“A man/drives a plane/into the/Chrysler building”. Uma ideia absurda que haveria de bater certo com a monstruosidade. Os primeiros versículos satânicos de Mike Doughty em Is Chicago, Is Not Chicago nos segundos iniciais de Ruby Vroom, o álbum de estreia dos Soul Coughing em 1994. Se isto não era uma profecia, o que era então? Não era Chicago, era Nova Iorque. Todos conhecemos os factos ocorridos sete anos depois. Dezanove terroristas sequestraram quatro aviões comerciais de passageiros e fizeram colidir dois deles contra as Torres Gémeas do World Trade Center - um deles contra o Pentágono - inaugurando o século terrorista.
Na língua vertiginosa de Doughty, o presságio da tragédia voava nas cordas de um contrabaixo irrequieto e de uma guitarra de manha funk. No caso, era um vocalista a fantasiar um futuro em reverso mas podia ser um comediante a testar os molares para pagar a renda do apartamento, lubrificado pelas Histórias de Nova Iorque de Woody Allen, ou pelo humor cáustico de Jerry Seinfeld.
O ano: 1994. O centro de gravidade: Nova Iorque. Doughty, o teclista e arquitecto do sample Mark Degli Antoni, o baixista Sebastian Steinberg e o baterista Yuval Gabay eram presença regular na Knitting Factory, um dos pontos cardeais das vanguardas do jazz ao rock, à música experimental e à poesia. Doughty, que chegou a trabalhar como porteiro, chegava-se à frente em números híbridos de stand-up e rap, sem que se pudesse nomear ou distinguir algum deles, enquanto o restanto trio de músico fez parte de diversas bandas e esteve ligado à figura tutelar de John Zorn. Eram gente com escola mas sabiam desfazer-se dela, e como em muitos casos de adoração dos anos 90, os Soul Coughing testaram limites em vez de resignar às possibilidades.
O caldo fusionista, alimentado por choques de realidade em cadeia, provocou uma deliciosa cacofonia. Formados em 1992, um ano depois assinavam pela Slash, pertencente ao catálogo da Warner, para dar forma à anarquia de Ruby Vroom em 94. Tudo fluíra para um harém de correntes improvisadas e experiências centradas no jazz. Bem no centro da década, brotava um caso sério de ruptura e ousadia da mesma família X dos Morphine e dos Cake. Porque os Soul Coughing tinham sabedoria jazzística mas não seguiam as teses de mestrado. Nem Doughty era rapper, humorista ou terapeuta da fala. Talvez um agitador das sílabas naquele jeito de quem corre para o autocarro com a conta por pagar.
No pulsar intenso e frenético da secção rítmica corria o sangue venenoso do funk, mas os Soul Coughing não eram uns Jamiroquai americanos nem a resposta da baixa novaiorquina ao acid-jazz londrino. Samplavam solos de trombone de Raymond Scott e Tori Amos, excertos dos Toots and the Maytals e de Howlin' Wolf com citaçōes de Thelonious Monk e Bobby McFerrin, sons de autocarros e xilofones infantis. Em estúdio com o prestigiado Tchad Blake, conhecido pela abertura a obter sons de objectos improváveis e a captar com métodos pouco ortodoxos, fizeram de Ruby Vroom um parque de diversōes e uma oficina de improvisação.
Se em 1957, Miles Davis proclamava o Birth of The Cool, em 1994 os Soul Coughing dispunham de todos os argumentos para nomear um Birth of The Chaos, tal a babilónia de culturas em amistosa colisão. No caos pouco organizado de guitarras de palheta funk, um piano de educação jazzística, o centro nevrálgico era ocupado por um contrabaixo delicioso a comandar as tropas e sobretudo pela teatralidade diabólica de M. Doughty. O cinismo cáustico da narrativa irreal social responde como um glutão devorador do hiper-realismo literal.
Separado por trinta anos, Ruby Vroom é um prazer secreto sem peso transgeracional, mas quem viveu os anos 90 sem regime de exclusividade com Seattle ou Bristol, recorda-se de quão especiais e únicos eram os Soul Coughing. Gravaram apenas três álbuns - Ruby Vroom agora reeditado com três inéditos - entre os quais, o descontrolado Amy Fisher e a remistura de Screenwriter’s Blues, a anunciar a posteriodade de El Oso, em 98 - o mais primoroso pela sua seminalidade e por todos os elementos casarem sem esforço. De Blueeyed Devil a Bus To Beelzebub, Moon Sammy ou Murder of Lawyers, não há uma canção empobrecida ou prudente.
“It is 5 A.M. and you are listening to Los Angeles”, adverte Doughty na emissão ensaiada de rádio da perigosa Screenwriter’s Blues. Ruby Vroom é um clássico instantâneo de fuga para a frente. Trinta anos depois, tanta liberdade soa a inundação. Ainda sabemos o caminho marítimo para a piscina?
Ruby Vroom acaba de ser reeditado com três inéditos. Os Soul Coughing reencontraram-se em setembro e têm uma digressão americana marcada a partir de abril. Na mesma altura, chegará um álbum ao vivo gravado nos primeiros concertos da reunião.
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No Chile, um canoísta foi engolido e cuspido por uma baleia. Em PLEASE COME TO ME, Devi Mambouka devora-nos como presas. Ao assumir a identidade da deusa hindu Kali, associada a crenças de destruição e violência, Masma Dream World engole-nos nos proporcionar a passagem por um rito transcendental de terror e beleza. A maleabalidade da voz - pesada e angelical - respalda-se sobre drones dissolventes. Atmosferas sombrias transmitidas por Diamanda Galás embora este teatro de sombras pertence-lhe. Um sufoco de tradiçōes indígenas e pós-catolicismo, permeado por cantos gregorianos. Um grande túnel no fundo de uma luz a apagar-se.
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Pode separar-se a palavra do ritmo? Na história do jazz, o pilar criativo costuma oscilar entre a liderança instrumental ou vocal. O caso de Damon Locks distingue-se. O texto é o guia espiritual de List of Demands, um ciclo de 12 peças breves construídas à bases de samples em que a poesia afrocêntrica e as bíblias agnósticas de MF Doom, servem de elo de ligação entre improviso, rua, racionalidade e acção.