O exercício de crítica não faz sentido se não partir da auto-crítica. Não adianta reivindicar sustentatibilidade se depois se atiram beatas para o chão. Teoria sem prática é como um carro sem rodas. Pode ser muito vistoso, ter uma bateria de grande autonomia, mas não anda. É nesse tom que se escreve esta reflexão sobre o Spotify Wrapped. Porque também eu me deixei embalar pela sedução de contar ao (meu) mundo que, com a precisão de 64400 minutos, estou entre os 3% de maiores consumidores de música na plataforma, e que ao longo de doze meses escutei 5266 artistas diferentes. Grande parte deste tempo foi útil de música estimulante, desafiadora ou instrutiva mas a relação com a plataforma não se esgota na troca directa entre pagar e usufruir de um serviço.
O Spotify Wrapped é uma campanha anual de marketing que recupera o relacionamento antigo entre gosto e lugar de pertença da subjectividade. Adoramos que um computador central nos diga quem somos através das nossas escolhas musicais, e comparemos as nossas preferências, como pais à saída da creche a inspeccionar as parecenças com os filhos. E até gostamos de saber que a canção mais ouvida em Portugal foi a emoldurável Tata de Slow J. Como não apaziguar a dor em 2:40 de kimbundu e guitarra portuguesa? Esse elo recupera-se quando, paradoxalmente, o vínculo historicamente político entre “quem sou” e “o que diz a música sobre mim” se perdeu na diluição das tribos e subtribos em subgéneros decorativos próprios da cultura de Internet. Segundo o Spotify, Abril foi o meu mês pink pilates princess, strut e pop por ter ouvido Charli XCX, Meghan Trainor e Katy Perry. Well, whatever, nevermind…
Aceitamos reduzir-nos a números, sem reflectirmos sobre a simplificação matemática. Somos meses, horas, percentagens e quantidades. Uma estatística com braços e pernas. Um acervo individual de big data exposto como carne para consumo na vitrine do talho de uma grande superfície - porque até os talhos e as peixarias de bairro já foram devoradas pela Jerónimo Martins e pela Sonae. Precisamente. Se sei que os supermercados não são exactamente benignos para a saúde da economia, se perpetram o esmagamento da concorrência mais frágil e trituram os pequenos produtores com margens injustas e acordos leoninos, porque continuo a ir ao Pingo Doce e ao Continente? Porque estão perto da casa, têm quase tudo o que preciso e me oferecem descontos regulares. Quem não gosta de escorregar numa casca de banana como se estivesse no Ondaparque? Adoro ser enganado!
Nas grandes superfícies ou nas plataformas digitais, todo o sistema empurra para hábitos dormentes de consumo. Como estas, o Spotify não é mais do que um gigante supermercado de música que paga milhōes aos principais fornecedores e pouco ou nada aos produtores. 80% da música disponível foi desmonetizada. Precisamos de um número mais esclarecedor para gritar injustiça? Todos os dias, há artistas ou estruturas independentes a queixar-se de tratamento desigual ou monetização anormal. Entretanto redescoberta no TikTok, Lily Allen asseverava receber mais por fotos de pés no OnlyFans do que pelos oito milhōes de ouvintes mensais no Spotify. Como a própria reconhecia, “a culpa não é do jogador, é do jogo”.
Deixemos o problema das funcionalidades do Spotify Wrapped para os tecnólogos de serviço. Se há tanta gente especialista em novas funcionalidades de Instagram ou TikTok, e sempre atenta às novidades do próximo iPhone, não nos devíamos importar com outros dados menos coloridos? A retrospectiva do Spotify oculta números importantes. Mais de metade da equipa especializada em curadoria foi substituída por inteligência artificial. Cada reprodução (stream) varia entre um terço e metade de um cêntimo - o valor mais baixo de todos os serviços. Porém, a plataforma só paga um café a partir de mil streams calculados em doze meses. Talvez esses cálculos expliquem por que o magnata Daniel Ek tenha uma vez afirmado que os custos de criação rondem o custo zero enquanto inflaccionava a sua fortuna mais do que algum artista alguma vez tenha monetizado directamente do seu palácio - números deste ano.
Se isto não é uma relação desigual de forças, o que é? Sabemos que não faz bem, mas usamos, pagamos e participamos na operação de charme. E até sabemos porquê, apesar de conhecermos os defeitos. Défice de qualidade sonora, pouca informação sobre a música ouvida, desconfiança no algoritmo ao nível da resolução do caso Sócrates, e a sensação de estarmos sempre a ser enganados, se deixarmos que o Spotify escolha por nós. A ilusão de transportar toda a música disponível e poder acedê-la a qualquer momento com uma funcionalidade prática, ao preço de um almoço no Ikea, é um privilégio maligno de usar a liberdade em cativeiro.
Este é um tempo crucial na tomada de decisōes. Todos o são, mas este é-o especialmente quando diariamente percebemos o efeito das escolhas na cadeia relacional mais directa. Neste caso, o ecossistema musical - sobretudo o independente. Não se trata de cair na armadilha da responsabilização individual de problemas sistémicos do capitalismo pop mas antes de alertar para as consequências do mesmo e, a partir desse relatório de contradiçōes, estar preparado para contrariar hábitos de conforto e incoerências entre pensamento e acto. Na melhor das hipóteses, uma vespa pica e é enxotada. Num vespeiro ninguém toca. O Spotify Wrapped é a cara de espelho do impasse entre narcisismo e toxicidade.
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