Sixto Rodriguez foi um trovador obscuro da madrugada dos anos 70. Na esteira de Bob Dylan e Cat Stevens gravou Cold Fact e Coming From Reality, consecutivamente em 1970 e 1971. Dois álbuns tão sublimes quanto invisíveis - o segundo terá vendido apenas seis (!) unidades na época. O sugar man já revelava uma auto-consciência incomum quando cantava Cause I lost my job two weeks before Christmas em Cause. Dispensado pela editora devido ao fiasco comercial, trabalhou em cançōes para um terceiro álbum que nunca saiu das seis cordas. Chegou a percorrer a Austrália em digressão, em 79 e 81, até desaparecer do mapa. O homem deu lugar ao mito.
Que se julgava morto quando um jornalista sul-africano decidiu investigar o paradeiro de Sixto Diaz Rodriguez, nascido a 10 de julho de 1942. No apogeu do Apartheid, uma nova geração encontrou na música de Rodriguez um megafone da sua inquietude. A personagem era-lhes desconhecida mas a música tinha o poder de comunicar e incitar o desejo de transformação política. Cold Fact habitava, aliás, prateleiras de discos entre Abbey Road dos Beatles ou Bridge Over Trouble Water de Simon & Garfunkel. Em 1996, a lenda do suicídio após um concerto cai por terra quando Rodriguez é descoberto. Vivo. E o resto é a história contada no magnífico Searching For Sugar Man.
Salto no tempo até 2020, ano da estreia no IndieLisboa de A Vida Dura Muito Pouco, documentário de 23 minutos de Dinis Leal Machado sobre o imperfeito desconhecido José Pinhal. Quem? Artista de coretos, arraiais e discotecas, fez vida no circuito norte de onde era natural (Santa Cruz do Bispo no concelho de Matosinhos). Como Dino Meira e Carlos Paião morreu no regresso um concerto, em 1993. Ao contrário de José Malhoa ou Marante não foi reconhecido nem nos queridos meses de agosto. E por contraste com Rodriguez só foi descoberto depois de morto. Mas tal como José Cid, o reencontro parte de um contexto completamente distinto daquele em que se movia. Tem no desassombro um álibi e na Internet um propulsor.
Nos anos 90, toda a gente conhecia José Cid mas ninguém o levava a sério. Era uma figura desacreditada, alvo de chacota permanente, em boa parte devido ao circuito de programas televisivos onde apresentava álbuns pretensiosos como Camões, As Descobertas... E Nós, Ode a Garcia Lorca ou Cais do Sodré, cheios de arranjos duvidosos. Como era desbocado, caía na graça que as cançōes não tinham. A famosa foto com um disco de platina a tapar a genitália foi o meme de José Cid. Blogues como o Clube de Fãs do José Cid escoltaram-no até à primeira geração de Internet que o reconheceu pela personagem e só depois pela música - apesar da legítima memória do Quarteto 1111 ou de alguns dos hinos do Festival da Canção. Vieram salas como o Cabaret Maxime. Novos públicos e interesses. José Cid era o mesmo, só que diferente na percepção. O bastante para ter recuperado o plafond de crédito popular até hoje.
José Pinhal vestia de branco engomado, tinha bigode de caldo verde e cabelo à Profjam antes de Mário Cotrim ter nascido em 1991. Que melhores razōes para soltar o cabelo? Como no caso de José Cid, foi na Internet que o culto se difundiu e cimentou. O apartamento do irmão do fotógrafo e coleccionador de música portuguesa Paulo Cunha Martins no Porto, comprado em 2011, fora o escritório de Cipriano Costa, agente de diversas personalidades televisivas de Ana Bola a Herman José, e de um tal de José Pinhal. Entre bastante material promocional, constavam os dois primeiros volumes de três da discografia de José Pinhal.
Nos primeiros anos, o segredo foi partilhado com amigos. E os amigos começaram a contar a amigos. As cassetes foram digitalizadas e as partilhas escalaram as redes de proximidade. Nasce entretanto um grupo de Facebook, ainda hoje activo, próximo e afectuoso, e um canal de YouTube dedicado à música de baile, onde as cançōes de José Pinhal também foram disponibilizadas. A bola de neve continuou a crescer com o nascimento da banda de tributo José Pinhal Post-Mortem Experience em 2016, o referido documentário em 2020, concertos da banda em festivais como o Bons Sons e Paredes de Coura, e um artigo no Guardian que disparou os alarmes da imprensa portuguesa. No texto, assinado por Miguel Rocha, o título afirma “o mundo não estava preparado para ele”. Seria?
A música de José Pinhal era má, sempre foi má e não há amnistia papal que a salve. Magia (Bola de Cristal Mentia), com aquele início tirado a papel químico de Sultains of Swing dos Dire Straits, é aceitável até chegar uma voz desajeitada e destituída de poesia. “Na falta de inspiraçãooooooooo/Fiquei preso na tua magia”, é uma espécie de confissão e auto-crítica. Percebe-se que a imperfeição era assumida. É legítimo que essa memória possa viver, mas isso não quer dizer que o seu peso seja em quilate. Porque José Pinhal não é Farinha Master. A história está cheia de reciclagens duvidosas e ninguém perdeu os sisos por isso. De uma perspectiva etnográfica diferenciada, editoras como a Awesome Tapes From Afrika têm recuperado a música africana de baile e é o delírio com Penny Penny ou Ata Kak. A questão não é essa.
