Após ter sido adquirido há 19 meses pela Epic, responsável por jogos como Fortnite e Rocket League, o Bandcamp voltou a mudar de mãos e foi alienado à companhia de licenciamento Songtradr, num processo doloroso. Se em 2022, o negócio parecia promissor, desta vez a venda implica a perda de metade da equipa. A meio de uma vaga de despedimentos em setembro, a Epic já tinha assumido a impossibilidade de manter os 120 trabalhadores, oferecendo a hipótese de permanência a uma parte. 58 aceitaram e, dos que permaneceram na empresa, alguns foram desviados para outras funçōes na Songtradr. No X, o até agora responsável editorial Jes Skolnik revela ter recebido a notícia do despedimento após duas semanas sem respostas, e também que restam apenas três pessoas na secção até agora liderada por si.
“Nos últimos anos, os custos operacionais do Bandcamp aumentaram significativamente. Eram necessários alguns ajustes para assegurar a sustentabilidade e saúde da empresa, de forma a poder servir a sua comunidade de artistas e fãs”, explicou um representante da Songtradr ao Los Angeles Times. Companhia que não reconheceu oficialmente a comissão de trabalhadores formada após a venda à Epic.
A economia da operação não parece fazer sentido, como nota Philip Sherburne na Pitchfork. Só no passado, o Bandcamp deu a ganhar perto de 182,5 milhōes de euros aos músicos. Porquê esta sangria então? O Songtradr sabe o que está a comprar? É que só com este gesto já atirou o Bandcamp ao chão, estilhaçando-o em caquinhos como uma chávena partida.
“Plataformas justas e equitativas são determinantes para o futuro da economia de conteúdos”, justificava a Epic a 2 de março de 2022 sobre o acordo com o Bandcamp. “Partilhamos a missão de construir uma plataforma vantajosa para os artistas”, acrescentavam os responsáveis do gigante dos videojogos, enquanto Ethan Diamond, CEO e fundador do Bandcamp, defendia assim o acordo: “na Epic, encontrámos um parceiro que acredita tão profundamente como nós que o futuro da música e da arte depende da criação de comunidades justas e equitativas”. Em pouco mais de ano e meio, tudo mudou. Um negócio comunicado com planos de crescimento sustentado e ambiçōes de influenciar marés e pequenas embarcaçōes a atracar em bom porto, é agora um pequeno Titanic a ir ao fundo.
A notícia não deixa margem para romantismos. O Bandcamp como o conhecemos vai implodir. Até porque o Bandcamp Daily é um dos principais afectados e uma das áreas diferenciadoras era justamente a editorial, com artigos de fundo sobre nomes desconhecidos, e das perifeiras (incluindo textos sobre música portuguesa), resgates de arquivo tão valioso quanto desconhecido, e sobretudo uma fuga ao óbvio, mesmo quando o óbvio já era um desvio da norma pop, como grande parte da produção indie - leia-se indie como ética independente e não como género que nunca foi. O problema não está apenas na redução da equipa, sobretudo a criativa. O despedimento colectivo colide com as intençōes assumidas no acto de compra do Bandcamp, e é uma facada no pulmão da plataforma: a ética. Se os valores não são defendidos em casa, como poderão ser respeitados a partir de fora?
Tudo isto (ainda) é o Bandcamp e nada disto se assemelha a outras plataformas vendedoras de um El Dorado na sementeira, mas que rapidamente se transformaram em capturas de ecrã do neo-liberalismo predatório. O Bandcamp era um negócio de carinho pela música. Um labor de amor, em anglicismo traduzido. Uma comunidade e não apenas uma plataforma fria e sem alma. Terá capital (humano) para continuar a sê-lo?
As grandes plataformas digitais assentam em código. Entre 0 e 1, a linguagem binária não oferece margem para humanidade. E por isso, estas empresas têm nos engenheiros e programadores os “principais activos” porque a maioria dos gigantes tecnológicos preconiza um princípio de utilizador-decisor, iludindo uma ideia cada vez mais diluída de democratização. O jogo pode jogar-se em terreno sintético mas as regras são as mesmas. A idade da inocência do digital acabou quando os fins passaram a controlar os meios, e a operação de emagrecimento do Bandcamp é mais um prego no caixão do sonho cada vez mais longínquo da democratização. O coração de 2023 é um vasto cemitério de utopias do futuro, como o Buzzfeed e a Vice, reduzidos a pingos de nuvem (Buzzfeed) ou a pó de armazenamento.
Talvez esta seja uma boa altura para recordar que o Bandcamp nunca foi uma plataforma igual às outras. Enquanto Spotify, Apple Music, Tidal ou YouTube Music exploram o acesso, ou seja o streaming, o Bandcamp foi sempre um retalhista de venda de música, comparável a uma loja especializada (e daí a importância da curadoria, suportada pelo apoio editorial) com rostos visíveis e pulsaçōes melómanas, só que imaterial. Desta forma, conseguiu captar o interesse da comunidade independente. Primeiro, com gigas de ediçōes de autor - os chamados nomes “não assinados”, e depois acolhendo algumas das maiores editoras do sector, da Sub Pop à 4AD, XL Recordings, Brainfeeder ou Warp.
No Bandcamp, o streaming nunca foi o motivo mas o crescimento da plataforma deveu-se a esse binómio entre posto de escuta e ponto de venda, porque quem compra pela paixão da música precisa de ouvir primeiro, certo? É quase sempre assim, pelo menos no mundo melómano - aquele para quem a plataforma sempre teve a capacidade de falar ao advogar uma ética económica de retorno justo para os criadores. E quando o Bandcamp abdicou da sua comissão nas Bandcamp Fridays da pandemia, mais clara ficou essa postura ética de proporcionar uma plataforma justa na relação entre criador e ouvinte.
A implosão do Bandcamp, a falência da Vice, e o fim das notícias no Buzzfeed não são actos isolados, nem podem ser dissociados de outras implosōes. Ainda esta semana era anunciado o corte de 600 postos de trabalho no Linkedin, depois de Facebook e Twitter já terem reduzido drasticamente as suas equipas, com fortes implicaçōes em empresas fornecedoras de serviços associados. O clamor do Bandcamp vem do carinho pela música. O digital foi a mina de ouro da última década, mas a bolha está a rebentar e a levar na corrente os últimos barqueiros do romantismo. É o fim de uma era, mas qual será a próxima se não tivermos salva-vidas para nos agarrarmos?