suja de cantar.
O vens ou ficas foi reconhecido num sector especializado. Apesar de a tua visibilidade ser de nicho, com a pressão social, estatística e matemática da metadata, ainda consegues viver o processo sem pensar na consequência?
Quero acreditar que sim porque luto bastante contra a consequência. Se é possível? Não sei se já consigo responder porque não consigo prever os resultados deste disco (sorri). Até agora, tenho tentado manter um equilíbrio entre aquilo que traz dá vontade de fazer e aquilo que é suposto fazer para atingir um determinado impacto. Sinto-me satisfeita porque acho que encontrei um equilíbrio entre obedecer às minhas vontades e não desiludir o meu manager e o meu booker. Não é um equilíbrio nada fácil. É possível, mas é mesmo muito difícil.
Não há uma resposta definitiva, não é?
Pois não, porque está sempre tudo a mudar. Às vezes achamos que há uma estratégia que vai funcionar e não funciona, mas acima de tudo quero manter-me fiel ao que estou a fazer que é partilhar música que venha de um lugar de verdade.
Voltando à questão da confiança, sentes-te mais desinibida para te expores a mais pessoas?
Sinto. Não foi um processo fácil, porque é estranho ser atirada para um palco a dizer palavras e criaçōes minhas. Cresci a ir para palco reinterpretar obras dos clássicos eruditos [quando estudava violoncelo] mas descobri que isto me trazia mais ansiedade. Achava que ia ser ao contrário mas afinal não. Deve ser porque não sinto grande responsabilidade para com criaturas veneradas que já estão mortas. Com as minhas cançōes, posso fazer o que quiser delas.
Começas pela escrita? A palavra é o teu guia?
Por vezes, sim. Se encontrar uma frase ou três palavrinhas que não me saem da cabeça, parto daí e vou à procura, mas muitas vezes també acontece o contrário. Com uma frase ou uma harmonia, também consigo sair. E depois há uma pesquisa muito interessante em que tenho vindo a reparar que é a busca por uma linha fonética que às vezes ainda não têm expressão linguística - são só palavras que me apetece pôr ali porque combinam com aquela harmonia -, e de repente despertam um conjunto de frases ou uma palavra que faça sentido. A partir, daí começa uma exploração que é uma das melhores partes de fazer isto. Parece que a canção já existe e estou só a ir buscar as peças.
Nas redoma, notam-se marcas do hip-hop na produção e na lírica. A solo, diluis isso, apesar da importância do texto ser similar. De repente, olhamos para o país e vemos um conjunto extenso de mulheres a fazer música autoral, como a Bia Maria, Mazela ou A Garota Não, que parecem ligadas por um elo comum que transcende a questão do género musical.
(assentindo) Percebo, mas é uma questão abstracta. Acho que de repente há uma série de pessoas a escrever super-bem. Não sei exactamente de onde parte mas talvez seja uma necessidade de escrever com verdade. Uma busca por uma beleza lírica que faltou durante algum tempo na música da nossa geração, porque temos um passado incrível. Há uma vontade de recuperar a importância da palavra porque houve um período em que não se sentiu tanto isso, o que, mais uma vez, é válido. Consigo identificar várias pessoas que mexem comigo com o que escrevem.
Talvez tenha a ver com a autenticidade que referiste, a importância do que se diz e como se diz, mas também com o contar o lado feminino da história. Quando falas nesse passado, imagino o José Afonso, o José Mário Branco, ou o Sérgio Godinho, mas eram todos homens.
Sim, é verdade. Nunca tinha pensado nisso. Esqueço-me que sou mulher nesta indústria e nesta luta. Tem virtudes e defeitos. É bom porque não me coloco num papel inferior. Estou só a fazer o que quero fazer, mas depois sou confrontada com estas questōes. Olhamos para trás e vemos um grupo de homens a fazer música lindíssima, e a escrever coisas incríveis, mas faltou presença feminina, e agora está a acontecer.
O poros remete para qualquer coisa de invisível vivida à flor da pele?
Sim, sim, sim. Eu vivo muitas das coisas à flor da pele. O poros tem muitas leituras. Isto partiu da ideia de ser um álbum a olhar para fora, de forma abstracta e com várias nuances. Tanto olho para imagens, para aquilo que me rodeia, como para pessoas que tanto podem ser as mais próximas, como as que admiro e posso nem conhecer. Fui beber várias referências porque o vens ou ficas me abriu a porta para um lugar de pessoa que faz música e vai a palco sozinha. Contactei com muitas pessoas diferentes e comecei a beber daí. Também estive mais atenta à música portuguesa, tanto que só tenho ouvido música portuguesa ou brasileira. Comecei a perceber que esses lugares me estavam a inspirar a fazer a música daquele momento. Percebi também que podia observar isso a olhar para a minha pele porque me arrepio com algumas pessoas. Os poros são esse lugar de observação. No entanto, pensei melhor sobre o assunto e apercebi-me também que são um lugar de expressão porque há movimento neles, tanto a reagir a alguma coisa, como a expulsar o que já não interessa. Achei esse paralelismo interessante. Tudo isto acontece muitas vezes sem olharmos. E daí essa invisibilidade de que falas.
E as redoma estão numa redoma?
(gargalhada) Estão a bombar! Vai haver novo álbum em março. Isto é contra a questão da consequência, porque não dá muito jeito ter dois álbuns no mesmo ano, mas até pode ser bom. Quem sabe? Estavam os dois prontos e vamos a isto. Tinham que vir cá para fora, não valia a pena guardar. Estamos bastante orgulhosas do disco. Também já se nota um caminho desde o parte até este. Mais cantorias e menos calhamaços escritos.
É lidar com as consequências.
Venham elas!
poros é apresentado a 13 de março, no Passos Manuel, no Porto, e a 20 de março, no B.Leza, em Lisboa