A pergunta central não é o quê nem o como, mas o porquê. José Pinhal foi ressuscitado pelo carinho pela música ou por encaixar na cultura meme? Há vinte anos, quando as cassetes foram redescobertas, o pecado capital até pode ter sido genuíno mas o “fenómeno José Pinhal”, como hoje o conhecemos, já nada parece ter de inocente na sua propagação e assemelha-se mais a uma forma perfumada de emancipação social de pequenos grupos formados em bolsas circulares de privilégio do que a uma redescoberta cultural sincera de um passado subestimado. Independentemente dos motivos.
O pós-pimba é a sobremesa da nova portugalidade, um país musical sem vergonha de reciclar e reconstruir a sua identidade com as ferramentas e crenças actuais. O Preço Certo de Pedro Mafama é a Torre dos Clérigos, mas de David Bruno, a Chico da Tina, ou Conan Osiris, o património cresce. O problema de tomar a parte pelo todo é confundir-se a árvore com a floresta. O fervor por José Pinhal é um fenómeno cultural ou social? Até um relógio parado está certo duas vezes ao dia, e isso deve questionar-nos se José Pinhal, o fenómeno, projecta amor próprio, complexo de culpa ou desdém invertido. Provavelmente, um pouco de tudo.
Muita ambiguidade e suposta argumentação para dizer : "A música de José Pinhal era má, sempre foi má e não há amnistia papal que a salve." Como se uma opinião fosse um facto e a música tivesse apenas uma dimensão estética. Quer queiramos quer não, o estilo e maneira de ser é um retrato de uma das faces portuguesas, um país com pessoas de origem humilde que podem cantar porque gostam e até fazer algum dinheiro com isso. Na animação existe entretenimento. O elitismo que fique para os de sangue azul ou para os eruditos que ficam paralisados com a teoria e com referências que apenas dizem aos mesmos. É preciso tudo e há espaço para todos. Como ele há tantos outros e é excusado pensar que isto ofusca os restantes só porque teve os seus minutos de fama. A internet veio a desenterrá-lo como muitos outros mas isto tudo aparenta ser recente quando não o é e tornar este suposto fenómeno em algo que não é assim tão grande, é também um problema da rede, o foco em casos isolados que preenchem a necessidade de uma pesquisa mais profunda. Vejamos como um reflexo social e cultural de Portugal e que isto tudo tem uma ordem de acontecimentos. Corona, Chico da Tina e agora Mafama, geograficamente e temporalmente, surgem em contextos e intenções diferentes apesar de todos serem portugueses e poderem beber do mesmo. Nunca se tratou de ser bom ou mau musicalmente porque isso é altamente subjetivo e individual até porque a música asssume várias dimensões e contextos e quem escreve sobre música deveria pelo menos ter isso em consideração. As referências aqui expostas fazem parte da descoberta de artistas online e como José Pinhal existem tantos outros mais que nem foram sequer digitalizados nem se encontram em feiras de vinil. Falou-se do fenómeno mas depois "assemelha-se mais a uma forma perfumada de emancipação social de pequenos grupos formados em bolsas circulares de privilégio do que a uma redescoberta cultural sincera de um passado subestimado. " Denota-se uma perspetiva fechada sobre um assunto que estes grupos pouco o nada contribuem e que nem merecem ser mencionados num artigo que visa questionar e até contrariar o fenómeno como a tal "redescoberta cultural sincera de um passado subestimado" e que existe fora desses grupos. E não é por uma questão de idade mas sim por fervor à música para além daquilo que nos dizem que "é que é bom", independentemente de quem. "bigode de caldo verde e cabelo à profjam ", "José Cid os seus álbuns pretensiosos... e arranjos duvidosos são tentativas de humor que sabem a pouco pelo viés. Uma das falhas da cultura "hipster" e suposta valorização do fenómeno e de si através de ícones que oferecem o suposto "estatuto social e cultural" é que esses mesmos ícones e cultos são formados por pessoas que acreditam verdadeiramente naquilo que valorizam e NÃO porque alguém lhes disse que aquilo é que é bom. Por isso é que nunca irão compreender a sua essência, e até em alguns casos se degeneram pela sua apropriação. Não que percam valor mas não o conseguem atribuir. São todos bem-vindos isso nunca foi problema; se vêm para valorizar como quem valoriza. Mas entraram e querem barrar tantos outros quando só estão lá por razões duvidosas e que pouco ou nada tem haver com a arte em si, apenas com o seu estatuto, que é muitas vezes de ícone.
A Internet veio reciclar uma data de "coisas" esquecidas e dar voz a muitos, que há 30 anos nem sequer num karaoke teriam lugar.
Também é um facto que as novas gerações não têm nada de novo na música há muito e a reciclagem está na moda (lembram-se do fenómeno Rockabilly, em Portugal, nos finais dos anos 80 início de 90?).