Enquanto metade do planeta fazia contas ao número horas gasto a ouvir música no escritório, no ginásio ou na cozinha, através da ferramenta Spotify Wrapped, o gigante tecnológico despedia pela terceira vez em massa em 2023. Só no ano passado, foram dispensadas 2300 pessoas, ou seja cerca de 20% da força de trabalho. A decisão é justificada por Daniel Ek com o sobreinvestimento em recursos humanos em 2020 e 2021 quando o dinheiro estava mais barato e o mercado convidava a expandir equipas. Porém, as análises são unânimes. Esta opção camuflada de ajuste à conjuntura visa privilegiar o lucro. Só no terceiro trimestre, o Spotify obteve lucros na ordem dos 65 milhōes de euros. Os números falam por si. Este ano as cançōes com menos de mil reproduçōes deixarão de gerar qualquer retorno para os seus autores. Uma hipocrisia já que, em média, o retorno era inferior a cinco cêntimos por mês.
Podia ser um acto isolado mas foi uma das tendências de 2023. A tecno-implosão, como aliás aqui abordámos em relação ao Bandcamp, generalizou-se e é um sinal de alarme para uma indústria da música dependente do streaming para distribuir e das redes sociais para comunicar. Este é um caso específico por não se tratar de uma plataforma de streaming mas sim de uma loja onde, por decisão dos músicos ou editores, a música é disponibilizada para escuta. O Bandcamp reproduzia o romantismo de uma loja de discos na impessoalidade do digital. O grande pilar do serviço eram a curadoria e a melomania. Depois de ter sido adquirido em 2022 pela Epic Games, a venda ao Songtradr produziu efeitos imediatos: metade da equipa despedida, com fortes consequência na área editorial. Há um mês que o diário de consulta obrigatória Bandcamp Daily não é actualizado.
Spotify e Bandcamp são (eram?) referenciais de duas formas distintas de actuar no ecossistema digital. De um lado, a geração, multiplicação e massificação de números, do outro a idealização e romantização. O fim até pode ser o mesmo mas o caminho escolhido não podia ser mais oposto. E no entanto, a opção mercantil prevaleceu em ambos. Podiam tratar-se de casos sonantes sem par no mundo digital. Só que não. O Tidal, adquirido pelo Square de Jack Dorsey a Jay-Z em 2021, despediu 10% dos trabalhadores. O Soundcloud 8%. E a Amazon 27 mil desde o final de 2022. É assim que as plataformas implodem, explica a Wired. Primeiro, seduzem as pessoas. Depois, tentam explorá-las para, a seguir, ficar com o bolo todo. No fim, morrem todas.
A ideia de que as plataformas são neutras é como acreditar que os supermercados são apenas estantes de produtos. Como se elas, através do seu poder, não influenciassem o mercado nem determinassem, através das suas regras, as preferências das pessoas. Na ausência de moderação dos poderes políticos, têm-se comportado como árbitros do próprio jogo, sufocando os pequenos produtores, ou seja o sector independente e, dessa forma, contribuindo para asfixiar nichos e normalizar processos. A tecno-pop de 2023 são os lacticínios, o arroz ou a massa de um supermercado médio de bairro. Na dicotomia entre acesso generalizado e cortes no sector, o peso dos números sobre as pessoas agravou-se.
Talvez ainda seja cedo para se falar em salvação, mas há ilaçōes a tirar e resoluçōes a fazer. Estarão as soluçōes ainda nas tecnológicas? Na mente brilhante de um iluminado da Dark Web sem nada a perder? Ou estaremos a chegar a um momento da história em que o futuro está no retrocesso? Haverá cabimento para movimentos de contra-resposta da indústria do digital (e não da Internet enquanto sistema) ou estaremos tão hipnotizados pelos acontecimentos que aceitamos côdeas e ignoramos o miolo? Qualquer que seja resposta, o futuro prometido - a quimera da igualdade de oportunidades - está a falhar espectacularmente onde sempre tropeça: na distribuição dos dividendos.
Nada de novo se pensarmos nas primeiras promessas do capitalismo tecnológico dos anos 90. No fabuloso exercīcio “poplítico” de Os Delirantes Anos 90, James Brooke-Smith recorda que “muitas empresas norte-americanas ‘racionalizaram’ as suas operaçōes ao despedir funcionários e transferir unidades de produção para outros países. Se por um lado, isto aumentou o desemprego e refreou o consumo, por outro aumentou o valor das acçōes dessas empresas, ao acrescer a sua rentabilidade”. E acrescenta que “no mercado digital hiperacelerado dos anos 90, cada vez mais os preços das acçōes eram dissociados das realidades estruturais das receitas, dos lucros, dos activos e da dívida”. Reconhecem as semelhanças? No final da primeira década dos anos 00, “o ambiente de desbunda eufórica das dot-com, no final dos anos 90, deu lugar a uma breve moda de ‘festas de despedida;’’, mas como sempre acontece “houve quem lucrasse bastante com a desgraça de muitos”.
Aqui chegados, a sensação que fica é de estarmos sempre a perder para a máquina. Formamos programadores para sermos programados? Temos seguidores mas estaremos a ser seguidos? Quando os fluxos de informação embasbacavam, hoje temos a pós-verdade. Quando se falava em contacto, hoje resta o isolamento. Quando se acelerava a conexão, hoje resta a solidão. Quando se estimulava a partilha, ficou o narcisismo. Quando se reconhece a segmentação, hoje ela é ocupada pela normalização. Quando se prometia democratização, hoje cresce a desigualdade. E o que parecia uma cura para quase todos os males, hoje é uma boa parte do problema. Que não está no TGV, enquanto transporte de grande velocidade, mas na sua condução desgovernada e indiferente a apeadeiros. Que melhor tempo e lugar para uma insurgência?
Indiferença e resignação têm um preço muito alto. A bolha tecnológica está a rebentar. Precisamos de novas profecias. Futuros decentes e quimeras justas. De inteligência e menos artificialismo. Honestidade e transparência para combater a opacidade. Sensibilidade ao toque e não só no Tik-Tok. Defender causas sem pensar primeiro nas consequências. Novas formas de comunicar para nos relacionarmos. Até para nos lembrarmos sempre que é preciso que tudo mude para que fique na mesma.